A esquerda e as forças de segurança pública: um diálogo necessário
Por Guilherme Santos/Sul21

A esquerda e as forças de segurança pública: um diálogo necessário

A apoio às mobilizações de praças das forças de segurança é uma tarefa imprescindível no combate à extrema direita entre os militares.

Luciana Genro 25 abr 2023, 14:00

Foto: Guilherme Santos / Sul21 (Creative Commons)

As Forças Armadas existem para dar sustentação ao regime de dominação de classe e ao capital. Embora a missão declarada das polícias seja a segurança pública, sabemos que seu objetivo em última instância é a defesa da propriedade privada dos grandes capitalistas a partir do controle social da pobreza e da violência contra os de baixo, nos conflitos de classe. Quando as formas de hegemonia da democracia burguesa já não são suficientes para o controle social, o braço armado do Estado entra em cena para garantir a ordem. Os regimes fascistas são a expressão mais aguda desta lógica, usando a força bruta para exterminar a resistência contra a exploração e a opressão do capital.

No capitalismo, a extinção das polícias não resolve a questão, e desencadearia outro problema. Sem a proteção das forças policiais estatais, a burguesia buscaria criar suas próprias milícias armadas, totalmente subordinadas a ela e sem nenhum controle público.

Defender um “programa de transição” para as forças armadas é, portanto, uma necessidade básica para enfrentar a violência que assola as comunidades periféricas e a juventude negra na lógica da guerra às drogas, e também a repressão contra os movimentos sociais, lutas e greves. Junho de 2013 e a forte repressão que se abateu sobre o movimento são uma prova da importância do tema para todos os que lutam e enfrentam o sistema.

Este programa de transição necessita partir da própria realidade dos policiais, suas mazelas, seus sofrimentos, a opressão interna e a exploração econômica que vivenciam.

Por isso é fundamental que os setores de baixo na pirâmide das polícias se reconheçam como trabalhadores. Esse é o primeiro passo para que a esquerda possa incidir nesta categoria que é determinante para o enfrentamento ao sistema.

Dividir as forças armadas, ganhando principalmente os soldados e o baixo oficialato para defender os interesses do povo sempre foi, senão determinante, um elemento fundamental nos processos revolucionários que já ocorreram no mundo. Dois exemplos ilustram as vitórias e as derrotas que as forças armadas ajudaram a decidir: o russo e o alemão.

Na Rússia a revolução vitoriosa de 1917 contou com a participação dos soldados e marinheiros que, organizados nos sovietes, garantiram que estes organismos tomassem o poder praticamente sem derramamento de sangue. Após outubro de 1917, o Exército Vermelho, dirigido por Trotsky, enfrentou e derrotou os “Brancos”, militares leais à burguesia russa e mais os exércitos enviados pelo imperialismo europeu que protagonizaram a sangrenta guerra civil vencida pelos bolcheviques.

A história da revolução alemã também não pode ser contada sem que se destaque o papel dos soldados e marinheiros neste processo, tanto na revolução como na contrarrevolução. Foi a rebelião dos marinheiros de Kiel contra o motim do oficialato – que, desobedecendo o armistício já decidido pelo governo, queria enviar divisões em uma missão suicida e inútil – que desencadeou a revolução de novembro de 1918 que derrubou a monarquia.

Ao mesmo tempo foram os Freikorps, soldados desempregados que formaram milícias financiadas pela grande burguesia alemã com o estímulo e conivência da socialdemocracia governamental após 1919, que ajudaram a chacinar milhares de revolucionários que buscavam dar consequência ao processo que havia iniciado em novembro de 1918, entre eles Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Foram os mesmos setores que depois se constituíram como espinha dorsal do regime nazista.

Ter uma política para disputar e dividir as Forças Armadas, especialmente as polícias militares e civis dos estados, é uma tarefa fundamental da esquerda. A força do bolsonarismo e da extrema direita nestes setores é gigantesca, e parte dela pode ser explicada pela dificuldade da esquerda em dialogar com eles, principalmente com as polícias militares.

O crescimento da extrema direita no Brasil fez nascer o movimento Policiais Antifascismo, surgido em 2016 como uma iniciativa dos próprios policiais progressistas para enfrentar o fascismo que existe na nossa sociedade, e principalmente nas forças de segurança pública do Brasil. Trata-se de um movimento pela valorização dos direitos fundamentais, os direitos sociais previstos na Constituição e em todo o ordenamento jurídico do país. Não aceitar e não banalizar as ações fascistas por parte de integrantes das forças de segurança pública é uma das missões do grupo.

O Movimento Esquerda Socialista (MES), e eu como deputada, sempre tivemos a preocupação de desenvolver trabalho político junto às forças policiais e militares.

Em 1997 eu era deputada estadual quando ocorreu uma greve dos policiais militares no RS. Eu e Roberto Robaina, dirigente do MES e hoje também vereador em Porto Alegre, estivemos no apoio ao movimento, inclusive presentes nos piquetes em frente aos quartéis. Já em 2009 eu era deputada federal quando ocorreu uma greve dos policiais militares de Roraima e lá estive, mais uma vez junto com Roberto Robaina. Depois fui relatora do Projeto de Lei que garantiu a anistia a todos os militares envolvidos em mobilizações e greves. Em 2012 foram os bombeiros que fizeram uma gigantesca greve, e mais uma vez o MES esteve na linha de frente do apoio aos grevistas. Em Pernambuco o MES conta com a principal liderança sindical dos policiais civis do estado, o ex-presidente do sindicato da categoria, Áureo Cisneiros.

No Rio Grande do Sul, novamente como deputada estadual, estou tendo a oportunidade de mais uma vez apoiar as reivindicações dos praças e avançar no diálogo com a polícia militar.

Na legislatura passada o governo gaúcho, comandado pelo PSDB, enviou um pacote de projetos que retirou direitos de todos os servidores públicos, e dos policiais militares em especial.

Os servidores perderam os avanços por tempo de serviço, como triênios e quinquênios, a licença-prêmio e uma série de outros direitos. Os praças perderam também a verticalidade salarial, uma política que garantia que sempre que houvesse aumento aos oficiais, o mesmo percentual seria conferido aos praças. Também foi retirado o direito à promoção na reserva, que possibilitava aos praças uma aposentadoria um pouco melhor, na medida em que assegurava a promoção ao final da carreira. Atualmente temos militares que entram soldados e saem soldados da corporação, após uma vida inteira de serviço. E

Durante o período que antecedeu a votação do projeto, comecei a receber centenas de mensagens pelo Whatsapp de praças relatando as mazelas da carreira e pedindo que derrotássemos o pacote de maldades do governo. Respondi cada uma delas, apoiando as reivindicações de melhoria na carreira e me posicionando contra os ataques de Eduardo Leite aos seus direitos. O governo do PSDB, com o apoio de toda a direita, conseguiu aprovar seu projeto. Foi a esquerda que resistiu e eu, dentro da Assembleia, acabei me tornando a principal porta voz das reivindicações dos soldados e sargentos por uma carreira digna.

A realidade é que existem duas Brigadas (como chamamos aqui a Polícia Militar), uma dos oficiais e outra dos praças. Tanto é que são duas carreiras distintas, com portas de entrada separadas. Pelo modelo atual, o soldado chega no máximo ao posto de tenente, e ainda assim isso é uma raridade, já que o modelo de promoções para os praças é moroso e engessado. A outra porta de entrada é a dos oficiais, onde o sujeito ingressa na carreira como capitão e pode chegar a coronel. Assim, quem comanda a tropa pode nunca ter atuado no policiamento de rua, já que é muito difícil um soldado conseguir organizar sua vida para estudar e passar em um concurso para se tornar oficial.

Os praças vivenciam dentro da polícia militar uma estrutura de subordinação e subjugação que é própria do militarismo. Policiais homossexuais e policiais mulheres são assediados permanentemente. São os oficiais que têm o poder de decisão sobre horários e escalas de trabalho, e muitas vezes utilizam esse poder para perseguir ou privilegiar soldados de acordo com seus interesses.

Na medida em que reconhecemos essa opressão, podemos abrir com a categoria um debate fundamental sobre a desmilitarização das polícias. E muitos já concordam com isso, convencidos da ideia de que a hierarquia militar é algo que faz sentido em uma lógica de guerra, que não é a lógica que deveria pautar uma força de segurança pública.

Por reproduzirem a lógica militarizada da guerra, os policiais se relacionam com a população como um soldado diante do inimigo no front, e não como um policial diante de um cidadão cujos direitos devem ser garantidos. O policial que aborda de forma violenta foi formado nesta lógica. O soldado age à imagem e semelhança do seu comando, que é, em última instância, o responsável por orientar seu comandado a agir com maior ou menor truculência.

Até mesmo o projeto de lei que obriga a colocação de câmeras nos uniformes dos policiais, de minha autoria, já tem apoio em parte da categoria, que reconhece os abusos e crimes que acontecem e a necessidade de proteger os policiais que atuam dentro da lei.

Ao fim e ao cabo, muitas das opressões que os policiais sofrem internamente na corporação são um ataque aos seus direitos humanos fundamentais. Na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos denunciei casos de policiais que tiveram que urinar em garrafas porque não conseguiram liberação do posto base sequer para ir ao banheiro. Tivemos também denúncias de tortura durante os treinamentos, inclusive com uma trágica morte. Colocar a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos a serviço de denunciar os abusos contra os praças possibilitou que eles passassem a perceber que são, eles também, sujeitos dignos de ter seus direitos humanos defendidos – algo fundamental para combater a ideia falaciosa de que direitos humanos valem apenas para defender aqueles que cometem crimes.

A saúde mental dos policiais também é um tema que tratei, inclusive destinando uma emenda parlamentar para o serviço de saúde mental do Hospital da Brigada. A realidade de opressões e abusos – aliada a uma carreira precária e sem perspectivas e a um trabalho que consiste em estar em contato diário com a violência, o crime e a corrupção – torna os policiais alvos fáceis para os problemas envolvendo a saúde mental. Tanto é que o índice de suicídios na categoria é muito superior ao índice de suicídios na população em geral. Considerando o efetivo da corporação, os brigadianos gaúchos atingiram a média de 30,7 suicídios a cada 100 mil habitantes. Somente esse ano de 2023 (até abril) já tivemos cinco suicídios de brigadianos no Rio Grande do Sul. Essas informações são dramáticas se comparadas com o índice de suicídio na população em geral, que no RS é de 10,3 casos por 100 mil habitantes – logo, a proporção entre os políciais é o triplo da média geral.

No Rio Grande do Sul, ocorreram 50 suicídios de brigadianos entre 2008 e 2018, de acordo com dados da Associação dos Oficiais da Brigada Militar e do Corpo de Bombeiros (ASOFBM). Os mesmos dados apontam que o afastamento laboral dos policiais militares por problemas psiquiátricos chega a 53%. Neste ano de 2023 (até fevereiro) já tivemos dois suicídios de brigadianos no Rio Grande do Sul. No Brasil o suicídio de policiais cresceu 55% entre 2020 e 2021, de acordo com informações que estão disponíveis no Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022.

Analisar essa relação interna das forças dentro da Polícia Militar é fundamental para compreendermos que a primeira bandeira para um programa de transição para a segurança pública é a busca por estruturas menos opressivas dentro da corporação. É, portanto, a necessidade da desmilitarização, de uma polícia de ciclo completo e com uma única porta de entrada.

Todos estes elementos demonstram a importância de a esquerda marchar ombro a ombro com os trabalhadores da segurança pública, compreendendo suas limitações e contradições. Essa aproximação é estratégica e carrega em si o potencial de quebrar a espinha dorsal das ilusões oferecidas pela extrema direita a essa categoria. Quando percebem que é a esquerda que luta por seus direitos, sem abrir mão de denunciar os abusos e incidir sobre as contradições da realidade, os policiais se tornam menos propensos a ouvir o canto de sereia da extrema direita. Não é um processo fácil, nem rápido. Mas, como Rosa Luxemburgo disse uma vez, é na luta que as massas aprendem a lutar. É preciso dar aos policiais a oportunidade de lutar por seus direitos e entender a conexão de suas tragédias pessoais e coletivas com a realidade de toda a classe trabalhadora.


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Pedro Micussi