O que há por trás da máscara altruísta? A UNESCO no beco neoliberal
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O que há por trás da máscara altruísta? A UNESCO no beco neoliberal

A UNESCO está passando por uma crise estrutural de identidade, eficácia e legitimidade

Luis Bonilla-Molina 3 jun 2023, 10:52

Lendo a Bifo (2015), podemos associar a chegada do neoliberalismo ao desaparecimento dos heróis, individuais e coletivos.  O autonomista italiano se atreve a datar em 1977 o momento em que “o mundo passou da era da civilização humana para uma era de-evolutiva ou de-civilização” (Berardi, 2015: 11), um processo que seria claramente demonstrado na UNESCO a partir de 1991. 

O magistério global construiu um imaginário de herói coletivo na UNESCO. Até mesmo uma parte importante do pensamento crítico, e um ou outro esquerdista ocasionalmente desgarrado, coloca como parâmetro de referência, como a última palavra sobre o tema da educação, o que diz ou propõe a organização localizada na Place de Fontenoy, 7, em Paris. Esse herói se tornou um paladino do capitalismo neoliberal, um grande monstro que tem uma forte influência (Gieco, 1978) sobre o direito à educação, especialmente para os filhos e filhas da classe trabalhadora.

Talvez por isso, a partir de diferentes territórios e diferentes lugares de enunciação, estejam começando a ser escritas páginas de história crítica da UNESCO. Este breve texto pretende ser apenas um convite para olhar o que faz a organização multilateral a partir da perspectiva de quem vive do trabalho, tomando cuidado para não se deslumbrar com o brilho de um senso comum desprovido de perspectiva política. Esse convite a uma breve história crítica da UNESCO é necessário para entender como essa agência faz parte do projeto de educação do futuro do sistema capitalista na era digital.

A ordem capitalista pós-Segunda Guerra Mundial

A ordem mundial que emergiu da Segunda Guerra Mundial gerou um capítulo educacional para impor a padronização das políticas públicas: a UNESCO. Apesar de essa organização ser parte integrante do multilateralismo das Nações Unidas, há uma percepção generalizada entre a população e parte do corpo docente sobre sua suposta autonomia, neutralidade e capacidade de consenso, mas nada poderia estar mais longe da verdade.

A verdade é que a UNESCO é uma agência dependente do sistema das Nações Unidas, cujas decisões estratégicas (planos, programas, autoridades, políticas, orçamento) são tomadas hoje pela Conferência Geral, composta pelos representantes oficiais dos governos dos 193 Estados membros da organização, a grande maioria dos quais tem uma perspectiva capitalista neoliberal. A Conferência Geral, que elege o Conselho Executivo (CE), nomeou os 58 membros desse órgão na última Conferência (2022). 

A percepção errônea e generalizada da UNESCO pode ser atribuída a dois fatores objetivos e um subjetivo. Por um lado, a UNESCO, desde a sua criação e no período da chamada Guerra Fria (1917-1991), cumpriu para o sistema-mundo capitalista o papel de ponto de encontro entre as culturas dos dois polos antagônicos (soviético-capitalista), o que implicou a construção de uma narrativa e de um desempenho funcional suficientemente amplos para garantir o diálogo, especialmente em um dos aspectos centrais da reprodução da ideologia capitalista: os sistemas escolares e as universidades. A experiência soviética não foi capaz de romper com a matriz institucional da máquina escolar que impulsionou o capitalismo nas duas primeiras revoluções industriais.  Esse trabalho de ponte entre dois mundos, em meio a uma terrível guerra ideológica, facilitou a construção do imaginário de uma UNESCO progressista e até mesmo de esquerda, enquanto tentava alinhar o polo comunista à lógica sistêmica do mercado. A China de hoje é a melhor expressão dos resultados de longo prazo dessa operação, um sistema escolar baseado na lógica do mercado, na neurociência e no uso instrumental da tecnologia, que baniu o pensamento crítico e é apresentado como um modelo para vincular a educação escolar à empregabilidade e ao desenvolvimento do modo de produção capitalista. 

Por outro lado, o sistema mundial construiu a UNESCO como a identidade de um ponto de referência e orientação para a educação. Para tanto, elaborou narrativas confusas, apresentadas como resultado do consenso entre a direita e a esquerda políticas, que defendiam o investimento público em educação e, ao mesmo tempo, fomentavam um nicho de gestão privada que modelaria várias formas de privatização, mercantilização e padronização de acordo com as diretrizes do mercado. 

Cada um, de acordo com sua própria perspectiva política sobre a educação, interpretou e enfatizou o que parecia mais próximo de sua própria maneira de pensar; esse nadar entre duas águas da UNESCO foi vendido como pluralidade, quando na realidade era a ponta de lança de formas sofisticadas de entender a educação como uma mercadoria. Isso foi ajudado pelo fato de que, durante grande parte da história da UNESCO (1945-1993), os membros do corpo diretivo do Conselho Executivo (CE) da UNESCO foram apresentados como membros em sua capacidade pessoal, o que deixou de ser abertamente o caso depois de 1993, quando se tornaram representantes oficiais dos Estados membros.

Em termos subjetivos, como explica Said (1978), a crescente hegemonia da ideia do conhecimento científico como conhecimento despolitizado estava transformando o debate educacional sob a égide da UNESCO em um assunto puramente técnico-pedagógico, e qualquer tentativa de situar seus argumentos no plano da contradição capital-trabalho era atacada como um desvio ideológico. Consequentemente, se a UNESCO era progressista, até mesmo de esquerda, com uma enorme capacidade de formulação técnico-pedagógica e se colocava no Olimpo do apoliticismo, essa suposta neutralidade era apresentada como objetividade e uma referência ao que deveria ser feito para além das questões políticas e ideológicas. O apoliticismo é, na realidade, uma forma ideológica de capitalismo que se esconde atrás de argumentos técnicos neutros para fazer mudanças estruturais viáveis que encontrariam múltiplas resistências se suas verdadeiras raízes ideológicas fossem reveladas. 

Nas últimas décadas, essa objetividade educacional ou senso comum educacional tem sido apresentada como um consenso entre aqueles que pensam, os bancos de desenvolvimento (Banco Mundial, OCDE, BID, CAF), os órgãos supranacionais do mercado (Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio), os órgãos de diálogo (como o Fórum Econômico Mundial) e os órgãos educacionais do multilateralismo (UNESCO, UNICEF, entre outros), quando, na realidade, todos esses órgãos tocam diferentes instrumentos da melodia que emana dos grandes financistas globais que até mesmo moldam as narrativas das nações imperialistas.

A melhor evidência disso é o processo de modificação, ao longo do tempo, da estrutura, dos mecanismos de seleção e do funcionamento do Conselho Executivo da Unesco. Como mostra o documento “O Conselho Executivo da UNESCO”, desde a década de 50 do século XX, foram feitas reformas em seus Estatutos até que, em 1991, em meio ao desmantelamento da URSS, definiu-se que, a partir de 1993 (27ª sessão da Conferência Geral), o Conselho Executivo seria “composto por Estados Membros e não por membros eleitos a título pessoal” (UNESCO, 2022: 11). 

As cinco reformas do CE mostram as tensões entre a necessidade de mostrar a UNESCO ao público como um órgão não governamental e seu funcionamento real como um órgão dependente da ONU e, portanto, enquadrado na lógica do multilateralismo do sistema mundial capitalista. 

Desde a criação da UNESCO até a primeira reforma, os membros do CE tinham o status de membros eleitos em sua capacidade pessoal, com o endosso de serem eleitos pelos representantes governamentais na Assembleia Geral.  Isso permitiu que o órgão tivesse um ar de independência, o que foi fundamental para a tarefa que lhe foi atribuída como um local de reunião, que ao mesmo tempo legitimou lideranças que mais tarde desempenharam um papel na governança educacional nacional e possibilitou o crescente processo de padronização educacional global. 

A reclamação crescente dos governos era que eles não tinham um controle de ferro sobre o órgão, porque, embora os eleitores da CE tivessem que ter seus endossos, eles tinham muitos “graus de liberdade”, o que ia contra a lógica do poder político nos Estados membros.

Reformas sucessivas garantiram que o capital político acumulado ao longo de décadas fosse colocado a serviço dos objetivos neoliberais. A seguir, apresentamos uma síntese das principais reformas das regras de formação e dos poderes do CE da UNESCO:

– A reforma de 1954 conferiu aos membros do Conselho Executivo a dupla qualidade de funcionário em caráter pessoal e “representante do Estado do qual era nacional”, sem alterar a qualidade da composição do Conselho, “cujos membros não eram Estados, mas pessoas expressamente designadas” (UNESCO, 2022, p.10). Embora tenha sido apresentado como uma forma de funcionamento despolitizado, isso teve uma razão político-ideológica concreta: filtrar os representantes do Leste Comunista para evitar que figuras com tradição intelectual de esquerda se tornassem líderes do órgão multilateral.

– A reforma de 1968 trabalhou na proporcionalidade dos territórios e regiões que compunham o Conselho Executivo, estabelecendo mecanismos de rotação para garantir que membros de todos os países se tornassem membros do Conselho Executivo em algum momento. Conscientes do desenvolvimento desigual e combinado do sistema capitalista (Mandel, 1975), as instituições multilaterais do sistema mundial buscaram criar as condições para a definição de políticas diferenciadas dentro de uma estrutura geral para territórios com desenvolvimentos diferentes. Consequentemente, o objetivo era que nenhum sistema escolar, independentemente do desenvolvimento das forças produtivas de cada país, estivesse desalinhado com a lógica do capital na educação.

– A reforma de 1972 concentrou-se em fixar o mandato dos membros do Conselho em quatro anos, com o objetivo declarado de dar a maior oportunidade possível aos diferentes países. Ficou claro que a passagem de nacionais pelo Conselho Executivo garantia parceiros locais para a implementação de políticas de padronização e normalização educacional e, portanto, era necessário garantir que todos os países passassem por esse órgão diretivo da UNESCO.  

– A reforma de 1976 teve como objetivo estabelecer os mecanismos e procedimentos para poder substituir os representantes do Conselho Executivo em caso de ausências temporárias ou permanentes. Essa iniciativa protegeu a organização multilateral de crises políticas internas resultantes da necessidade de substituir um membro (por morte, renúncia ou outras circunstâncias), o que gerava tensões e pressões dos campos ideológicos em disputa na época.

– A reforma de 1991: alterou “o Artigo V da Constituição da UNESCO, relativo ao status dos membros do Conselho Executivo, que, a partir da 27ª sessão da Conferência Geral (1993), é composto por Estados Membros e não por membros eleitos em sua capacidade pessoal” (2022:11). Evidentemente, o processo de desmantelamento da URSS, a virada lenta e progressiva da China em direção à lógica do capital que vinha ocorrendo desde a reunião Nixon-Mao (1972), o curso regressivo de revoluções como a vietnamita ou a sandinista, o surgimento da aceleração incomum da inovação tecnológica, a crise de estagnação dos sistemas escolares devido à incompreensão das exigências do capital na educação desde a terceira revolução industrial, a chegada da Internet e o horizonte da inteligência artificial e seu impacto na educação exigiram um realinhamento absoluto das operações de mudança educacional em escala global. O paradigma do fim da história (Fukuyama, 1992) tornou obsoleta qualquer necessidade de consenso e encontro entre ideologias outrora antagônicas (capitalismo/comunismo).  

A desordem educacional da nova ordem mundial

Desde a sua fundação até a chegada da terceira revolução industrial, a UNESCO foi clara quanto ao seu papel como órgão de massificação educacional, promovendo a estruturação e a consolidação dos sistemas escolares para garantir a reprodução biopolítica do sistema capitalista por meio da educação para a democracia, da cidadania para o sistema político de representações, da educação para o consumismo e das abordagens disciplinares de aprendizagem. Ao mesmo tempo, serviu como plataforma para a redução do conflito geopolítico entre os EUA e a URSS, garantindo que o mundo soviético mantivesse intactos a estrutura e o funcionamento da máquina educacional comprometida com a mudança estrutural baseada em conteúdo alternativo e na elevação do status do trabalho nas escolas e universidades. sem ousar ir além da estrutura escolar de Comenius (1657).

Mas o capitalismo da terceira revolução industrial exigia agora uma redefinição da máquina escolar (Bonilla-Molina, 2023), que lhe permitisse evoluir de abordagens disciplinares para a transdisciplinaridade, que superasse o ritmo da reprodução cultural e se abrisse para a incorporação do novo, acompanhando a aceleração da inovação tecnológica, que pudesse prever o futuro imediato e reorganizar o conhecimento que o amanhã exigia. 

Isso implicou um giro de 180 graus para a organização multilateral, cuja transição gerou uma série de iniciativas de mudança de paradigma, sendo o Relatório Faure (1973) o mais amplamente reconhecido. O Relatório “Learning to Be: Educating for the Future” (1973) funcionou como um catalisador para iniciativas de mudança. Primeiro, ele postulou que havia uma percepção negativa dos cidadãos do mundo com relação à educação e ao papel dos sistemas escolares, dando início à onda de reformas educacionais que começou no final daquela década e continua até hoje. Em segundo lugar, destaca que o que é ensinado nas escolas e universidades está desatualizado, e as instituições escolares têm dificuldade de incorporar o novo no processo de ensino-aprendizagem. Em terceiro lugar, enfatiza a precariedade dos sistemas escolares na formação do talento humano exigido pelo mundo do trabalho em um modo de produção que tende à automação, à tecnologia da informação, à robótica e que exige níveis incomuns de criatividade.

O Relatório Delors (1996), “Rumo a um Bem Comum Global” (Unesco, 2015) e “O Futuro da Educação” (Unesco, 2021) renovam o discurso sobre a necessidade de mudanças estruturais nos sistemas escolares. Paralelamente, entre 1970 e 2015, a Unesco cria um corpo de intelectuais que tem a tarefa de propagar a necessidade de capitalismo da terceira revolução industrial como uma “boa notícia”, sob figuras narrativas como “complexidade”, “reimaginando nosso futuro juntos” e, mais recentemente, “deixe aqueles que sabem sobre isso falarem sobre educação” (Unesco, 2021), que visa limitar a um número pequeno e finito as vozes a serem consultadas sobre o destino da educação.

Na terceira revolução industrial (1961-2015), a Unesco se mostrou ineficaz no cumprimento das tarefas delineadas pela própria Comissão Faure que promoveu, pois, embora se falasse em transdisciplinaridade em todo o mundo, não surgiram escolas e universidades transdisciplinares, foram promovidos processos de institucionalização do pensamento complexo que resultaram em um desastre colossal, e a convergência disciplinar (Bonilla-Molina, 2023) que começava a se delinear no horizonte das exigências do capital não teve forma acadêmica para se materializar. Tudo isso mostrou uma séria estagnação conceitual, epistemológica e paradigmática da organização multilateral.

No entanto, todo o redirecionamento da política educacional supranacional, com um tecido nacional, serviu para impor a cultura avaliativa (Bonilla-Molina, 2020) aos professores, às instituições, à aprendizagem, bem como à política de competências para os mercados educacionais (rankings, bibliometria), demonstrando eficácia política na mercantilização, desterritorialização e estratificação das escolas (Bonilla-Molina, 2023).

O papel da UNESCO na atual reestruturação neoliberal

A partir de 1993, aproveitando a confusão causada pela queda do Muro de Berlim e a popularidade do discurso sobre o fim da história, o alinhamento e a sincronização da UNESCO com o movimento do neoliberalismo educacional começaram a tomar forma. Podemos dizer que Federico Mayor Zaragoza foi o último diretor geral da UNESCO (1987-1999) que tinha o perfil de ser um acadêmico de consenso, humanista, pluralista e com uma visão interessante sobre o direito à educação. No entanto, coube a ele começar a liderar um CE, composto principalmente por representantes oficiais do governo.

Em 1994, praticamente sem nenhuma resistência do pensamento crítico em educação, a UNESCO criou o LLECE (Laboratório Latino-Americano de Avaliação da Qualidade da Educação), o que implicou a assimilação dos paradigmas da gestão da qualidade total, a padronização regional dos parâmetros de medição e a unificação dos indicadores de monitoramento no campo da aprendizagem. O objetivo era acelerar a unificação de novos objetivos, metas, processos e resultados impulsionados na forma de políticas educacionais nacionais pelos estados-membros. Isso complementou as iniciativas de padronização global, como os acordos de Jomtein (1990), Dakar (2000), o Fórum Mundial de Educação na Coreia do Sul (2015) e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (2000), que abriram caminho para o paradigma do ODS4 de Educação de Qualidade (2015-2020) e a transformação digital das políticas educacionais (2015-2030).

A percepção crescente é de que a UNESCO não tem sido capaz de construir uma narrativa prática que ilumine o horizonte da mudança educacional exigida pelo capitalismo da quarta revolução industrial (Schwab, 2016), em um contexto de aceleração sem precedentes da inovação com impacto no mundo do trabalho e da empregabilidade, superando a transdisciplinaridade pela convergência disciplinar, bem como o impacto da Inteligência Artificial (IA), reconhecimento facial biométrico, análise de metadados, internet das coisas e blocos de dados na educação. 

A tradução simplista que muitos tomadores de decisão fazem sobre as medidas a serem tomadas limita-se a criar novas disciplinas, salas de aula invertidas pela tecnologia e outras próteses tecnológicas (Sadin, 2020) para os sistemas escolares, quando o que o centro tecnológico-econômico capitalista parece exigir é uma reestruturação total da escolarização, incluindo as noções de currículo, didática, avaliação, ensino e aprendizagem,  planejamento e gestão escolar. A UNESCO, sendo dirigida por representantes do governo, tem a lógica e o timing político das burocracias governamentais e está começando a mostrar sinais de incapacidade de resolver os desafios do capitalismo atual. Talvez por esse motivo, outras organizações (BM, BID, CAF, OCDE, FEM, G-20 da educação) estejam começando a disputar sua liderança na condução da agenda educacional global. Isso foi observado na configuração das políticas educacionais globais por meio do “filantrocapitalismo digital” (Saura, 2020).

Tudo isso está acontecendo em meio a uma paralisia cognitiva em uma parte importante do pensamento crítico na educação, conforme evidenciado nos preparativos e na realização da Conferência Mundial sobre Educação Superior (CMES 2022) e no chamado Plano de Ação para a Educação Superior, que a UNESCO está tentando impor como um caminho para a mudança no setor de educação universitária sem nenhum consenso. O que aconteceu em Barcelona (WCHE 2022) é realmente vergonhoso e mostra a subordinação da organização multilateral ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), ao Banco Mundial, ao WEF, à Organização Mundial do Comércio e à “infocracia digital” (Han, 2022) em questões como o microcredenciamento, treinamento vocacional nas mãos do setor empresarial, educação universitária de curto prazo (dois anos), revalidação periódica de qualificações profissionais, desmantelamento da educação em ciências sociais e humanas com o novo paradigma de aprendizagem ao longo da vida para empregabilidade em seu núcleo. 

A UNESCO é hoje uma organização subordinada à lógica neoliberal, mas, paradoxalmente, com sérias limitações para interpretar o horizonte de mudanças exigidas pelo capitalismo sob o formato da transformação digital. Ela navega as cegas nesta área e isso pode significar uma derrota estratégica, pois não parece ser capaz de levar o navio da educação ao porto do capitalismo digital, muito menos ao porto da emancipação pedagógica.

Conclusão

A UNESCO está passando por uma crise estrutural de identidade, eficácia e legitimidade. Essa crise se deve à legitimação do modelo neoliberal e aos avanços do capitalismo na era digital na educação, sem que isso tenha significado que ela possa realmente operar como uma instituição de vanguarda para o neoliberalismo, em um quadro de profundo impacto da aceleração da inovação no modo de produção capitalista, que exige um tipo diferente de educação e de funcionamento escolar, enquanto está, cada vez mais, de costas para uma educação a serviço do povo. A única bandeira que ela mantém e que lhe dá algum fundamento é o da inclusão, mas cada vez mais essa ideia parece ser mediada pela proeminência do setor privado.

Apesar disso, a UNESCO ainda é um campo de disputa que não pode ser abandonado. Mas trabalhar por outra UNESCO possível significa quebrar os cristais da inocência pedagógica e política.

Luis Bonilla-Molina é professor da Universidade do Panamá e ativista venezuelano em defesa da educação pública em vários países da América Latina e do Caribe.

Referências

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