Por que “putinistas” e “putinizantes” perpetuam as tradições mais abjetas da esquerda internacional?
Vladimir_Putin_07-04-2021

Por que “putinistas” e “putinizantes” perpetuam as tradições mais abjetas da esquerda internacional?

Uma análise das posições sobre a guerra da Ucrânia a partir de posições trotskistas históricas.

Yorgos Mitralias 13 jul 2022, 16:00

Via l´Anticapitaliste

Uma primeira conclusão da leitura dos textos de Trotsky “Aprendam a pensar1 e “Sobre a guerra sino-japonesa2 é que eles explicam de forma muito convincente e detalhada a posição que as pessoas da esquerda devem adotar… na guerra em curso de Putin contra a Ucrânia! Por exemplo, a substituição das palavras Argélia com Ucrânia, França com Rússia e Itália com os Estados Unidos no eloquente título de Trotsky “Aprendam a pensar” forneceria à esquerda de hoje um guia prático extremamente útil para a questão da guerra em curso de Putin contra o povo ucraniano. E aqui está uma passagem chave do texto ao qual estamos nos referindo:

Suponhamos que em uma colônia francesa, a Argélia, surja amanhã uma revolta sob a bandeira da independência nacional e que o governo italiano, movido por seus interesses imperialistas, esteja disposto a enviar armas aos rebeldes. Qual deveria ser a atitude dos trabalhadores italianos neste caso? Tomo intencionalmente o exemplo de uma revolta contra um imperialismo democrático e de uma intervenção a favor dos rebeldes por parte de um imperialismo fascista. Os trabalhadores italianos devem se opor ao envio de navios carregados com armas para os argelinos? Que qualquer ultra-esquerdista ouse responder afirmativamente a esta pergunta! Qualquer revolucionário, em comum com os trabalhadores italianos e os rebeldes argelinos, rejeitaria tal resposta com indignação. Até mesmo se houvesse uma greve geral dos marinheiros na Itália fascista, nesse caso os grevistas teriam que abrir uma exceção a favor dos navios que iriam levar ajuda aos escravos coloniais em rebelião; caso contrário seriam trade-unionistas deploráveis e não revolucionários proletários.

Ao mesmo tempo, os marinheiros franceses, mesmo que não tivessem nenhuma greve na agenda, seriam obrigados a fazer todos os esforços para impedir o envio de armas contra os rebeldes. Somente uma tal política dos trabalhadores italianos e franceses seria uma política de internacionalismo proletário

Sabendo com quem ele estava lidando, não é por acaso que Trotsky antecipa possíveis criticas citando – “intencionalmente” como ele diz – o exemplo mais extremo possível, o de “uma revolta contra o imperialismo democrático e uma intervenção a favor dos rebeldes pelo imperialismo fascista“! De fato, quem ousaria dizer que a OTAN, a UE ou os EUA enviando armas para a Ucrânia são piores do que a fascista Itália do Duce? Ou que o imperialismo da Rússia de Putin é melhor do que o “imperialismo democrático” da França no entreguerras?

É claro que ninguém é ingênuo o suficiente para acreditar que nossos atuais putinistas não vão procurar freneticamente algo que diferencie o exemplo argelino de Trotsky da atual tragédia ucraniana. Como, por exemplo, que ao contrário da Argélia, que era uma colônia francesa, a Ucrânia nunca foi uma colônia da Rússia. A melhor resposta a esta “objeção” não é dada pelos séculos de subjugação da nação ucraniana à Rússia, mas pelo que dizem quase diariamente os atuais líderes russos Vladimir Putin e Dmitry Medvedev, que se revezaram ao leme do país durante os últimos vinte anos. Ambos declaram quase diariamente que… a Ucrânia e a nação ucraniana não existem (!), ou que são parte integrante da pátria russa, à qual devem retornar mesmo … arrasadas e em ruínas! E tudo isso na mesma língua e com os mesmos “argumentos” usados por todo o pessoal político francês quando “juraram” durante um século e meio que a Argélia era e deveria continuar sendo parte integrante da França metropolitana da mesma forma que a Alsácia, Provença ou qualquer outra região ou província do Estado francês. Quanto às revoltas populares contra o colonialismo estrangeiro – francês ou russo -, aos 4 ou 5 grandes levantes argelinos dos séculos XIX e XX que foram reprimidos em banhos de sangue pelo imperialismo francês, a nação ucraniana tem de oferecer pelo menos o mesmo número de revoltas populares que também foram afogadas em rios de sangue pelo imperialismo grão russo ao longo dos séculos….

Uma segunda conclusão que se poderia tirar da leitura destes textos é que os putinistas e putinizantes de hoje não são um fenômeno sem precedentes, pois têm antepassados espirituais brilhantes que Trotsky não teve nenhum problema em chamar de “idiotas” …! Mas as semelhanças terminam aí. Hoje não estamos lidando com “idiotas”, mas de boa-fé, como provavelmente foram os “ultra-esquerdistas” criticados por Trotsky. Na verdade, os putinistas e putinizantes de hoje não podem infelizmente ser chamados de ultra-esquerdistas ou idiotas, porque normalmente estão plenamente conscientes das escolhas que fazem. Mas então por que eles os fazem?

Mais concretamente, alguns deles, especialmente os putinistas meta-estalinistas, se distinguem por seu primitivismo teórico e prático que os faz comprar gato por lebre. Isso fez com que, entre outras coisas, eles tomassem – repetidas vezes, nos últimos 70-80 anos – o “anti-imperialismo” de uma certa extrema direita como sinal de progressismo, a ponto de fazer dessa extrema direita seu interlocutor, se não mesmo um aliado potencial e digno de apoio! É exatamente isso que está acontecendo hoje, com a retórica anti-ocidental de Putin, como ontem com a de Karadzic-Mladic, que, combinada com sua crença – tão ingênua e perigosa – de que “o inimigo de meu inimigo é meu amigo”, faz com que eles não percebam (…) e passem em silêncio o fato de que essa retórica antiocidental do Kremlin não tem nada de progressivo, sendo, ao contrário, extremamente reacionária e obscurantista.

No entanto, a atração ou melhor, o fascínio que Putin exerce sobre esta parte da esquerda não pode ser totalmente explicado se não levarmos em conta algumas de suas… afinidades eletivas. Assim, o fato de que esses meta-esquerdistas stalinistas não estão chocados e permanecem aparentemente impassíveis à demonstração diária de extremo conservadorismo por Putin e seu regime (assim como seus homólogos em todo o mundo) deve-se ao fato de que eles mesmos são muito conservadores, até mesmo reacionários. E para dar nome aos bois, é bem conhecido que eles sempre – e muitas vezes ostensivamente – foram ausentes de todos os grandes movimentos sociais de nosso tempo, como o feminista e o LGBTQ+, pró-imigrante e pró-refugiados, movimentos ecológicos e de defesa do clima, enquanto nunca se distinguiram por seu apoio fervoroso aos movimentos de direitos humanos e das minorias de todo tipo, muitas vezes até mesmo não hesitando em chamá-los de farsa e de invenção … do imperialismo, o que aliás eles também diem da mudança climática!

Então por que eles deveriam se rebelar contra as ações extremamente conservadoras, obscurantistas e terrivelmente repressivas de Putin contra todos esses movimentos na Rússia, quando eles mesmos são inspirados pelo mesmo conservadorismo que herdaram do estalinismo contrarrevolucionário? Por que eles deveriam se revoltar quando passaram a considerar o tríptico “pátria-família-religião” como uma espécie de quintessência de… seu marxismo totalmente pervertido e desviado?

Mas a tragédia desta esquerda não termina aí, ela tem uma continuação e uma conclusão que já está começando a se desdobrar diante de nossos olhos. Dada a convergência de pontos de vista entre esta esquerda e a extrema direita sobre muitas das questões mais cruciais de nosso tempo e da humanidade, as condições estão agora maduras para a absorção gradual de pelo menos parte desta esquerda por uma extrema direita muito mais poderosa e em constante ascensão. E isto é ainda mais verdade porque o processo deste pesadelo está sendo reforçado de forma planejada e coordenada por seu ídolo comum Vladimir Putin, que está atuando como intermediário e mediador, construindo pontes entre eles enquanto literalmente puxa os fios a nível internacional. E ninguém deve nos dizer que tudo isso é apenas um improvável cenário de ficção científica política, porque já estamos testemunhando o início de sua realização há vários anos. E não apenas na Grécia…

Ao contrário dos putinistas meta-estalinistas, que não brilham com suas habilidades analíticas, os putinizantes de esquerda têm preparo para compreender em grande parte os meandros da guerra de Putin contra a Ucrânia. Então por que eles… putinizam? Por que muitas vezes acabam se contradizendo e ridicularizando, tentando justificar o injustificável com “teorias” improvisadas e baratas?

A resposta a estas perguntas legítimas é que eles não ousam ir a contracorrente. Que eles estão desesperadamente aterrorizados de serem cortados da “massa” das pessoas de esquerda, que eles poderiam ficar isolados. Em outras palavras, eles são oportunistas. Mesmo que isso seja feito – pelo menos para alguns deles – com a melhor das intenções e com a perspectiva de retornar a posições mais aceitáveis uma vez que tenham influenciado positivamente a “massa” da qual não foram cortados.

Infelizmente, a realidade os contradiz: não são eles que influenciam a massa dos putinistas, mas sim o contrário. À medida que seus comprometimentos se sucedem, é em tempo recorde que esses putinizantes se transformam em… putinistas, perdendo o que restava de suas capacidades teóricas e, acima de tudo, da sensibilidade humana!

Mas seus erros e decadência não são – infelizmente – sem precedentes. Infelizmente, a história do movimento operário e socialista/comunista está cheia de casos semelhantes de militantes que, por várias razões, se recusaram a ir a contracorrente, mesmo que isso os tornasse cúmplices dos crimes mais monstruosos da história moderna! E a este respeito, nossos putinizantes de esquerda de hoje são dignos continuadores de uma tradição deplorável que custou e continua a custar caro ao movimento operário e socialista internacional…

Finalmente, há aqueles à esquerda que, embora não sendo nem putinistas nem putinizantes, também são responsáveis pela situação atual porque escolheram… desviar o olhar. Embora estejam perfeitamente conscientes do que está acontecendo e expressem – mas apenas em privado e nunca em público – opiniões corretas, eles se abstêm de falar e escrever sobre a “questão ucraniana”, preferindo lidar com questões mais anódinas, esperando – aparentemente – para ver para que lado o vento eventualmente soprará antes de decidir tomar uma posição. Entretanto, com o passar dos meses, à medida que a guerra de Putin contra a Ucrânia se arrasta e os ponteiros estão desesperadamente lentos para apontar um lado o outro, eles começam a se acostumar com o cinismo e a insensibilidade que têm de mostrar em relação ao sofrimento do povo ucraniano. E um dia, eles descobrem que, sem ter pretendido, este cinismo e insensibilidade gradualmente se tornam uma segunda natureza para eles, distanciando-os irreparavelmente e em tempo recorde do que eles eram e do que eles queriam se tornar…

Sabendo que um dos argumentos fortes de vários putinizantes de esquerda é que eles se recusam a escolher entre dois “regimes burgueses”, ou seja, o russo e o ucraniano, terminamos este texto como o começamos, ou seja, recorrendo aos escritos de Trotsky. Trata-se de um terceiro de seus textos3 nos quais ele convida seus interlocutores “ultra-esquerdistas” a tomar posição não sobre um exemplo hipotético, mas sobre um exemplo real: a guerra colonial de conquista da Itália fascista contra a Etiópia do Imperador Haile Selassie (o Negus). Trotsky escreve então o seguinte:

Maxton e outros acreditam que a guerra Ítalo-Etíope foi ‘um conflito entre dois ditadores rivais’. Parece a esses políticos que esse fato absolve o proletariado de seu dever de escolher entre essas duas ditaduras. Assim, eles definem o caráter da guerra pela forma política do Estado, aproximando-se desta forma política de forma superficial e puramente descritiva, sem levar em consideração as bases sociais destas duas “ditaduras”. Um ditador também pode desempenhar um papel muito progressista na história, por exemplo, Oliver Cromwell, Robespierre, etc. Por outro lado, no próprio coração da democracia inglesa, Lloyd George exerceu uma ditadura durante a guerra que foi extremamente reacionária. Se um ditador liderasse a próxima revolta do povo indiano para quebrar o jugo britânico, será que Maxton recusaria seu apoio? Sim ou não? Se não, por que ele se recusaria a apoiar o “ditador” etíope que tenta afastar o jugo italiano?

Se Mussolini vencer, isso significará o fortalecimento do fascismo, a consolidação do imperialismo e o desânimo dos povos coloniais na África e em outros lugares. A vitória do Negus, por outro lado, seria um golpe terrível para o imperialismo como um todo e daria um poderoso impulso às forças rebeldes dos povos oprimidos. É preciso ser completamente cego para não ver isto”.

Parafraseando as palavras de Trotsky na passagem acima, perguntamos aos nossos putinizantes de esquerda: “por que vocês se recusam a apoiar o primeiro-ministro burguês ucraniano Zelensky que está tentando quebrar o jugo russo“, quando o movimento operário internacional e comunista ao qual vocês se referem sempre apoiou – e fez muito bem – com todas suas forças líderes burgueses como Kemal Atatürk, Gamal Abdel Nasser e tantos outros em suas guerras contra o imperialismo ocidental? O burguês Zelensky é pior que um Atatürk ou um Nasser que exterminou sistematicamente seus compatriotas comunistas? Ou seu regime é pior e mais iliberal do que o de tantos anti-imperialistas do Terceiro Mundo que foram – com razão – apoiados pela esquerda radical internacional? Por que a duplicidade de critérios?

Trotsky escreveu na época que “a vitória do Negus seria um golpe terrível para o imperialismo como um todo e daria um poderoso impulso às forças rebeldes dos povos oprimidos“. Em um artigo anterior escrevemos essencialmente a mesma coisa, salientando que “uma vitória final, mesmo por pontuação, dos ucranianos terá, sem dúvida, consequências cataclísmicas não apenas na Rússia. Será um tremendo incentivo e inspiração para movimentos e lutas pela emancipação social e libertação nacional longe da Europa”! E Trotsky concluiu então com a seguinte frase, que talvez seja ainda mais verdadeira hoje: “É preciso realmente ser completamente cego para não ver isto“.

1 Uma versão em espanhol está disponível em libro acesso no site marxists.org “aprendam a pensar” https://www.marxists.org/espanol/trotsky/ceip/escritos/libro5/T09V234.htm [Optamos para fazer referência á versão espanhola quando não temos encontrado uma versão em português- NdT]

2 Uma versão em espanhol (entre outras) está disponível em libro acesso no site marxists.org “Sobre la guerra chino-japonesa” https://www.marxists.org/espanol/trotsky/eis/1937.Sobreguerchino-japonesa.pdf

3 Uma versão em espanhol está disponível em libro acesso no site marxists.org “Sobre los dictadores y las alturas de Oslo”, https://www.marxists.org/espanol/trotsky/ceip/escritos/libro4/T07V230.htm


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