A reestruturação que a esquerda revolucionária e o sindicalismo do México querem levar às ruas
Dirigente do Movimento Esquerda Socialista, Roberto Robaina participou de congresso que marcou a fusão de duas organizações marxistas e revolucionárias
Há uma reorganização da esquerda revolucionária do México, interligada ao anseio de reestruturar os movimentos populares e sindicais no país, que pode – e deve – ser olhada com atenção e interesse por aqueles grupos que se reivindicam internacionalistas, marxistas e revolucionários, sobretudo os latino-americanos. Nos últimos dias de janeiro, a Cidade do México sediou o congresso que marcou a fusão de duas organizações marxistas e revolucionárias, reunindo cerca de 200 quadros militantes de todo o país. Ambas já atuavam juntas na prática, mas se propuseram a selar acordos e princípios, vislumbrando o fortalecimento político desse eixo de ideias e ações: a Organização Nacional del Poder Popular (MSPP) e a Coordinadora Socialista Revolucionária (CSR). A primeira com estrutura nacional, cuja maior força está em Chiapas, região ao sul do território mexicano berço do Zapatismo, e a segunda ligada a IV Internacional. Unidas, formaram o Movimento Socialista do Poder Popular (MSPP). No mesmo período, ocorreu o Foro da Luta Internacional Contra as Direitas, em que se discutiram estratégias para conter o avanço da extrema direita no mundo.
O Movimento Esquerda Socialista (MES) foi uma das organizações que participaram dos eventos com a presença do dirigente Roberto Robaina como um dos convidados, ao lado do deputado espanhol e militante anticapitalista Miguel Urban e da militante feminista Heather Dashner, do México. Ficou evidente ali, como percepção comum a todos, a necessidade de se aproveitar o momento político para reestruturar as lutas de classes e os movimentos de trabalhadores e trabalhadoras, não só no México, mas em todo o mundo, fortalecendo as organizações operárias tão massacradas pela lógica do capitalismo neoliberal.
O México foi o precursor dos reveses eleitorais que a extrema direita sofreu na América ao garantir a vitória de Andrés Manuel López Obrador (AMLO), em 2018. Depois de décadas sob o domínio das burguesias oligárquicas reacionárias, representadas pelo Partido Revolucionário Institucional (PRI), Partido de Ação Nacional (PAN) e Partido da Revolução Democrática (PRD), os mexicanos conseguiram eleger um governo progressista, estabelecendo nova relação de forças políticas que permite uma reorganização das massas a contento das demandas das classes trabalhadoras. Viu-se, na sequência de processos eleitorais latino-americanos, levantes populares importantes, como no Chile, em que a população foi às ruas e promoveu, em 2019, as chamadas revoltas sociais e, três anos depois, deu ao ex-líder estudantil Gabriel Boric o mandato presidencial. Na Colômbia, os protestos de 2021 foram uma reação ao anúncio de reformas do então presidente Ivan Duque que prejudicavam os mais pobres. No ano passado, a população do país andino levou ao poder o candidato de esquerda, o ex-guerrilheiro do M-19 Gustavo Petro. Todas essas movimentações precederam outro fracasso eleitoral da extrema direita: a vitória de Lula sobre Bolsonaro no Brasil.
Esperanças sem ilusões frente aos novos governos
Mas nesses processos todos, é importante não se acomodar em ilusões. E essa consciência da real configuração dos governos dá as bases para a luta que o novo MSPP mexicano pretende estabelecer. Como nenhum desses governos, Obrero não está caracterizado, entre os integrantes do MSPP, como um governo anticapitalista. As lideranças que buscam um sindicalismo independente no país – os sindicatos mexicanos, via de regra, foram cooptados pelos governos – também não reconhecem seu mandato dessa forma, tampouco têm nele um apoiador do sindicalismo independente. No entanto, a derrota de PRI, PAN e PRD e as já mencionadas alterações no panorama político da AL trazem uma lufada de esperança em dias melhores, sem que se engendre menor necessidade de luta e organização. Não se pode equiparar o governo de AMLO com os anteriores, estreitamente ligados às oligarquias burguesas e à corrupção.
No México, medidas como o estabelecimento de um auxílio de US$ 300 a cidadãos a partir dos 65 anos, fortalecimento da moeda local, que permitiu valorização do peso mexicano de 20% em relação ao dólar e o intento de reformular o setor energético, foram fundamentais para que Obrador encaminhasse o que proclamou governo da 4ª Transformação (4T). As três primeiras estariam ligadas ao processo de independência do país, em 1821, às reformas ao longo do século 19 e à Revolução Mexicana (1910-1917), em que o movimento liderado por Emiliano Zapata derrotou a ditadura de Porfírio Díaz.
Mas há muito a fazer para que se tenha de fato um desenvolvimento econômico sustentável para as classes trabalhadoras, as mais afetadas pela recente crise capitalista, que se desenrola desde 2008 e se agravou com os reflexos das mudanças climáticas – secas ou enchentes persistentes com danos à agricultura –, com a pandemia de Covid-19, que afetou setores de serviços em todo o mundo, e com a guerra na Ucrânia, que promoveu instabilidade no setor energético.
Há grandes limitações e contradições no programa obradorista. Entre elas manter o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) com Estados Unidos e Canadá, incorporar em seus quadros representantes da oligarquia, não realizar expropriações, manter o pagamento da dívida pública e respeitar contratos e concessões mineiras, dos quais derivam conflitos trabalhistas. Ou seja, aspectos-chave da economia neoliberal foram mantidos. Obrero também não tirou do papel medidas como a taxação das grandes fortunas e cerco à violência imposta pelo narcotráfico a comunidades camponesas e indígenas.
É preciso deixar claro que o Morena, partido de Obrador, é formado por várias classes e tem uma orientação burguesa, cujo esforço limita-se a “humanizar” um pouco o capitalismo, o que gera boa impressão nas massas e ganho eleitoral. As correntes mais à esquerda já se subordinam a essa lógica sob o argumento da unidade para governar. Então, estruturalmente nada muda, ainda que não seja um governo comparável ao PRI. Em boa medida, essa configuração é semelhante à do governo Lula, no Brasil. Contradições parecidas com nuances locais.
Em ambos os países, coloca-se como tarefa urgente da esquerda revolucionária fortalecer os movimentos sociais tanto do ponto de vista organizacional quanto político, garantindo força, unidade e independência política do Estado. Essa independência é urgente, porque se observou, no México, um arrefecimento dos movimentos a partir da vitória de Obrador, tal como se viu no Brasil no início dos anos 2000 com o primeiro mandato de Lula. Não é possível combater a extrema direita sem o fortalecimento das organizações sociais e de trabalhadores.
O MSPP quer revigorar a luta de classes e fazer com que pautas caras aos movimentos sociais não sejam engolidas pelo discurso conciliador e da governabilidade com a burguesia. Então, é uma reestruturação para fazer valer o compromisso com o fim da violência e o processo de militarização no país, com a nacionalização de setores estratégicos, como energia e transportes, instituição de renda básica universal para maiores de 18 anos, a partir de uma reforma tributária em que os ricos paguem mais, valorização de salários, redução das jornadas de trabalho para 30 ou 35 horas semanais, entre outras reivindicações urgentes.
Por um sindicalismo independente
Por mais de quatro décadas, o México viveu os efeitos da política neoliberal ditada por multinacionais, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional. São efeitos econômicos, mas sobretudo culturais e sociais. Muitas privatizações e enfraquecimento das estatais, que já foram em torno de 1,2 mil empresas. O sindicalismo, evidentemente, entrou em crise, sofrendo ataques severos a conquistas dos trabalhadores que remontam à Revolução Mexicana (1910-1917). O México foi o primeiro país da América Latina a conceder, constitucionalmente, todos os direitos trabalhistas, como folga, salário mínimo, férias, previdência etc.
A derrota do PRI fortificou a necessidade de reestruturação do movimento sindical independente. Sindicatos e advogados trabalhistas pleitearam uma Reforma alinhada aos acordos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e que assegure direitos históricos. Em 2019, a Reforma Trabalhista foi aprovada. Não abarcou tudo aquilo que interessava ao movimento sindical, mas avançou à medida que previu eleições – com voto secreto e em urnas – para dirigentes, representantes e comitês sindicais, além de equidade de gênero na ocupação de cargos nos sindicatos.
“Do ponto de vista legal, abrem-se todas as possibilidades para uma reorganização sindical para formar sindicatos independentes do governo’, avalia Raul Lescas, diretor do Instituto de Formação Política da Confederação Nacional de Sindicatos Independentes do México, entidade que está à frente dessa nova tentativa de reorganização sindical sem que haja o domínio de governo, partidos, classe patronal ou quaisquer forças que não sejam a dos próprios trabalhadores, que, atualmente, no México, representam cerca de 40 milhões de pessoas.
O desafio de um movimento sindical independente está posto. É um desafio histórico que vem desde o final da década de 1950, quando houve a luta pela democratização do sindicato dos ferroviários, a custa de mais de 10 mil presos somente entre a categoria. Em San Luis Potosí, há mais de duas décadas, o Sindicato Independente dos Trabalhadores e das Trabalhadoras resiste para que respeitem sua liberdade sindical.
Há outra frente de combate não menos importante nessa reestruturação sindical proposta pela Confederação: ampliar a taxa de sindicalização, que atualmente não chega a 10% da população ocupada do México, e não deixa de ser um reflexo da atuação dos ditos pelegos, que ao de décadas foram se corporativizando com os governos e sujeitando a classe trabalhadora aos interesses de quem a explorava.
Por conta disso, a formação política ganhou prioridade na reestruturação. Lescas ressalta que é por essa formação política que se poderá formar quadros de dirigentes e lideranças entre os trabalhadores que tenham mais condições de defender a autonomia sindical e evitar a repetição de erros do passado:
“Essa reestruturação passa por desorganizar os sindicatos pelegos e organizar os trabalhadores desorganizados. E a formação política tem de ir paralelamente a essa reestruturação. A base da transformação de nosso país tem de vir de baixo, não de cima. Tem de vir dos trabalhadores do campo e das cidades e dos serviços”.