Por que Lupi não vai zerar a fila do INSS?
Pela enésima vez, reduz-se um problema crônico a medidas de boa vontade. A fila do INSS e a falta de perspectiva de acesso aos benefícios são sintomas de uma doença: a Previdência Social não está a serviço da classe trabalhadora
A Previdência Social enfrenta dois desafios fundamentais: superar a ineficiência da instituição que executa a política pública e a ausência de um projeto efetivamente solidário para acolher a velhice, a incapacidade para o trabalho e outros eventos imprevisíveis. É universalizada a opinião de que hoje o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) tem um atendimento ineficiente, com benefícios economicamente reduzidos e critérios dificultados pelas reformas previdenciárias para acessá-los.
O primeiro governo Lula acabou com as filas que se formavam desde a madrugada em frente às agências do INSS, com a implantação do agendamento eletrônico, modelo que também se esgotou e tornou longa a espera para a chegada até os guichês de atendimento. Após o golpe contra Dilma, a virtualização do atendimento e dos processos, acelerada durante a pandemia de COVID-19, criou aviltantes filas virtuais, além de restringir o acesso da população aos benefícios e serviços oferecidos pela autarquia.
Um problema que completa 100 anos
O centenário da previdência social pública no Brasil, na literatura oficial contada da publicação da chamada “Lei Eloy Chaves”, passou quase despercebido. Nem mesmo a recriação do Ministério da Previdência Social, com Carlos Lupi sem ineditismo declarando “zerar a fila”, foi capaz de mobilizar o governo federal, que se restringiu à solenidade de entrega de medalhas, declarações sobre o “Cartão do Beneficiário” e a tímida divulgação de uma publicação comemorativa, ainda elaborada sob o comando de “Oliveira”, como gosta de ser chamado pela claque o ex-ministro bolsonarista [José Carlos de Oliveira, ex-presidente do INSS].
Na história recente, os direitos ampliados pela Constituição de 1988 foram subjugados à lógica neoliberal na sua regulamentação e implementação; por meio de pseudo-cálculos atuariais, foram esmagados os benefícios contributivos e tomadas medidas para obstaculizar o acesso aos benefícios pecuniários assistenciais. A ofensiva contra direitos previdenciários, de forma mais acintosa ocorreu depois da compra da reeleição de FHC, quando foi instituído o fator previdenciário. O segundo ato foi deixado ao cargo de Lula 1, quando optou por retirar “privilégios” do serviço público ao instituir idade mínima para aposentadoria, ignorando tempo de contribuição e deixando de fora os altos escalões e os militares.
Tanto Dilma, quando colocou Joaquim Levy, quanto Temer e Bolsonaro, fizeram uma série de reformas ou mini-reformas, mais ou menos percebidas, retirando, reduzindo ou restringindo direitos aos benefícios da Previdência Social e da Assistência Social. Mudanças abrangendo desde o senso comum das jovens viúvas, passando pelo ódio aos pouquíssimos dependentes que conseguem acessar o auxílio-reclusão, ou mesmo a análise cartesiana de critérios de miserabilidade para benefícios da LOAS, chegando ao sobretempo para alcançar a aposentadoria. Hoje, a classe trabalhadora e seus filhos pressupõem que trabalharão até morrer, pois o sistema de previdência se tornou inatingível para os objetivos primários formulados para terem na sua velhice e no adoecimento a substituição de renda, ou para que pudesse amparar seus dependentes em eventos imprevisíveis.
O contingente de desalentados, subempregados e precarizados incluídos no auxílio emergencial expuseram o esgotamento da concepção constitucionalizada de Seguridade Social. A conformação do Congresso Nacional, aliada à previsível reedição do privilégio ao superávit fiscal, não permite acreditarmos na revogação das reformas danosas, tampouco de um debate para além de ditos especialistas sobre a política pública de Previdência Social. Também não há muito que se esperar do movimento sindical, cujo debate corporativo é o único motor, numa categoria de trabalhadores dirigida por entidades fragmentadas e burocratizadas. Talvez, no movimento popular resida a indignação à desesperança ao atual sistema previdenciário, capaz de impulsionar o debate de um sistema previdenciário sob controle da classe trabalhadora, desviando do factoide do “déficit da previdência”.
Até agora, nada de novo no novo governo
A maior autarquia do governo federal, dois meses após a posse de Lula, segue sem qualquer mudança de rumo, mantendo o bolsonarismo em todos os níveis de gestão. A posse de um presidente interino no INSS ligado ao centrão, em 1º de fevereiro, e a nomeação da principal diretoria da instituição, no dia 15, foram as únicas trocas, demonstrando a importância secundária do instituto para a política governamental. Diretorias, coordenações-gerais, superintendências regionais e gerências executivas seguem sendo ocupadas por bolsonaristas e terraplanistas, que passam a elaborar mirabolantes planos emergenciais para justificar sua permanência nos cargos, seguindo a lógica de restrição no atendimento presencial e gerenciamento de filas virtuais cada vez maiores para o acesso aos serviços previdenciários e assistenciais.
Desconsiderando as disputas para loteamento de cargos, via indicações de parlamentares e de dirigentes partidários, é evidente que a demora na mudança dos cargos chave no INSS está associada diretamente à falta de projeto para a instituição. Sob Temer e Bolsonaro, uma tecnocracia criada pelas gestões petistas anteriores desfigurou a autarquia, mutilando uma das maiores redes de atendimento do serviço público, deixando a população à mercê de atravessadores e às instáveis e inconsistentes plataformas digitais. O resultado é uma fila virtual que ultrapassa 1 milhão de pedidos de benefícios, mais de 500 mil pessoas aguardando por uma perícia médica, enquanto outras 4 milhões aguardam por algum outro serviço.
Nos últimos governos, houve tentativas frustradas para resolver a fila do INSS. Citando apenas algumas: o “pente fino” nos benefícios por incapacidade; a virtualização dos atendimentos e esvaziamento das agências, para dedicar a maior parte da força de trabalho para análise de requerimento; e a terceirização do atendimento com militares reformados. Tais iniciativas foram impulsionadas pela gestão que permanece, uma mentalidade de que soluções mágicas são possíveis para o problema crônico do esvaziamento no quadro funcional, esquecendo que mesmo os processos virtualizados dependem de seres humanos para sua conclusão, pois o “robô do INSS” somente é eficiente para indeferir 3 de cada 4 pedidos de aposentadoria.
Em 12/2015 havia 36 mil servidores no INSS, hoje são pouco mais de 18 mil, ou seja, as mil vagas do recente concurso sequer repõe as vacâncias. Um dos reflexos danosos do esvaziamento do quadro está no aumento na judicialização, que coloca o INSS como responsável por quase 1/5 de todas as demandas na Justiça Federal (18,54% em 09/2022, segundo o CNJ), duplicando as demandas desde a virtualização dos processos. O INSS deixou de ser uma instituição de reconhecimento dos direitos, passando ao papel de “Negador Geral da República”. As agências da Previdência Social deixaram de recepcionar requerimentos e demandas, usando da exclusão digital para represar uma demanda invisível; as Centrais de Análise, mesmo com a aumento da produtividade, têm força de trabalho insuficiente para manter o tempo de conclusão de pedidos dentro dos parâmetros estabelecidos pela legislação; e, a automação de processos não está delineada para resguardar direitos.
Prosperam com o fracasso da autarquia atravessadores e altas carreiras do funcionalismo público. A advocacia privada tem larga jurisprudência para lucrar sobre a ineficiência institucional, os órgãos de controle e jurisdição (TCU, CGU, Judiciário, MP e AGU) ampliam seu poder político ao determinar a política previdenciária na ausência do governo e os atravessadores prestam serviços com ônus ao cidadão. São os beneficiários do INSS que pagam a conta diretamente, para ter acesso ao serviço que deveria ser gratuito e universalizado, e indiretamente, com a demora em obter benefícios e serviços, onerando o Estado que também sustentam.
É fundamental, imediatamente, o governo Lula admitir todas as pessoas classificadas no concurso realizado, chamar as demais 2,5 mil em cadastro de reserva e validar aqueles que atingiram os critérios do edital para repor, pelo menos, 10 mil vagas. Qualquer coisa diferente disso será manter a exclusão digital e a fila de espera para decisão de requerimentos de benefícios e serviços.