Abdelkrim: o Leão do Rife, o Guevara marroquino
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Abdelkrim: o Leão do Rife, o Guevara marroquino

Artigo sobre o revolucionário marroquino publicado originalmente na revista Contretemps

Alain Geffrouais e Hamadi Aouina 13 dez 2022, 08:57

Desde ontem na França figuras da direita e da extrema direita multiplicaram os “merci Giroud, merci Deschamps” ignorando a linda contribuição de Aurélien Tchouaméni, filho camaronês. Como se não bastasse as comemorações dos torcedores marroquinos nos Campos Elíseos foram duramente reprimidas pela polícia de choque.

O jogo de quarta vai opor a França e o Marrocos. As partidas entre a França e uma equipe do Magreb são sempre tensas: os jovens magrebinos, na maioria imigrantes das 2ª e 3a gerações, sem verdadeiro lugar e futuro na sociedade francesa, frustrados nas suas aspirações, expressam a sua revolta. Foi o caso no França-Argélia de 2001 onde torcedores magrebinos vaiaram a Marselhesa e invadiram o gramado do Stade de France, ou mais recentemente o France-Tunísia desta mesma copa do Qatar. Com certeza, qualquer que seja o resultado, terá nas grandes cidades francesas e suas periferias enfrentamentos entre a população de origem marroquina ou magrebina em geral e grupos da extrema direita e a polícia.

Para não ficar em má companhia, quarta-feira 4a vou me reivindicar do “derrotismo revolucionário” dos primeiros congressos da Internacional, pelo menos metaforicamente, torcendo pele equipe do Marrocos.

O texto de Aouina Hamdi, inicialmente publicado por Contretemps (Contratempo, Revista de Crítica Comunista) apresenta a vida de luta de Abdelkrim, líder injustamente pouco conhecido na América Latina mas que teve um papel importante no desenvolvimento das lutas no Magreb, no Médio Oriente, no desenvolvimento dos partidos comunistas na Europa Ocidental, e até por umas desses paradoxos da história, na própria revolução cubana.

(Alain Geffrouais)

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Há um século…

Há pouco mais de um século uma parte do mundo sofreu uma convulsão cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir. No 21 de Julho de 1921, o exército espanhol, sob a liderança do General Sylvestre, um dos seus afoitos oficiais, sofreu uma das poucas derrotas que um exército colonial tinha sofrido no primeiro quarto do “curto século XX”.

Ao longo do século XIX, a monarquia espanhola assistiu ao colapso gradual do seu império colonial na América Latina e, pelo Tratado de Paris de 25 de outubro de 1898, foi despojada de Cuba, Filipinas, Porto Rico e da ilha de Guam. Na Conferência de Algeciras (Espanha) a 7 de abril de 1906, foi, contudo, compensada com a concessão do Rife, região no norte de Marrocos, como parte do desmembramento da última peça do continente africano que não tinha estado sob domínio colonial. A França, por seu lado, foi legitimada por possuir a parte sul de Marrocos, sendo Fez a linha divisória.

Da neutralidade ao desastre!

Tendo optado pela neutralidade durante a Primeira Guerra Mundial, a Espanha foi seriamente afetada pela chamada “gripe espanhola” a partir de 1917. Fazendo eco à revolução russa que “abalou o mundo em dez dias”, os anos seguintes, 1918 e 1919, foram chamados os “três anos bolcheviques”. Foram pontuados por uma “onda crescente de organizações, de greves, de confrontos e reuniões”, atiçadas por notícias vindas da Rússia de que “os comunistas estavam distribuindo as terras aos camponeses pobres”. Em algumas cidades espanholas, foram proclamadas verdadeiras comunas republicanas e multiplicadas as ocupações de terras. Para acabar com estas revoltas, o governo monárquico de Alfonso XIII mobilizou até vinte mil soldados.

Foi apenas quando a frente social foi esmagada que o exército espanhol foi redirecionado para o Rif marroquino com a ideia de matar dois pássaros com uma cajadada só: purgar o espírito rebelde de certas categorias da hierarquia militar através da guerra colonial e tomar posse da parte que cabia à Espanha do desmembramento de Marrocos entre potências imperialistas.

“Che” Abdelkrim!

Só que os camponeses do Rife marroquino, com o seu espírito rebelde ancestral contra qualquer forma de dominação, não se iam deixar amarrar por um exército estrangeiro e sobretudo espanhol! É preciso lembrar que séculos de resistência contra o poder ibérico marcaram a história dos Rifenhões.

Assim, face a 60.000 soldados espanhóis, na sua maioria recrutas de origem muito modesta, os camponeses do Rife, em particular os das tribos Beni Ouriaghel, desenvolveram uma resistência histórica. Sob a liderança de Abdelkrim El Khatabbi, antigo professor, jornalista em El Telegramma del Rif [periódica publicado em Melila] e intermediário indígena para a resolução de questões administrativas dentro da administração espanhola em Melilla, os Rifenhões fizeram o exército conquistador vacilar.

Alguns milhares de guerrilheiros, na maior parte das vezes com armamento sumario, derrotaram o exército espanhol, causando uma verdadeira hecatombe nas suas fileiras: cerca de 17.000 vítimas. O exército espanhol levaria vários anos a se recuperar desta tragédia. Vera também o nascimento nas suas entranhas dos protagonistas que perturbariam a monarquia espanhola e, moto contínuo, toda a história contemporânea de Espanha.

Segundo a lenda, o afoito General Sylvester, esmagado e humilhado, cometeu suicídio! Foi substituído pelo futuro General Franco. O mesmo que, uma década mais tarde, deixaria o Rife marroquino “pacificado” para levar a cabo o seu golpe de estado militar que abriu o caminho à guerra civil de 1936-37, à queda das forças progressistas e republicanas, e ao estabelecimento de uma ditadura fascista que duraria até à sua morte em 1975.

Poucos historiadores se deram ao trabalho de nos explicar que grande parte da história contemporânea da Europa do Sul está ligada a este acontecimento fundador, que não foi a “Guerra do Rife”, como tem sido repetido vezes sem conta, mas sim a “Revolução do Rife”.

Revolução ano 1
O ano uma de um levante do mundo colonizado: a revolta dos camponeses Rif foi a primeira centelha. A simpatia por esta revolta veio de todos os cantos do mundo colonial, da Ásia, África e América Latina.

Os revolucionários russos saudaram os Rifenhões e Trotsky, na sua redação da carta fundadora da Terceira Internacional, insiste que qualquer partido que se candidatasse à adesão a esta nova Internacional deveria colocar a luta contra a sua própria burguesia colonial em primeiro lugar, se pertencesse a um país exercendo o jugo da dominação colonial.

Os cinco anos de existência deste território libertado foi sem dúvida o exemplo que inflamou o espírito da juventude no Magrebe e, em particular, aquela sob o jugo do poder colonial francês.

“Brigadas do Bolchevismo”

Os soldados arrancados das colónias africanas, bem como os da Indochina [as chamadas tropas coloniais recrutadas a força para integrar o exército francês em guerra, NdT], um pequeno número das quais se estabeleceram na França no final da guerra, em particular em Paris, aderiram em massa ao jovem Partido Comunista, que aplicou à letra as diretivas da Internacional relativas ao trabalho anticolonial. Pelas contas da polícia de Paris, 8.000 imigrantes das colônias eram membros de um partido comunista que não tinha mais de 70.000, chamou-lhes as “Brigadas Bolcheviques”. Foi destas fileiras que surgiu a futura elite da longa luta anticolonial, com figuras emblemáticas como Ho Chi Minh, o vietnamita, e Messali Hadj, o argelino.

Ho Chi Minh foi a peça fundamental das mobilizações em França. Participou em greves que mobilizaram centenas de milhares de trabalhadores para impedir o transporte de armamento francês para o Rife. Trinta anos depois, em Maio de 1954, quando derrotou o exército francês em Diên Biên Phu, ao lado do seu estratego Giap, o tio Ho teve um pensamento para Abdelkrim, aquele a quem chamou “o precursor” e que foi seu amigo de uma vida inteira de luta.

Do Cairo, no final dos anos 40 e início dos anos 50, Abdelkrim chamou seus compatriotas norte-africanos, recrutas do exército francês, para desertarem e se juntarem à luta dos seus irmãos indochineses em armas.

Quanto a Messali Hadj, sabemos que participou da iniciativa da constituição do primeiro núcleo de militantes radicais anti-colonialistas Maghrebianos no que seria chamado, à imagem do seu programa unificador, a Estrela do Norte de África.

Se entre as principais personalidades à escala mundial, a estrela guerreira de Abdelkrim será homenageada por Mao Tse Toung, o chinês, Ghandi, o indiano, e Tito, o jugoslavo, o que é menos conhecido é que o jovem movimento surrealista em França assumiu a causa de Abdelkrim, organizando manifestações de solidariedade com os Rifenhões no teatro Odeon, gritando “Viva Abdelkrim”. Louis Aragon disse que “Abdelkrim foi o ideal que abalou a nossa juventude”. Também uma geração de guerrilheiros latino-americanos saudou a sua epopeia, em particular o grupo de Fidel Castro e principalmente Che Guevara.

“Cem lições de guerra de guerrilha

A história contada da influência de Abdelkrim na guerrilha latino-americana provém da publicação por um certo Alberto Bayo de um pequeno livrinho que se tornou a bíblia de cada aaprendiz de guerrilha e foi intitulado em espanhol “Cem lições de guerrilha”, publicado no México, onde encontrou refúgio após a Segunda Guerra Mundial.

Alberto Bayo fez parte do exército espanhol durante a sua tentativa de conquistar o Rife, que terminou em desastre em 1921. Empatizou com os camponeses de armas e estudou as suas tácticas, que mais tarde sintetizou na sua brochura. Durante o golpe de Estado de Franco, Bayo mobilizou-se ao lado dos republicanos, e quando estes últimos caíram em 1937, exilou-se com as forças aliadas contra o fascismo antes de encontrar refúgio no México, onde entrou em contacto com o grupo de Castro e tornou-se, de um certo modo, o seu instrutor na guerrilha.

Abdelkrim tentou organizar os territórios libertados, apesar da hostilidade de dois exércitos imperialistas e da utilização de todo o tipo de armas sofisticadas, incluindo armas químicas.

Foi criado um estado embrionário com uma bandeira, um hino nacional (para que conste, o do Líbano de hoje assemelha-se a ele…) e até uma tentativa de cunhar moeda. Assim como um sistema de saúde, educação e ajuda social com cuidados para as viúvas dos guerrilheiros e seus filhos. Abdelkrim procurou o reconhecimento internacional ativando redes de solidariedade com a sua causa em França, Inglaterra, Alemanha e mesmo nos Estados Unidos, sem esquecer o mundo árabe e muçulmano, que estava entusiasmado com esta primeira experiência de independência.

Mas a desigualdade dos recursos materiais e humanos acabou com esta primeira tentativa, que se tornou uma espécie de ensaio geral. Os dois Estados coloniais mobilizaram até 700.000 soldados e fuzileiros autóctones e estabeleceram para si próprios a tarefa de cortar à raiz, a todo o custo, esta experiência que foi entendida como um exemplo a ser seguido pelos povos dominados.

Abdelkrim, que estava perfeitamente consciente das relações de força e para evitar um derramamento de sangue sem esperança, decidiu abdicar e entregar-se ao comando do exército francês. Este último o exilou e sua família para a Ilha da Reunião.

Do exílio na Reunião ao Cairo

Este exílio durou até 1947, quando Abdelkrim pediu às novas autoridades da França Livre que o exilassem para o sul de França. Isto foi aceite e Abdelkrim estava a caminho de Marselha. Enquanto o seu navio estava atracado em Port Said no Canal de Suez, Abdelkrim foi contactado por membros da diáspora magrebina que viviam no Cairo, que na altura era a “Meca” da resistência à colonização francesa, sob o olhar benevolente das autoridades coloniais britânicas no Egipto. A exfiltração do homem a quem todos os combatentes da resistência do Norte de África apelidaram de “o Leão do Rife” foi rapidamente organizada.

Uma vez instalado no Cairo, Abdelkrim implementou a sua estratégia pensada durante as suas duas décadas de confinamento: uma luta armada coordenada à escala do Norte de África. Foi posto em prática no início dos anos 50 e recebido em 1952, com a chegada dos “Oficiais livres” na direção doestado egípcio, que se tinha tornado uma “República”, um verdadeiro ímpeto envolvendo uma real ajuda material e financeira.

Gamal Abdel Nasser foi o mais resoluto defensor disto, daí o desejo de vingança contra sua posição por parte das autoridades coloniais francesas, que, juntamente com os britânicos e o jovem Estado sionista, formaram uma coligação que tentou derrubar Nasser em 1956.

A luta armada utilizando a Líbia do rei Senoussi como base para o treinamento das tropas guerrilheiras e a entrega de armas fornecidas pelo Egipto começou em 1952 na Tunísia e Marrocos, e em 1954 na Argélia.

Em dezembro de 1952, as autoridades coloniais executaram o líder do movimento sindical na Tunísia, Farhat Hached, por capangas a mando, e a principal razão para esta execução foi o desejo de Hached de coordenar, ao mesmo tempo que a luta armada intermagrebina, uma luta sindical a esta escala. Ele colocou todas as suas forças na constituição de um sindicato magrebino unido, uma espécie de UGTM (União Geral dos Trabalhadores Magrebino), tal como tinha conseguido estruturar na Tunísia a UGTT (União Geral dos Trabalhadores Tunisianos). E devemos salientar que esta iniciativa não poderia não ter sido coordenada com Abdelkrim do Cairo.

Além disso, a entrada em cena dos guerrilheiros argelinos a partir de 1954 fez com que a França tomasse consciência de que não podia liderar uma luta nas três colónias ao mesmo tempo. Fato ainda mais importante porque no início da década de 1950, não só o potencial da riqueza fóssil contida no deserto argelino começava a ser percebido, em termos de gás e petróleo, mas o exército francês tinha lançado o seu plano de testes nucleares no mesmo deserto.

Magrebe Unido ou dominação neocolonial

Das três colónias, era evidente que a Argélia estava destinada a permanecer no sulco francês durante muito tempo, devido à sua posição estratégica. Para as “asas da águia magrebina” (a expressão foi cunhada por Ben Bella), ou seja, Tunísia e Marrocos, as autoridades coloniais vislumbravam a possibilidade de “independência na interdependência”.

A solução foi encontrada na pessoa de Bourguiba, sob prisão domiciliária em França, para a Tunísia, e em Mohamed V, no exílio em Madagáscar, para Marrocos. Num cenário concebido pela potência colonial, Bourguiba foi repatriada para Tunes e Mohamed V para Rabat a fim de aplicar a chamada solução de “independência na interdependência”. Basta olhar para as imagens de arquivo do regresso do “Combatente Supremo” a Tunes e do monarca Mohamed V para perceber a semelhança dos cenários escritos pelos franceses relativamente aos seus futuros súbditos.

Mas, tanto na Tunísia ou no Marrocos, este cenário e perturbado pelo levante dos guerrilheiros que se recusam a abdicar da sua estratégia unificada. E o exército francês e os capangas dos dois novos líderes levariam quase cinco longos anos a vencer a resistência tunisina e marroquina. Mais de 1.000 pessoas foram mortas na Tunísia e 15.000 em Marrocos entre 1955 e 1960. E um espírito de vingança por parte das novas autoridades em relação ao sul da Tunísia e às regiões limítrofes da Argélia pelo seu apoio, bem como ao Rife marroquino.

A balanço foi mais pesado ainda pelos combatentes da resistência argelina, que estavam dissociados dos seus vizinhos devido à cumplicidade dos dois novos regimes, com centenas de milhares de mortos, torturados e aleijados. Só que a onda que Abdelkrim levantou no início da década de 1920 dificilmente poderia ser detida.

As autoridades coloniais previram desde 1957 conceder à FLN argelino um território amputado das regiões onde já tinham começado a explorar petróleo e gás, para não falar do uso das suas bombas atómicas ao ar livre. Além disso, estes testes nucleares terão consequências catastróficas para os habitantes destas regiões, cuja extensão dos danos ainda não tem medida com precisão, geração após geração.

Guevara encontra o seu ídolo!

Em 1959, Che Guevara, numa visita ao Cairo para se encontrar com Abdel Nasser, pediu um encontro com o homem que ele considerava o seu mentor na guerra de guerrilha e o exemplo vivo do qual Che iria inspirar-se até ao seu último suspiro na Bolívia. Passou uma tarde inteira com Abdelkrim. Os dois conversaram em espanhol, uma língua que Abdelkrim dominava perfeitamente, além de Amazigh, a sua língua materna [língua dos povos originários do Magreb], árabe, e também o francês e o inglês.

Este poliglota nascido em 1882 no Rife marroquino morreu em 1963 no Cairo, onde Abdel Nasser organizou um funeral nacional. Abdelkrim sempre se recusou a regressar a Marrocos, apesar de numerosos pedidos.

Um ano antes da sua morte, honrou a memória de Salah Ben Youssef [líder da oposição ao Bourguiba que ele acusava de ter traído o povo da Tunísia e a revolução argelina), pela sua presença no fundo do avião que trouxe a sua viúva da Alemanha, na sequência do seu assassinato pelos capangas de Bourguiba, em 1962, em Colónia. Com este simples gesto, ele apagou todas as calúnias derramadas pelos apoiantes de Bourguiba contra o grande líder Salah Ben Youssef, que era também, como aqueles cujos nomes já foram mencionados, um admirador e um companheiro de luta do Leão do Rifo.


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