Sobre a nova ordem geopolítica em tempo de guerra na Ucrânia

Tradução por Ana Cristina Carvalhares

Pierre Rousset 10 jun 2022, 11:22

Aos olhos de Putin, a invasão da Ucrânia deveria ser algo rápido. No entanto, tem como objetivo, numa perspectiva de longo prazo, reintegrar as terras do antigo império czarista ao espaço russo.

Devido à resistência inesperada das forças armadas e da sociedade ucraniana, a guerra na própria Ucrânia tornou-se um processo de longo prazo. A estratégia do Kremlin está evoluindo de acordo com o cenário, assim como as percepções e políticas das potências (começando pelos Estados Unidos e China ou da União Européia). Suas posições mudaram e mudarão ao compasso dos acontecimentos. O futuro não pode ser previsto, mas é claro que as implicações do conflito são e serão profundas.

Já podemos falar de um ponto de inflexão na situação global?

No mínimo, estamos vivendo um grande ponto de inflexão na crise global (ecológica e climática, sanitária, sócio-econômica, democrática, etc.) em curso, na qualmúltiplas causas e conseqüências estão entrelaçadas,interagindo em uma espiral mortal. À medida que atravessamos novos limiares na dinâmica das várias crises, vivemos uma catástrofe.

Qual o alcance específico de uma guerra “em grande escala” no coração da Europa? É claro que houve precedentes, incluindo as terríveis guerras dos Bálcãs, nos idos dos 90, mas estas foram consideradas “marginais” pelas potências ocidentais. A ocupação da Crimeia e depois parte de Donbass foram tratadas por aquelas como conflitos regionais, contidos em suas vizinhanças, não como o início de um cabo de guerra geopolítico destinado a se expandir.

A crise climática se agrava. A Organização Meteorológica Mundial (WMO) acaba de apresentar um relatório particularmente alarmante. Em 2020, estimava-se que havia um risco de 20% de que o aumento da temperatura excedesse 1,5°C pelo menos uma vez nos próximos cinco anos; estima-se agora que este risco seja superior a 50% para o próximo período. Embora as conseqüências do aquecimento global já estejam sendo severamente sentidas, ele aponta que os custos humanos e biosféricos de cada ano acima de 1,5% serão elevados e que não podemos nos dar ao luxo de adiar a redução das emissões de gases de efeito estufa, emissões que são impulsionadas pelas guerras.

A escala e as especificidades da crise sanitária da Covid-19. Sabíamos que tínhamos entrado numa era de epidemias, cuja gravidade seria multiplicada pela globalização do comércio, pelas políticas neoliberais e pela ausência de democracia sanitária. Entretanto, também aqui há um claro ponto de inflexão. O SARS-CoV-2 não está se comportando como “deveria”. Ao contrário de surtos anteriores da SRA, ela resultou em uma pandemia global. Muito diferente da gripe, ela ataca o sistema pulmonar e respiratório, o sistema nervoso, o sistema digestivo, a corrente sanguínea… e suas variantes parecem em grande parte imprevisíveis. No entanto, a preparação de vacinas sazonais requer precisamente que possamos prever as próximas mutações do vírus. Mesmo que a Covid-19 morra uma “morte natural” amanhã (não parece ter pressa em fazê-lo), que outras pandemias vãosubstituí-la?

ausência de resposta dos governos e dos poderes estabelecidos a essas crises. Não há nenhuma indicação de que eles levarão em conta a sério a gravidade destas questões, muito pelo contrário. Uma crise pode ser uma oportunidade de mudança (sair do petróleo, garantir a soberania alimentar…), mas o oposto está acontecendo: um apagão da mídia sobre questões climáticas e de saúde, uma ofensiva dos lobbies petroleiros e agroindustriais e do complexo militar-industrial para livrarem-se de todas as restrições, aumento dos orçamentos militares e um novo ímpeto à corrida armamentista…

Se de fato estamos atravessando um novo limiar na crise global em que a globalização capitalista nos mergulhou, quais poderiam ser as implicações geoestratégicas? Vamos tentar abrir algumas hipóteses de trabalho.

A Eurásia de ontem e de hoje

Por muitas razões, a Eurásia ocupa um lugar especial na geopolítica mundial. Isto é particularmente verdadeiro no que diz respeito à questão das armas nucleares: o enfrentamento nuclear é de fato uma realidade no Oeste da macrorregião (OTAN/Rússia), em seu centro (Índia/Paquistão) e no Leste (Estados Unidos/China, Península Coreana). O que a guerra na Ucrânia mostra é que a ameaça nuclear não mais impede um grande conflito no teatro de operações europeu, mas o permite, graças à chantagem protetora da escalada nuclear.

A Eurásia é também o supracontinente que foi radicalmente dividido durante o tempo dos ‘blocos’ Lestee Oeste. O vocabulário da Guerra Fria está reaparecendo no conflito ucraniano – Leste (Oriente) X Oeste (Ocidente). A analogia com os tempos da bipolaridade do período 1945-1990 é perigosamente enganosa, pois hoje a China e a Rússia são capitalistas (duas formas bem diferentes de capitalismo) e estão inseridas no mercado mundial com profundas interdependências, especialmente entre a China e os Estados Unidos.

A importância desta mudança de período não pode ser subestimada. A reabertura dos imensos territórios ex-soviéticos, chineses e vietnamitas ao capitalismo explica porque a tendência de queda na taxa de lucro foicontrariada por muito tempo, assim como explica o otimismo do grande capital nipo-ocidental após a implosão da URSS. Os imperialismos ocidentais não previram que Pequim pudesse usar a liberdade de circulação de capital para seus próprios fins e ressurgir como uma formidável potência imperialista concorrente. Pelo menos desde o início deste século, um dos principais fatores estruturantes da situação mundial tem sido o conflito inter-imperialista entre a potência dominante (EUA) e a potência emergente (China).

O principal objetivo de Washington tem sido combater a ascensão da China e Joe Biden tem sido mais consistente ao fazer isso do que Donald Trump. Para tanto, ele tentou distanciar Moscou de Pequim e permaneceu muito cauteloso na primeira etapa da invasão de Putin, anunciando desde o início que a Ucrânia não era membro da OTAN e que os Estados Unidos não interviriam para defendê-la, contentando-se em reforçar a presença militar da Aliança na Europa Oriental, além de propor que o Presidente Zelensky se exilasse. Foi o fracasso da fase inicial da invasão e a eficácia da resistência ucraniana que gradualmente mudaram a situação. Instalou-se uma guerra de atrito. A qualidade das armas e das informações ajuda a aumentar gradualmente esse atrito. Washington teve que mudar temporariamente seu foco da China para a Rússia. A questão agora é se esta mudança de base se torna sustentável, uma vez que Biden decidiu’ ajudar decisivamente as forças ucranianas a vencer a guerra de atrito. De qualquer forma, é pouco provável que a crise ucraniana se conclua a curto prazo, pois Moscou, Kiev e Washington adaptam suas estratégias às mudanças no equilíbrio de poder.

Uma guerra na Europa Oriental certamente fazia parte dos “cenários” imaginados por vários serviços de inteligência nos Estados Unidos, mas um “cenário” não é uma previsão, apenas o estudo de uma possibilidade. Antes que outros, Washington percebeu que a invasão de Putin estava chegando, mas nem Moscou, e a inteligência americana admitiram não prever a extensão da resistência, ou seja, como como o regime ucraniano (e, psicologicamente, a população ucraniana) tinha lidariam com a invasão a partir da experiência das conseqüências da tomada da Crimeia pela Rússia e, especialmente, da ação russa no Donbass. Tem sido feroz a resistência à invasão, tanto do exército regular quanto das forças territoriais, assim como do grosso da população, que está ajudando os combatentes de mil maneiras, independentemente da língua falada, 

Desenvolvimentos geopolíticos

A aliança Pequim-Moscou ainda não cumpriu sua promessa, e é importante entender por quê. A aliança foi vista como militarmente dominante diante da crise da OTAN depois do Afeganistão, dado o domínio estratégico de Pequim no Mar do Sul da China. Um ataque concertado no Oeste (Ucrânia) e no Leste (Taiwan) parecia dificilmente viável. Nunca saberemos o que teria acontecido se Putin tivesse tido sucesso, instalando rapidamente um regime fantoche em Kiev e apresentando ao Ocidente com um fato consumado. Mesmo assim, Xi Jinping não aproveitou a oportunidade para tentar reconquistar Taiwan.

Esta falha coloca a China em uma situação particularmente desconfortável. A deterioração da situação coloca em questão os interesses chineses na região: a Europa Oriental, incluindo a Ucrânia, é um elo significativo na implantação global das “novas estradas da seda”. A extrema brutalidade do exército russo no cerco das cidades dificilmente pode ser justificada. A eficácia da resistência ucraniana mostra o que o ataque a Taiwan implicaria.

Ainda mais problemático é a atitude de Pequim diante das sanções econômicas de Washington contra Moscou. Se Pequim ajudar os russos a contorná-las com demasiada eficácia, a China corre o risco de atrair o mesmo tipo de represália. Mas a China está longe de querer ou poder se “desacoplar” financeira, econômica e tecnologicamente dos Estados Unidos. Na verdade, Xi Jinping parece temer que Joe Biden imponha hoje essa dissociação e está procurando um aliado na Bolsa de Valores de Wall Street, concordando pela primeira vez em respeitar as regras de transparência impostas pela instituição

A Rússia não está isolada globalmente: a grande maioria dos governos da América Latina, África e Ásia fizerampouca ou nenhuma mudança em suas relações com Moscou. A guerra de informação russa está marcando pontos com o público, fora a memória da hostilidade aos EUA e ao tradicional imperialismo europeu. Os governos estão atentos à ajuda militar e ao oportunismo econômico: a crise é uma oportunidade de fazer bons negócios com a Rússia.

A participação da Ásia como compradora das exportações de energia da Rússia é muito elevada. Enquanto as vendas de carvão estão caindo, a China, a Coréia do Sul, mas também a Indonésia e a Índia querem tirar proveito dos preços mais baixos do petróleo. A Índia está chegando ao ponto de oferecer a Moscou transações em rublos ou rúpias (moeda indiana). Como o gás é transportado principalmente por gasoduto, é difícil redirecioná-lo, mas o Japão, que geralmente cumpre com as sanções, quer manter seus contratos com a russa Gazprom para gás natural liquefeito (GNL); desistir desse produto seria muito caro. Quanto à venda de armas, ela continua. A Ásia compra 60% das exportações de armas russas (em cerca de dez países, incluindo o Vietnã, que é muito dependente desta fonte). A Índia é o principal mercado militar de Moscou (antes da China). São russos dois terços das armas importadas pelo país: o único porta-aviões, a maioria dos aviões de combate, o principal tanque de batalha e, em breve, um avançado sistema de defesa aérea.

No entanto, os custos socioeconômicos da guerra e as sanções dos EUA começam a ser sentidos na própria Rússia, com a inflação aumentando acentuadamente.

Liderança dos EUA fortalecida

Os EUA estão reafirmando sua liderança sobre o “blocoocidental”. Eles se beneficiam dos recursos de seucomplexo militar-industrial, de seu domínio da vigilância e inteligência, seu controle das comunicações bancárias pelo sistema SWIFT (os EUA têm poder de sanção, pela via da Justiça ianque, sobre os que fazem quaisquer transações internacionais em dólar). Entretanto, hoje não mais do que ontem, eles não têm meios de consolidar sua hegemonia global sozinhos. Para isso, precisariam de aliados confiáveis, mas raramente os encontram, especialmente na Eurásia. Isto pode ser visto na Europa, dadas as fraquezas intrínsecas da UE.

No sul da Ásia, Joe Biden incluiu a Índia no recente redesenho do seu teatro de operações no Indo-Pacífico. Mas um espaço geoestratégico projetado contra a China não se reorienta contra a Rússia simplesmente porque Washington decidiu fazê-lo. Nova Delhi tem uma estreita e histórica relação com Moscou e não deseja desfazer esse laço especialmente pela rivalidade com o Paquistão e o que sente como ameaça da China. O Japão responde aos pedidos de Washington, especialmente porque procura se libertar das cláusulas pacifistas de sua Constituição e completar seu já avançado rearmamento. Como único membro asiático do G7, ele participa ativamente da política de sanções contra a Rússia.

A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) está ganhando nova legitimidade aos olhos de seus próprios membros e, além disso, na Europa, em países não-membros. É claro que os governos de uma série de países “não-alinhados” buscarão a adesão com, principalmente, um forte apoio público, mesmo que as correntes de esquerda continuem a se opor a ela. Na linha de frente da Europa Oriental, a OTAN aparece agora como um escudo. Sabemos que esta organização nunca foi concebida como ‘defensiva’ e que foi mantida quando o Pacto de Varsóvia se dissolveu, mas a luta por seu desmantelamento é agora, politicamente, muito mais complicada do que antes. Entretanto, é muito cedo para deduzir que a Aliança vai se projetar novamente para o Oriente, como foi decidido em 2002 em nome da “luta contra o terrorismo” – o que levou à sua intervenção no Afeganistão. Outros tratados “ocidentais” estão agora em vigor na área Indo-Pacífico (Quad, Aukus).

A União Européia continua desunida. Sendo tudo relativo, diante da Rússia autocrática, a União Européia se apresenta como uma alternativa democrática. Natureza democrátia que não está incluída nem em seu funcionamento nem no tipo de tratados que impõe às populações dos países membros. Ao contrário, a tendência atual na Europa Ocidental é a de restrição dos direitos e liberdades, o que é particularmente forte no caso de Macron e seus seguidores. Politicamente, porém, a imagem da UE foi reforçada pela crise ucraniana, como se viu na decisão simbólica alemã de se comprometer militarmente em maior escala do que anteriormente. Entretanto, apesar de produzir e exportar armamentos, a UE continua sendo um anão militar. O próprio exército francês, apesar de experiente, é incapaz de autonomia estratégica, diga o que disser Macron. A maioria dos Estados membros da UE concebe sua defesa no âmbito da OTAN, sob a direção de Washington. A União, dividida, não tem qualquer peso nas grandes questões geoestratégicas globais e dificilmente pode ser qualificada como uma “potência”.

A situação internacional é ainda mais instável porque, em muitos países centrais, a posição de chefes de Estado, está ameaçada: Joe Biden confronta o retorno em força dos trumpistas; Vladimir Putin pode balançar, caso haja um fracasso demasiado flagrante de sua guerra; Boris Johnson está na berlinda, pela revelação de suas artimanhas em tempos de confinamento sanitário (daí sua belicosidade sobre a Ucrânia). Xi Jinping, por sua parte, tem múltiplas razões para se preocupar: há um impasse em sua chamada política de “Covid zero”, o crescimento econômico declina, há potencial para um acerto de contas dentro do aparato do partido em reação a suas purgas sangrentas, inclusive no pessoal das forças armadas. Uma versão mais desenvolvida deste artigo será publicada online que também abordará as políticas militares, as contradições da globalização capitalista, a natureza do atual ciclo de resistência popular e as implicações da crise global para nossa prática militante.


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Pedro Micussi