“Nova” república volver
A pactuação pelo alto e os desafios da esquerda radical.
Não tem como começar um texto de análise sem destacar a enorme vitória da classe trabalhadora e do conjunto do povo brasileiro à derrota do Bolsonaro. Um projeto genocida comprometido apenas com o reacionarismo e ataques sistemáticos à classe, seja pela retirada de direitos e liberdades, como pelos ataques físicos por meio da expansão da violência institucional, como com o desmonte do SUS e a leniência com o vírus. O que temos certeza é que a retirada desse projeto de morte do poder foi o primeiro passo essencial para uma mudança na correlação de forças e da conjuntura no país. A segunda convicção é que a ascensão do Lula à presidência da república está longe de ser a solução de todos os nossos problemas e é apenas um outro passo de uma luta que se pretende transcorrer durante todo o próximo período para derrotar a extrema direita e estruturar o projeto da esquerda radical.
No âmbito internacional, experiências de respostas ao avanço da extrema direita têm-se dado em diversos países. Por mais que não haja uma fórmula pronta, já conseguimos apontar o que deu de errado para não repetir os erros em nosso país. Sem dúvida, os dois casos que gostaria de destacar são as experiências de novos partidos de esquerda que surgiram agora no século XXI, foram sensações na década passada, e agora passam por uma intensa crise – tanto o Bloco de Esquerda em Portugal quanto o Podemos na Espanha. Ambos os casos deram respostas políticas que foram se diluir nos partidos tradicionais da esquerda em cada um dos seus países, os Socialistas e o PSOE, sendo base ou entrando no governo. O resultado é que depois de anos de consolidação ambos sofreram grandes derrotas eleitorais nas últimas eleições e a esquerda tradicional da ordem ganhou um novo respiro depois de passar por um período de decadência. Além disso, esses partidos da ordem não resolveram os mínimos problemas da classe trabalhadora, vide a greve histórica de professores em Portugal, ou mesmo deixaram o caminho aberto para consolidar a extrema direita como oposição e alternativa de poder em muitos desses países.
Neste sentido, para não cometer os erros da esquerda do século XXI, este texto busca debater qual seria a localização do PSOL e a esquerda radical no próximo período. Para tanto, irei me debruçar em caracterizar como será o governo ao buscar antever e detalhar as movimentações futuras através de situações históricas similares, como apontamentos nesse período de transição e a própria experiência anterior do PT.
A frente ampla e o pacto dos de cima
Todo o processo eleitoral de 2022 foi marcado por um processo de frente ampla contra o Bolsonarismo. Os diversos retrocessos do governo vigente, mais os apontamentos para o fechamento do regime, fizeram com que uma chapa de antigos opositores Lula-Alckmin ocorresse, tornando-se o principal adversário do genocida no processo eleitoral, ao passo em que dava a toada que haveria muita diferença aos governos anteriores do PT. Este processo se evidencia de forma mais contundente no segundo turno e finaliza com o acordo entre PT e Lira para tocar o governo que virá.
Esse arco de alianças para constituir o governo vai muito além da ideia de frente popular: no enfrentamento ao fechamento do regime, o que está se desenhando é um governo de união nacional. Celso Rocha de Barros, em seu mais recente livro “PT, uma biografia”, descreve o momento como similar ao processo de redemocratização na década de 1980, mas agora o PT no papel do PMDB naquele momento.
A derrota da emenda Dante de Oliveira fez com que o movimento de massas das “Diretas já” fosse derrotado e o processo de transição foi realizado numa composição por cima através da aliança Sarney-Ulysses Guimarães. Nesse momento, a escolha do PT foi se manter vinculado aos movimentos sociais e aos setores de baixo chegando a votar contra o texto constitucional. Ainda pequeno e muito concentrado, o papel que o Partido dos Trabalhadores escolheu foi se enraizar e estruturar nas bases da classe trabalhadora.
Como bem destaca Celso Rocha de Barros (2022: 507): “Hoje não há ninguém entre o Partido dos Trabalhadores e a direita radical. Quem tem que conquistar o apoio do empresariado à democracia é o PT, quem terá que fazer alianças com o equivalente do velho PFL é o PT, quem vai ser vidraça para os movimentos sociais é o PT”. Ou seja, por mais que tenha diversas mudanças conjunturais e estruturais no Brasil, a posição social que o próximo governo Lula vai tomar vai ser similar à do PMDB na década de 1980. Manutenção de esquemas no orçamento, acordos de anistia expressos na nomeação do Múcio na Defesa, e apoio ao Lira na Câmara reforçam essa posição. Então a pergunta que fica é: qual seria a posição que o PSOL deveria se colocar?
Inicialmente, é importante destacar uma conjuntura muito diferente. Enquanto a redemocratização acontecia num momento de ascensão das lutas sociais, nós vivemos num momento de intensa polarização, com a direta e setores da classe ocupando as ruas sem uma clara hegemonia. Um dia a negritude dá um basta de violência policial, no dia seguinte a direta acampa nos quartéis, eles chamam atos no 7 de setembro, nós fazemos o tsunami da educação. Para piorar muitos da esquerda não se propõe a organizar na base essa vanguarda mobilizada, apenas esperando ganhar louros eleitorais de dois em dois anos. O PSOL tem um papel de ser referência para estes setores em luta, pois para além da campanha contra a anistia essa é a principal tarefa para combater a extrema direita. Mas como fazê-lo? Que postura deve ter um partido de esquerda radical?
O PSOL ainda é um partido pequeno que está se consolidando principalmente nas capitais e nas grandes cidades do Sul e do Sudeste. Para avançar na sua construção é fundamental ampliar o enraizamento na classe, nos setores populares e no interior do país. Tendo esta finalidade o partido deve adotar uma postura independente ao governo, e uma relação cada vez mais próxima das bases. Comprometer-se com cargos no governo de frente ampla significa se diluir e não aparecer como alternativa para setores populares que serão atingidos por ações e reformas que virão no próximo período. Para além disso, é fundamental ter um setor com esta posição para que não deixe os setores da classe descontentes de bandeja para o bolsonarismo.
A fim de reforçar essa posição que deveria tomar o PSOL vou apresentar os dois principais problemas que esse governo de frente ampla vai enfrentar no próximo período e como a esquerda radical deve atuar.
Crise econômica e o ajuste fiscal
O elemento inicial a ser destacado são as diferenças no cenário mundial entre 2003 e 2023. Os vinte anos que diferenciam as duas posses são um abismo entre duas conjunturas opostas. Enquanto no início do século havia um crescimento acelerado dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) – com destaque para a China como locomotiva do crescimento mundial – a Argentina, segundo principal parceiro comercial do país, estava saindo de uma profunda crise com crescimento econômico acima de 8% ao ano. Hoje vivemos um período de alta da inflação mundial, com baixo crescimento, sob a sombra de uma guerra que não tem perspectiva de terminar. Além da China estar passando por um período de crescimento moderado, a Argentina passa por uma crise econômica de grandes proporções, sem perspectivas de volta de crescimento como no momento anterior.
Este cenário internacional inviabiliza o governo a fazer mediações com as margens de ganho da economia geral como foi feito na primeira passagem de Lula na presidência. Haverá a necessidade de fazer escolhas com pouca margem de manobra para ganhos paralelos. Haddad, o futuro ministro da fazenda, já disse que o ano será de cortes e ajustes – ou seja, para além de viabilizar e focar a atuação sobre os mais pobres com o Bolsa Família encorpado desde esse ano, o restante da política vai ser para garantir uma política fiscal que dê conta de garantir o pagamento da dívida pública que sobe de forma acelerada.
As movimentações iniciais do Haddad já dão bem esse norte. Em vez de apresentar o fim da política de Preço de Paridade Internacional (PPI) da Petrobrás, que pressiona o preço dos combustíveis em troca de maiores lucros dos acionistas, sua política é corte dos subsídios e a volta da elevação no preço da gasolina e do diesel, escalando a inflação no conjunto da cadeia produtiva. Em vez de debater a anistia à dívida dos programas de financiamento estudantil ou da agricultura familiar com o Estado, o centro é manter os planos de safras e subsídios e anistia ao agro – exatamente o setor que financia a extrema direita. Acabar com a autonomia do Banco Central e realizar a auditoria da dívida pública sequer entram em pauta no momento que vivemos. Ao invés de reverter políticas de privatização ou a reforma trabalhista, nas declarações Haddad já colocou que o problema é que foi malfeito, e não o projeto em si.
Por mais que a sombra do governo anterior dê ares de respiro para as medidas do governo petista, não podemos tirar de foco que quase metade da população votou na extrema direita e que se não houver um salto na qualidade de vida e nas condições concretas do nosso povo esse setor vem mais forte para o próximo período. Por mais que os programas de redistribuição de renda direta tenham um papel fundamental de garantia das condições das populações mais pobres, temos mais de 70% da classe que não é atingida diretamente por essas políticas.
Governabilidade e corrupção
O segundo elemento que é fundamental destacar para compreender o próximo período é a relação desta frente ampla com todos os setores fisiológicos, em especial no legislativo e agora compondo a base do governo nos ministérios. A Nova República transformou a palavra política como sinônimo de politicagem, ou seja, a arte de construir um “toma lá dá cá”, enquanto o centro do debate de poder deveria ser projeto. Logo, no anúncio dos ministros, Lula já deixou claro a Bivar, Alcolumbre, Jader, Renan Filho, que se não tiver entrega de votos no congresso não tem mais ministério.
A entrega destas estruturas de poder não pode ser vista apenas como algo “do jogo”, quase como algo fatídico, sem saída. O primeiro elemento a destacar é como esta movimentação mina a disputa de um projeto mais de médio e longo prazo. Um bom exemplo é o ministério das Cidades para o PMDB, o mesmo partido que irá lutar para manter a prefeitura de São Paulo que tem como principal adversário o Boulos, ou os transportes para os Barbalhos, a família que deve desbancar o PSOL da prefeitura de Belém em 2024. Talvez o caso mais emblemático seja da ministra miliciana, Daniela Carneiro do União Brasil, ser a chefe direta do ex-deputado Marcelo Freixo.
Nesta forma de organização, os ministérios funcionam como lobistas, com cada um trabalhando para os seus interesses privados. A relação com o Agronegócio de Carlos Fávaro ou Simone Tebet, ou deixar a indicação da Integração Nacional – pasta que administra as parcerias e repasses das emendas – para o União Brasil, que é base de apoio aos governos de extrema direita do sudeste. Ou mesmo quando se coloca pessoas ligadas ao PT, como o caso da fazenda, as principais secretarias estão ligadas a monetaristas próximos a agentes do mercado.
E sem dúvida o elemento sistêmico neste tipo de governo é o tráfico de influência e os diversos tipos de corrupção, como o favorecimento de fornecedores em licitações, privilegiando determinados setores com o intuito de beneficiamento privado. A atração por estes setores fisiológicos para os governos é imã para esse tipo de problema, e a cada momento em que o governo tentar fazer alguma coisa fora do script da elite, os setores dominantes vão trazer à tona um problema desses. A esquerda não encarar esse problema vai dar de bandeja essa pauta cara do nosso povo para a extrema direita e por consequência fortalecerá os setores golpistas que se mantém a sombra do poder só esperando para voltar à cena.
Só mais um respiro
Durante o processo de redemocratização, mesmo com a pactuação e articulação por cima do PMDB, só foi possível diversas vitórias da classe trabalhadora – como a instituição do sistema de seguridade social, a implementação do Sistema Único de Saúde, as garantias constitucionais do direito à educação pública e de qualidade em todos os níveis, o caráter social da propriedade, entre outros – por causa de uma intensa mobilização social, na qual o PT teve um papel importante junto à CUT e aos outros movimentos sociais.
Muito longe do cenário anterior, o que vemos hoje é um processo de incorporação de todos esses setores para a pactuação por cima. Um processo de institucionalização dos movimentos e iniciativas que vai jogar mais água no moinho da extrema direita. Apenas colocar os subalternos em destaque em conjunto com a consolidação de um programa radical a partir de referências política, pode fazer avançar nas nossas pautas e enterrar esse setor fascista de nossa sociedade. Se não houver pressão por baixo, a manutenção da política do bolsa família com um pouco mais de representatividade não vai ser o suficiente para conter uma extrema direita mobilizada e com política ativa para diversos setores da população.
Hoje o bolsonarismo dirige São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais e mantém a sua força pelo sul e centro oeste, com espaços no norte e permeabilidade em diversas capitais do nordeste. Para além dessa estrutura nos principais Estados da União estão com política ativa para diversos setores da população: são eles que estão pautando o passe-livre na maior capital do país; são eles que estruturam os grêmios no estado de São Paulo e reúnem mensalmente nas diretorias de ensino com o melhor da juventude; são eles que com a pauta do empreendedorismo dão alguma resposta, mesmo que torta, para o processo de precarização do trabalho; além de serem eles que carregam de forma cínica a pauta da ética na política.
A debilidade do governo já é escancarada quando setores da burguesia tradicional já têm receio de ocupar cargos, mesmo com todas as demonstrações de que Lula e Haddad vão pactuar com todos. As rusgas na movimentação dos Almirantes da marinha também apontam para uma conturbada relação com as forças armadas. Ou seja, mesmo entregando os dedos e os anéis não sabemos até quando a nossa elite vai suportar esse governo e nos dar esse respiro num país polarizado.
Numa situação como essa, a pior postura da esquerda radical seria dar uma de avestruz e simplesmente ser capturada pela política institucional do governo Lula, transformando-se numa base de transição simples e direta. Para além de retornar às bases, dialogar com os setores mais dinâmicos da classe e organizá-los, será nossa tarefa sem medo anunciar nossa pauta e agenda. Barrar qualquer forma de anistia e punir o bolsonarismo por seus crimes; avançar no processo de legalização das drogas como medidas de combate à criminalização da juventude negra; desmilitarização das polícias e aprofundamento da relação com os praças; combate à violência de gênero e em defesa do direito ao aborto; revogação das reformas trabalhistas e da previdência; fim da PPI na PETROBRAS e das políticas de privatização e de concessão; taxar grandes fortunas e ampliação do imposto sobre herança; fim da autonomia do Banco Central e auditoria da dívida pública; entre outras.
O PSOL tem um papel a cumprir nesse momento, seja para se apresentar como alternativa, seja para enfrentar o crescimento da extrema direita. Não é na disputa de quem melhor gerencia políticas públicas que vai nos postular, muito menos combater o bolsonarismo. É exatamente aprofundar nossas relações com as bases da classe, assim como postular um programa radical pela esquerda que vai nos colocar aptos para enfrentar este novo momento. A vitória do Lula nos deu um respiro, agora é aprender com os erros para não esperar algo pior logo na frente.