Crise na Argentina (2)
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Crise na Argentina (2)

A continuação do relato de viagem de Israel Dutra à Argentina em crise.

Israel Dutra 28 abr 2023, 09:25

Argentina, 2023

O belo filme “Argentina, 1985” que trata da justiça da transição à democracia, após uma das mais sangrentas ditaduras do planeta, marcou presença entre os principais filmes estrangeiros indicados ao Oscar.

Foi impossível não lembrar dele ao chegar em Buenos Aires, convidado para uma série de eventos e reuniões, acompanhando Eric Toussaint. Me deparei com a Argentina que carrega traços marcantes da memória, sobretudo também porque cheguei na semana seguinte a manifestação do dia 24 de março, data que se recorda da luta contra a ditadura e os mortos pelo terrorismo de Estado. Nos últimos dias, quando escrevia, novos acontecimentos – como a alta do dólar e declarações de Alberto Fernandez, que tal qual Macri, desistiu da disputa à presidência – apenas agravaram a situação.

E claro, a Argentina é um dos principais países do continente, portanto, sempre importante para o Brasil e o conjunto da América Latina. Assim, a título de registro, aponto, algumas notas do que pude notar e presenciar. Vale dizer que, quando fechava esse artigo, a Argentina se encontrava, uma vez mais, numa corrida cambial, motivada pela ação de especuladores e escassez de dólares.

Um governo caminhando para o fracasso

O governo de Alberto Fernandez é fruto de uma coalizão entre as diferentes alas do peronismo, no qual Cristina, sua vice, expressa o setor que quer vocalizar mais “demandas populares”. O governo teve ampla vitória eleitoral, na esteira do fracasso do modelo de ajuste do anterior governo de Macri. Nesse quadro, se combinam uma crise política profunda com uma crise econômica recorrente.

Os três acontecimentos mais importantes do último período foram a visita de Alberto à Biden, a desistência de Mauricio Macri e do próprio Alberto Fernandez em se apresentar como candidatos à presidência no pleito marcado para outubro e a nova corrida cambial que se ensaia.

Nas últimas semanas, o dólar paralelo, chamado de “dólar blue”, disparou, chegando a quase 500 pesos e alarmando o país.

Estamos em um ano eleitoral, e a tradição argentina é de uma pré-campanha “larga”. Portanto, podemos dizer que a campanha eleitoral já domina o debate de conjunto. Há, contudo, um elemento inusitado: essa é a eleição mais imprevisível dos últimos 20 anos.

Isso quer dizer que a própria definição dos candidatos ainda é inicial. Existe uma disputa dentro das duas principais coalizões políticas do país, Frente de Todxs e Juntos pelo Cambio – ambas em crises que resultam em fraturas expostas. Macri decidiu não ser candidato, temerário de um vexame, pois na memória popular ainda está fresco o fracasso de seu governo. Na mesma esteira, quando a crise se agudiza uma vez mais, Alberto Fernandez, via um vídeo postado nas redes sociais, também anuncia que não será mais candidato.

A Argentina hoje tem relações diretas com o Fundo Monetário Internacional (FMI), e ainda mais dependente mediante o último acordo, fechado em 2021. A reunião com Biden e com Githa Gopinath, economista chefe do Banco Mundial, só indicou mais subserviência, num cenário em que os Estados Unidos precisam disputar a influência na região diante da emergência política e comercial da China.

O acordo com o FMI só reforça a dependência, com amarras enormes de endividamento e diversos ataques especulativos dos fundos abutres, em disputas que já duram anos.

A Argentina real, nos bairros e territórios, está marcada por um cenário terrível de pobreza. Já são mais de 40% do país sob condições de pobreza. A inflação chega perto de 110% ao ano, correndo ganhos salariais e levando a uma remarcação constante nas prateleiras dos supermercados.

A disputa na Frente de Todos (FdT) é entre o atual superministro, Sérgio Massa, homem de confiança da embaixada norte-americana, Cristina Kichner, que luta contra sua proscrição eleitoral, e o atual embaixador no Brasil, Daniel Scioli.

A direita e incapacidade de governar

Na crise do governo da FdT, a direita é favorita, capitalizando o mal-estar social para um voto majoritariamente opositor. Ainda que as pesquisas sejam incipientes, o favoritismo é do campo que orbita ao redor da coalizão Juntos pelo Cambio (JxC).

Contudo, mesmo no campo favorito o cenário não é nada estável. A desistência de Macri é um sintoma. A crise se espalha por todo o partido de Macri, sobretudo na eleição da cidade de Buenos Aires, onde Larreta rompeu o calendário acertado de prévias (Paso). Larreta busca utilizar da boa imagem em Caba, tal qual Macri antes de chegar à presidência, para impulsionar seus planos para chegar à Casa Rosada. A questão é que o outro setor, com bastante força, está vinculado à ministra de Segurança Pública, Patricia Bulrich, que tem um programa mais “duro” à direita.

Nesse cenário, algumas hipóteses se colocam, dentro do quadro incerto: a irrupção de Javier Milei leva a disputa mais à direita, podendo ele próprio chegar ao segundo turno e atrapalhar os planos de JxC. Uma improvável vitória não é descartada, ainda que seria num inusitado cenário.

De qualquer feita, diante da crise aguda, um novo governo da direita terá que asseverar um ajuste mais duro, revogando, por exemplo, os subsídios para transporte e eletricidade; ou ainda, eliminando os planos, “trabalhar” benefícios pagos aos desempregados, que são organizados pelo movimento social piqueteiro. Uma desvalorização salarial também estaria no plano de voo de um governo mais direitista. Isso abriria a hipótese do choque de trens: ajuste reforçado versus as reservas do movimento operário

O risco Milei

O outro fenômeno que marca a conjuntura nesse período ainda pré-eleitoral é a irrupção, com peso de massas e com uma localização privilegiada nas pesquisas (chega a ter entre 16 e 20%), de Javier Milei. Defensor da ditadura e de uma visão ultraliberal, referenciada no modelo pinochetista, o político é a expressão da extrema direita na Argentina.

De início com sua prédica ultraliberal – baseada no teórico Murray Rothbard (que alguns de forma infeliz, definiram como paleoliberal ou anarcocapitalista -, foi se condensando com a agenda subterrânea da extrema direita argentina, com figuras como Bussy, em Tucumán, e Olmedo, em Salta.

Milei ganhou notoriedade ao apresentar-se como economista excêntrico, com seu penteado folclórico, na televisão e no teatro, atacando Keynes e o peronismo. Ganhou espaço na eleição de 2021, e acabou entrando com muita força na TV aberta, que ajudou a inflar sua figura para que postulasse uma agenda mais neoliberal e à direita.

As bandeiras principais são as que congregam a reação ao movimento piqueteiro e o avanço das lutas das mulheres e dos direitos LGBTQIA+, como na linguagem neutra; e medidas ultraliberais capazes de fazer Paulo Guedes um “moderado”, tamanha a voracidade do ajuste. No terreno da economia, defende a dolarização absoluta da economia argentina e a imediata privatização de toda saúde e educação.

Para além de proporcionar a si mesmo um vetor à direita, impulsionando um sentido comum conservador em setores de massa – fenômeno que conhecemos de Bolsonaro – envolve um “voto bronca” misturado à valores conservadores, E força à ação de grupos de extrema direita. Grupos marginais no âmbito político, mas que atuam como força de choque, ampliando o volume da extrema direita e seus métodos. Isso se notou no caso do atentado contra Cristina e mesmo em ataques contra sedes de organizações de esquerda. Um dos casos emblemáticos foi o ataque em La Plata à sede da IS (partido de esquerda integrante da Fitu), filmado e difundido nas redes sociais.

Diante da crise geral, não se pode descartar a presença de Milei no segundo turno. E se a crise geral se aprofunda, mesmo não sendo favorito, uma vitória eleitoral seria uma hipótese improvável, contudo, possível.

Mirar Argentina”

Não se pode separar o processo político brasileiro das suas relações dentro da América do Sul, no qual a Argentina é, talvez, seu vizinho mais próximo. O desenvolvimento das contradições do capitalismo argentino tem e terá enormes implicações na vida social brasileira. Questões como desindustrialização, o peso do agro, do extrativismo e o lugar dos militares na vida política impactam diretamente ambos os países.

E podemos afirmar que o movimento operário nos dois países, assim como no México, é um gigante que, quando desperta, move as placas tectônicas da sociedade. Assim foi no ascenso do Cordobazo, 1969, na Argentina, ou das grandes greves do ABC (1979-84) no Brasil.

A irrupção eleitoral de Milei recorda Bolsonaro.

É preciso solidariedade para com as lutas do povo argentino, suas organizações, acompanhando o desenvolvimento da esquerda radical, que tem como devir enfrentar a conciliação de classes e os ataques oriundos da direita e extrema direita. As contradições da Fitu, seja por sua fragmentação ou visão ainda sectária, só poderão ser superadas no desenvolvimento da própria luta de classes e suas experiências.

A luta dos piqueteiros, que envolve centenas de milhares de pessoas nos bairros pobres de toda a Argentina, é um laboratório para a capacidade das diferentes organizações de ampliar sua influência e enraizamento.

A falência do modelo atrelado ao FMI – e a questão candente da dívida – deve se transformar num amplo movimento de rechaço massivo aos ditames do Fundo, como condição para romper o atual modelo que une os partidos da classe dominante.

Os próximos dois anos na Argentina serão cruciais para os rumos da relação de forças no conjunto do continente.

Tal qual em tela com “Argentina, 1985”, podemos tomar lições das reservas de luta democrática na Argentina, o que pode gerar um cenário de enfrentamentos constantes, diante de um governo que queira ampliar o escopo repressivo estatal. Miremos a Argentina.


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Pedro Micussi