Escândalo das Americanas evidencia práticas de Lemann
Empresas do magnata têm histórico de denúncias de fraude, corrupção, concorrência desleal e exploração de trabalhadores
Celebrado como exemplo do “capitalismo do bem”, o empresário Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil, foi midiaticamente reverenciado nas últimas décadas por sua capacidade de fazer negócios rentáveis ao mesmo tempo em que se dedicava à filantropia. Na área da Educação, idealizou fundações como Estudar e Lemann, além do Instituto Tênis, de fomento ao esporte.
Porém, na semana passada, a boa imagem pública do bilionário começou a dissolver-se ante aquele que pode ser o maior escândalo do mercado de capitais brasileiro. De saída da presidência das Americanas S.A, função que havia assumido duas semanas antes, o executivo Sérgio Rial anunciou, na quarta-feira (10), a existência de uma “inconsistência fiscal” na contabilidade da empresa na ordem de R$ 20 bilhões. O rombo é mais que o dobro do caixa da Americanas (R$ 8 bilhões) e superior até mesmo que o patrimônio da loja, reportado em R$ 14 bilhões.
A varejista é a mais antiga operação do grupo 3G Capital – capitaneado por Lemann e seus sócios, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles – que controla negócios como a rede de fast food Burger King e a fabricante de alimentos Heinz. Por mais que mercado e imprensa tenham sido inicialmente simpáticos ao debacle enfrentado pelos três homens mais ricos do Brasil (com patrimônio avaliado em R$ 180 bilhões), a passagem das horas torna mais evidente que a situação das Americanas configura uma fraude que vem se avolumando há décadas, ocultada pelos executivos com o propósito de melhorar seus balanços e se valorizar no mercado.
E o escândalo não para por aí: conforme documentos públicos fornecidos pela empresa para a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), diretores da varejista venderam R$ 241 milhões em ações entre julho e outubro de 2022 – o que indica vazamento de informações privilegiadas.
Como resultado disso, as ações das Americanas caíram 77% na quinta-feira (13), para uma inacreditável valorização de 58,8% no dia seguinte. A milagrosa “recuperação” foi atribuída à especulação. Na manhã desta segunda-feira, os papéis da empresa recuavam 38,73%, valendo R$ 1,93 cada. Um pedido de recuperação judicial é uma possibilidade no horizonte.
Os grandes prejudicados até aqui são os pequenos investidores que viram suas ações virarem pó da noite para o dia. Nesse rol se incluem correntistas do banco digital Nubank, que promoveu um fundo de renda fixa que expôs mais de 20% da carteira a títulos corporativos. Entre eles, o das Americanas. Cerca de 1,3 milhão de cotistas foram prejudicados.
Até mesmo tubarões do mercado estão em guerra contra Lemann e cia. André Esteves, do BTG Pactual, um dos credores das Americanas, luta na Justiça para reverter decisão que impede a execução de dívidas da companhia. Na visão do BTG, “fraude contábil não é função social legítima, merecedora de proteção da lei” e o ato “deve ser punido severamente, com suas potenciais consequências criminais”. Conforme o jornal Valor Econômico, nesta semana, os bancos Bradesco, Santander, Itaú e Safra também devem judicializar o caso. À Justiça, a Americanas S.A declarou endividamento total de R$ 40 bilhões, dos quais R$ 18,8 bilhões são com instituições financeiras.
Capitalismo predatório
A apelação apresentada pelo BTG ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) contra a decisão favorável às Americanas traz acusações incomuns (pelo menos no meio empresarial) contra o trio por trás da empresa. A ação descreve a atuação de Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira em outras companhias nas últimas décadas, e os acusa de agir com má-fé. Destacam ainda tentativa de retirada de R$ 800 milhões em investimentos do banco horas antes da divulgação do rombo “de maneira sorrateira”.
“O objetivo era simplesmente concluir a fraude sem exposição dos verdadeiros atores por trás do fracasso. O escândalo da Americanas não se trata de um rombo recente, mas construído ano a ano há mais de década, tudo parte de um plano engendrado para lucrar às custas de todo o mercado financeiro e sair ileso, com bens blindados no Exterior”, afirma a defesa do banco.
Essa não é uma acusação isolada. Há décadas, analistas, economistas e mesmo políticos acusam Lemann, em particular, de práticas como fraudes, corrupção, concorrência desleal, e superexploração de trabalhadores. O verniz de filantropo ajudou que a pecha não aderisse publicamente ao magnata. Em seu meio, porém, suas práticas nocivas eram bem conhecidas.
Além da 3G Capital, o empresário é um dos coproprietários da AB InBev, a maior cervejaria do mundo; da B2W Digital; da Kraft Heinz, das redes Burger King, Popeyes e Tim Hortons; e do fundo GP Investments. Sua biografia vende uma falsa ideia de self-made man, que serve para justificar a igualmente falsa premissa da meritocracia, e a do empreendedor que atingiu a excelência graças ao trabalho “duro” para justificar fortunas obscenas.
Herdeiro de uma família de comerciantes suíços que se destacam economicamente há mais de 600 anos, Lemann adquiriu a Corretora Garantia, junto com Telles e Sicupira nos anos 70. Em 1976, com autorização do governo Geisel, a empresa converteu-se em banco e, nas duas décadas seguintes, o trio viu seu patrimônio crescer exponencialmente. Pudera. O Banco Garantia foi alvo de inúmeras ações por assédio moral – pelo foco agressivo no cumprimento de metas ambiciosas, criação de ambientes corporativos insalubres e estímulo à produtividade por meio de pressão, assédio e humilhação – além de ter sido investigado pela CVM por irregularidades no mercado de capitais. A instituição chegou a ser multada pelo Banco Central por fraude cambial, operações irregulares e remessa ilegal de dinheiro para o Exterior. O Garantia também teria participação no esquema de pirâmide financeira de Bernie Madoff.
As práticas nocivas renderam lucro aos sócios que compraram as Lojas Americanas (1982), a Brahma (1989), e a Antarctica (1999). A despeito das denúncias de truste, o Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (Cade) autorizou Lemann a fundir as cervejarias Brahma e Antárctica, dando origem à Ambev, que passou a controlar 70% do mercado brasileiro de cerveja. Em 2004, a Ambev se fundiu com a belga Interbrew, dando origem à AB InBev, maior cervejaria do mundo. Nas transações, a CVM identificou abuso de poder, negociações irregulares e uso de informação privilegiada para especular no mercado de ações. Lemann e os sócios pagaram R$ 18,6 milhões para que os processos fossem encerrados.
Nas empresas do grupo, seguem comuns as denúncias de abusos trabalhistas de toda a ordem – de carga horária abusiva à espancamento em “corredor polonês” como prática de reuniões corporativas – à eliminação de direitos trabalhistas para diminuir custos de produção. A Fundação Estudar, ONG de incentivo à educação criada por Lemann em 1991, nasceria com a dupla função de minimizar a reputação do magnata e além de conceder-lhe benefícios tributários. E políticos. Sem despertar atenção, a fundação financiou lideranças do Movimento Brasil Livre (MBL), Vem Pra Rua e outras organizações que ajudaram na guinada à direita dos protestos de 2013 e criaram o ambiente de ruptura que culminou no impeachment de Dilma Rousseff.
As ONGs também são acusadas de burlar a legislação eleitoral que proíbe o financiamento privado de campanhas e de infiltrar representantes em órgãos governamentais e partidos políticos. Em 2018, Tábata Amaral (PDT), Felipe Rigoni (Novo) e Tiago Mitraud (PSB) foram os primeiros representantes da chamada “bancada Lemann” na Câmara dos Deputados. Todos estudaram em universidades norte-americanas, como Harvard, Oxford e Yale, patrocinados pela Fundação Lemann. E todos votaram a favor dos interesses de mercado professados pelo benfeitor.
O caso Enron
Lemann foi sorrateiro ao usar seu poder de influência para tomar a Eletrobrás – negócio concluído em junho do ano passado. Iniciou como acionista minoritário em 2015, no curso do impeachment de Dilma, e passou a indicar gestores para a companhia. Capitalistas de rapina, os executivos privilegiaram dividendos à investimentos necessários. Anos mais tarde, foi a 3G Capital, de Lemann, quem produziu uma avaliação do preço da Eletrobrás abaixo da realidade. No ano passado, quando o governo Bolsonaro abriu mão do controle da companhia pela emissão de ações, tornou-se majoritário.
As práticas heterodoxas (para usar linguajar do mercado) das empresas de Lemann fazem recordar a Enron, empresa texana de comércio de gás, que chegou a ser a sétima maior corporação norte-americana no final dos anos 90. Em 2001, a queridinha de Wall Street foi forçada a revelar que seus executivos manipulavam falsamente rentabilidade e lucratividade da empresa aos investidores e acionistas – inclusive contratando auditorias independentes que nunca acharam rastros de falha na contabilidade da companhia. Nos últimos anos, duas empresas globais de auditoria, PwC e KPMG, investigaram as contas da Americanas S.A. Nada encontraram.
Resta saber se o desfecho da Enron se repetirá com as Americanas. A falência da empresa de gás deixou 21 mil pessoas desempregadas e aos pensionistas e acionistas perderam mais de US$ 25 milhões. O dono da Enron, Ken Lay, foi condenado a 45 anos de prisão por fraude e seu gerente de operações financeiras, Jeff Skilling, a 185 anos.
Caso fosse uma empresa pública, o rombo das Americanas suscitaria, ao menos, pedidos de CPI e prisões. Resta saber os próximos passos da CVM a respeito dos controladores e ex-diretores da empresa. A comissão abriu três processos administrativos para investigar as condutas dos investidores e possíveis infrações.
“Após a investigação e apuração dos atos, fatos e eventos, caso venham a ser formalmente caracterizados ilícitos e/ou infrações, cada um dos responsáveis poderá ser devidamente responsabilizado com o rigor da lei e na extensão que lhe for aplicável, sendo facultado à CVM recorrer também aos convênios e acordos de cooperação com Polícia Federal e Ministério Público Federal”, aponta a autarquia em nota.
Resta saber se a “mão invisível do mercado” – sempre trêmula diante de qualquer benefício aos mais pobres – não quererá afagar o trio de milionários a conduzir uma empresa em naufrágio.