Aprovado o arcabouço fiscal – e agora?
A posição do PSOL, com a toda sua bancada votando contra a proposta, foi uma prova política para o partido.
Foi aprovado em votação única na Câmara dos Deputados, no fim da noite de terça-feira (23), o texto-base do projeto do “arcabouço” fiscal, agora batizado de “Novo Marco Fiscal”, com 372 votos a favor, 108 votos contrários e uma abstenção. Haddad, Lula e os representantes do governo celebraram a vitória, afirmando que se abre uma nova etapa para seu projeto. A proposta foi aprovada com os votos dos partidos do centrão (PP, MDB, PSD, União Brasil, entre outros), contando com a divisão da bancada do PL de Bolsonaro e de outros setores da oposição de direita. O PSOL e a Rede votaram contra, orientando toda a sua bancada a votar “não”, garantindo 13 votos contrários, numa demonstração de repúdio à proposta.
A aprovação do “arcabouço” ocorreu num cenário de grande agitação política, com o governo enfrentando crises em temas ambientais e a CPI do MST abrindo embates entre ruralistas e defensores dos movimentos sociais. Queremos destacar que, com essa proposta, o governo deu um passo errado diante das próprias expectativas de sua base social e houve uma importante crítica ao texto nos setores mais atentos da sociedade. O PSOL, por sua vez, apesar das pressões feitas pelo governo, cumpriu um papel positivo, animando uma alternativa para todo o setor crítico da sociedade, apresentando a necessidade de enfrentar a extrema-direita sem perder de vista a defesa dos direitos sociais da maioria do povo trabalhador.
Um salto para o vazio
A votação consagra uma importante definição sobre o caráter do governo. Como já afirmamos em outras oportunidades, o sentido do marco fiscal aprovado é reforçar as políticas de austeridade, numa continuidade da orientação fiscalista implementada no país pelos últimos governos. A regra fiscal aprovada pela Câmara tem como centro a limitação do crescimento dos gastos públicos a 70% do crescimento da receita do governo no ano anterior, aplicando uma “banda” entre 0,6% e 2,5% de ampliação dos gastos para garantir o superávit primário, restringindo o gasto público e priorizando o pagamento aos credores da dívida pública. Em outras palavras, a regra condena o país a um gasto bastante inferior ao que foi feito pelos próprios governos anteriores de Lula e Dilma (2003-2016), com a diferença que estamos numa situação estruturalmente mais grave.
Alguns analistas chegam a comparar o “marco fiscal” com a política de contenção de gastos adotada por Dilma em 2015, quando acabara de ser reeleita após um embate duro contra a oposição de direita, abrindo o caminho de desgaste com sua base social, que resultou em rápida erosão política e a tornou presa fácil do golpe parlamentar, liderado por Michel Temer, que a tirou da presidência. Com o aprofundamento da regressão social, o Brasil é um país ainda mais desigual do que em décadas atrás, marcado por desindustrialização crescente, diminuição da renda, serviços públicos desmontados e demandas urgentes para combater a fome, a pobreza e a degradação da vida urbana.
O quadro da economia internacional é ainda menos alentador. Sob o signo das incertezas, reforçadas pela guerra, pela inflação nos países centrais e por desastres ambientais, a perspectiva é de um cenário econômico turbulento. O elo débil é, uma vez mais, a Argentina, que se encontra à beira de um novo colapso econômico, com uma corrida bancária frenética, alta do dólar, escassas reservas internacionais, inflação galopante, tudo isso agravado por uma seca devastadora graças ao peso desproporcional da agropecuária na economia do país vizinho.
Ao adotar um “marco fiscal” ao gosto dos mercados, o governo não apenas fica de mãos atadas para incentivar uma política econômica distinta como dá um salto para o vazio, deixando sem resolução as demandas e expectativas de melhora nas condições de vida, que foram o motor da apertada vitória eleitoral de Lula contra Bolsonaro.
Era ruim, ficou pior
O fundo da discussão remete à aprovação, em 2016, da Emenda 95 – também apelidada de “PEC do teto” ou “PEC da morte”, pois congelava em 20 anos os investimentos ao nível dos índices da inflação. Essa foi a marca do governo Temer e houve uma importante resistência a sua aplicação. Durante o governo Bolsonaro, fruto de sua necessidade eleitoral, quando a maioria estava em deslocamento para a oposição, o governo, na prática, acabou com o teto de gastos para ampliar os pagamentos do auxílio-Brasil e de outras medidas. Então, no último 30 de março, Fernando Haddad e sua equipe apresentaram o projeto do “arcabouço” fiscal, saudado pelo mundo das finanças, pela Febraban e pela maior parte dos operadores da “Faria Lima”. O projeto chegou à Câmara em 18 de abril, com a celeridade ditada pelos mercados, abrindo uma discussão profunda no seio da esquerda, dos movimentos sociais, dos partidos e sindicatos.
Desde o princípio, definimos o projeto como regressivo e defensor dos interesses do capital financeiro pela busca do superávit primário e garantia do pagamento da dívida pública, sacrificando o orçamento destinado à áreas sociais e estratégicas. No documento relativo aos 100 dias do governo Lula, a Executiva Nacional do MES, tomando emprestada a elaboração do economista David Deccache, que já cumpria um papel decisivo nessa batalha, alertava que
“algumas vozes já atuam contra a adesão crítica do PSOL a esse verdadeiro ‘consenso neoliberal’, como o economista da bancada do PSOL, David Deccache:
‘Um exemplo concreto do impacto da nova regra fiscal é pensar no que aconteceria se ela estivesse valendo no Governo Lula 2, durante a crise de 2008. Em 2009, tivemos uma variação da receita líquida negativa em 0,14%. Com apenas a regra de correção de 70% não haveria expansão real em 2010. Aí entraria o piso de 0,6%, que garantiria um crescimento real totalmente insuficiente e descolado da realidade e que muitos comemoram como uma avanço da nova regra. Um equívoco. Explico. Concretamente, Lula fez uma expansão real de 16,29%. Se a regra do Haddad estivesse valendo, seria de apenas 0,6%.
O que vocês acham que aconteceria com o país naquele momento? Pois é. Ao invés de expansão de emprego e renda com o maior crescimento do PIB das últimas décadas, teríamos uma baita desaceleração econômica e crise profunda.’ (…)
A corajosa posição de Deccache nos ajuda a provocar o debate entre o ativismo sobre os rumos da economia, da qual o PSOL deve tomar parte.”
O projeto chegou à Câmara num acordo do governo com Lira, que nomeou Claudio Cajado (PP-BA) para a relatoria. A versão votada piorou o que já era ruim, com a inclusão no “novo teto” do Fundeb e do recém-aprovado piso da enfermagem, além dos gatilhos de proibição de aumentos para o funcionalismo, já arrochado nos últimos 6 anos de Temer e Bolsonaro, e de realização de concursos públicos, caso sejam frustradas as expectativas de superávit primário propostas. Os compromissos que o governo Lula estabeleceu com o mercado ficaram nítidos na intervenção do deputado Washington Quaquá (PT-RJ), cumprimentando Lira e Cajado por ter viabilizado um texto ainda mais “realista”.
O PSOL passou à prova e os próximos passos na construção de um campo crítico
A posição do PSOL, com a toda sua bancada votando contra a proposta, foi uma prova política para o partido. Diante de um projeto regressivo, que enfraquece o governo aos olhos da sociedade, podemos afirmar que o lugar do PSOL foi estratégico. Para usar termos históricos, foi uma “vitória na derrota”. Houve uma pressão grande por parte do governo, como revelou a “punição” de Lindbergh Farias (PT-RJ) por expressar críticas pontuais ao projeto, retirando sua vaga da CPMI do 8 de janeiro. O governo também atuou pela imprensa para pressionar o PSOL a rever seu voto, após a votação contrária ao regime de urgência na semana anterior. O próprio Lula, no Japão, sugeriu que entraria em contato com dirigentes e parlamentares do partido para que mudassem seu voto.
A importante posição do PSOL foi fruto de uma batalha política, que envolveu os parlamentares mais críticos, o economista David Decacche e a articulação dentro da bancada, apoiada nas reservas que existem na sociedade para não aceitar qualquer fraseologia neoliberal. O espaço crítico pressionou o PSOL para manter sua posição. A polêmica interna sobre a votação começou na reunião do Diretório Nacional do PSOL, quando alguns setores partidários admitiam a tática de voto “sim crítico”. Derrotada essa proposta, a votação contrária ao arcabouço — e o destaque para retirada dos funcionários públicos, que recebeu cerca de 20 votos e não foi acatado — deu mais força ao partido.
Ao firmar uma decisão fundamental e estratégica, o PSOL coloca-se com autoridade para encabeçar um campo crítico e não sectário, o que será fundamental para ocupar o espaço existente e apoiar as lutas em curso. Confirma-se, assim, a justeza da orientação de lutar em unidade contra a extrema-direita e de fortalecer a independência política em defesa dos direitos dos trabalhadores e do povo. Este é o lugar do PSOL!