A situação peruana após o golpe de Boluarte
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A situação peruana após o golpe de Boluarte

A destituição do presidente Castillo levou ao desenvolvimento de uma ditadura neoliberal no Peru

Antonio Neto e Jorge Escalante 15 ago 2023, 08:39

Após oito meses de usurpação do governo por Dina Boluarte, se tudo continuar assim, o futuro do Peru e do povo peruano estará em risco. Em 7 de dezembro de 2022, após a destituição de Pedro Castillo, Dina Boluarte, sua vice-presidente, assumiu o governo do Peru, legitimada pelo Congresso e com a bênção da grande burguesia. Ela usurpa a cadeira presidencial com o objetivo de esmagar a luta do povo e, assim, garantir a continuidade do modelo neoliberal.

O povo peruano saiu às ruas em resposta ao governo autoritário. Entre dezembro e março, o Peru passou por uma crise multidimensional e a Polícia Nacional, juntamente com o Exército sob o comando de Dina, reprimiu brutalmente às manifestações, deixando um saldo de 70 mortos.

Em julho, houve uma nova jornada de lutas, mas agora com um elemento novo, um passo importante a caminho da unidade, tão necessária para a luta: o Comitê Nacional Unificado de Luta do Peru (Conulp). É uma organização que surgiu no calor da luta, representando as regiões do sul e a Assembleia Nacional dos Povos (ANP). Uma frente unida da qual participavam a CGTP, os sindicatos, algumas forças de esquerda etc. Esses dois espaços se uniram e convocaram a um 1ª Encontro Nacional, entre os dias 1º e 2 de julho, que contou com a participação de cerca de 750 delegados de diferentes províncias.

Após debates e discussões, chegou-se a um acordo sobre uma plataforma política, na qual as palavras de ordem centrais eram a destituição do governo usurpador, a destituição do Congresso e uma Assembleia Constituinte, o julgamento e a punição dos assassinos e a reparação das vítimas, com liberdade para todos os presos políticos – até mesmo para Pedro Castillo.

Mas o desgaste de meses de mobilização, a burocracia sindical e o acordo entre os diferentes setores da direita constituíram um desafio para o movimento popular e a resistência peruana. Será que Dina permanecerá na presidência até 2026? Ela cairá pela força das ruas ou por outro golpe das mesmas elites que a colocará lá? Dina conseguirá resolver os graves problemas sociais ou o povo voltará às ruas, com mais força?

Castillo, Boluarte e a luta do povo peruano

O Peru é um país em crise, com instabilidade política, crise econômica, crise ambiental e alimentar. Como em muitos outros países da região, o colapso e o fracasso do modelo econômico neoliberal levaram a maioria a uma situação de multicrise. Como resultado, temos agora um país sem direção e sem futuro.

Em 2022, 47% das famílias peruanas sofriam de insegurança alimentar. Em 2023, a situação é muito pior. Em outras palavras, uma em cada três pessoas deixará de comer uma vez por dia. Esse é um número assustador.

Essa situação piorou nos anos pós-pandemia. As condições que vivemos em 2022, com inflação, falta de emprego e insegurança política, pioraram as já existentes. Naquele ano, 47% das famílias peruanas sofreram com esse contexto de insegurança alimentar. Em 2023, a situação é agravada pelo aumento da inflação, dos preços dos alimentos, pela falta de recuperação do emprego e pelo ciclo negativo da economia. Esses fatores tendem a piorar com fenômenos climáticos que causam destruição e morte.

Expectativa de mudança com Castillo e como ele ganha apoio popular

Diante de um país que caminhava para a barbárie, em 2021 foram realizadas as eleições gerais. Uma parcela da população entrou em um processo de ruptura com os partidos tradicionais. Juntamente com uma crise que não seria resolvida pela direita, gerou-se uma forte polarização que se agudizava a cada dia. O movimento social, que lutava por suas reivindicações, ao mesmo tempo, contra a corrupção, busca uma solução para a crise, e crescia a necessidade de uma Nova Constituição.

Na campanha eleitoral, a figura do candidato Pedro Castillo emergiu de menos para mais e, para uma parte da população, especialmente no Peru profundo, ele estava crescendo como uma luz no fim do túnel; a grande oportunidade de avançar em um processo de mudanças necessárias para melhorar a situação de milhões e, acima de tudo, para tornar realidade uma saída constituinte e enterrar a Constituição de Fujimori.

Depois de uma campanha eleitoral com uma mensagem progressista, ele ganhou força nos setores mais humildes e abandonados, e foi assim que chegou ao segundo turno, onde se enfrentaria com Keiko Fujimori, a extrema direita e não de um partido político, mas uma organização criminosa. Do outro lado, o “professor” trazia uma correlação importante. Nos resultados do segundo turno, Castillo lidera com 50,12%, o que representa 8.835.579 votos; enquanto Fujimori obteve 49,87%, o equivalente a 8.791.521 votos.

Pedro Castillo é um líder do sindicato dos professores. Em 2017, liderou uma greve da categoria por 60 dias, apesar de não ter o apoio do sindicato oficial SUTEP, dirigido por Patria Roja (PR). Castillo chegou a Lima com 40 professores de muitas províncias e eles ficaram acampados na Plaza San Martin por 60 dias. Essa luta fez com que Castillo se tornasse um ponto de referência para seus colegas, e também conquistasse a simpatia de um setor da população. É por isso que, além de ser um professor rural, fluente no quechua do Peru profundo, o campo e os mais despossuídos lhe deram o voto de esperança contra os partidos tradicionais do modelo e da direita.

A direita declarou guerra a ele assim que Castillo ultrapassou Keiko, pois viu que a oportunidade de mudança estava se abrindo e que os interesses econômicos de seus parceiros no Confiep corriam risco. Houve várias tentativas do fujimorismo e da direita para impedir que assumisse o cargo – como acusações de fraude, apelo aos militares, indo até a OEA e fazendo um grande espetáculo. A continuação dessa guerra foi no Congresso, bloqueando qualquer tentativa de reforma, especialmente não permitindo a aprovação do referendo para que a população pudesse decidir democraticamente se concordaria ou não com uma Assembleia Constituinte.

A ala direita do Congresso se dedicou a questionar os funcionários do gabinete de Castillo, com o objetivo de destituí-lo do cargo e, em um ano e meio, apresentou três moções de destituição, sendo que as duas primeiras foram frustradas pela mobilização popular que lutou para que seu voto em Castillo fosse respeitado.

A esperança de mudança parecia estar se aproximando a cada momento, o apoio a Castillo foi mobilizado nas ruas, foi formada a Frente pela Democracia e Governabilidade – que reuniu muitas organizações sociais e diferentes forças de esquerda – pronta para lutar ao lado do “profe” para construir um Peru diferente, com oportunidades, justiça, trabalho com salário digno, educação, saúde etc.

Uma esperança que se frustra

Castillo, já na presidência, estava frente a um dilema: avançar nas mudanças propostas junto com o povo organizado ou se adaptava ao regime. Acaba capitulando, cedendo à direita e se tornando mais um governo que defraudava o povo. Assim, as esperanças de mudança voltam a se afastar, e Castillo foi se voltando cada vez mais para a direita, tentando obter o consentimento da ala para governar em paz e harmonia com os setores conservadores, o que o levou a ceder cada vez mais, deixando de lado o programa de mudança que estava incorporado no plano bicentenário.

Os quatro gabinetes diferentes que Castillo apresentou, compostos por alguns políticos sem capacidade, só mostraram que a orientação desse governo era o continuísmo neoliberal, e é impossível fazer mudanças estruturais com lobistas neoliberais, como os dois últimos ministros da economia, Oscar Graham e Kurt Burneo.

Outro aspecto negativo foi que ele se cercou de funcionários corruptos com registros verificáveis e, apesar das sugestões de que deveria removê-los, ele não o fez. Até hoje, não há provas de que Castillo tenha tocado em dinheiro da corrupção, mas está claro que ele a deixou acontecer sabendo que ela existia.

Assim, um ano e meio se passou com uma crise que crescia como uma bola de neve. As demandas que ele prometeu implementar sem medir as possibilidades de nunca cumpri-las, assim como as propostas eleitorais, permaneceram congeladas; e o programa de seis pontos acordado entre Castillo e o Novo Peru, para concretizar o apoio, certamente permaneceu em uma gaveta de escrivaninha em algum lugar.

À medida que a crise avançava e as demandas populares eram adiadas, a lua de mel entre Castillo e o povo começou a diminuir, e houve até greves e manifestações contra o governo exigindo que seus problemas fossem resolvidos. Um ano e meio de governo, e a célebre frase “palavra de mestre” era apenas isso, uma frase. O ataque permanente da direita com o objetivo de destituir Castillo do cargo, com as decisões desastradas e equivocadas de “ensinar”, querendo demonstrar que os interesses econômicos das grandes empresas não estavam em risco e, assim, poder continuar no governo, foi a estratégia que afastou Castillo das bases e o levou a uma crise permanente.

Terceira moção de vacância e o fatídico 7 de dezembro

A direita no Congresso, com argumentos absurdos, apresentou a terceira moção para destituir Castillo, mas até 7 de dezembro, dia em que a votação seria realizada no plenário do Congresso, a direita não tinha votos suficientes. E esse também foi o dia em que Castillo lhes deu uma mãozinha para que a ultradireita pudesse atingir seu objetivo. Ao mesmo tempo, foi convocada uma mobilização popular contra a destituição do presidente. Vale ressaltar que as principais razões para essa mobilização não eram mais de apoio ao governo, como foram as duas tentativas anteriores de destituição. A preocupação era que, se Castillo fosse destituído algo pior viria, a direita reacionária e racista ocuparia o governo, um cenário negativo para o movimento social.

E, naquele dia, horas antes da mobilização, o presidente Pedro Castillo propôs o fechamento do Congresso, sozinho, sem articulação, desastrado como havia sido todo o seu governo. Uma medida que mudou a situação no Congresso, pois, dentro das regras do regime, a manobra foi considerada um golpe. Isso fez com que um setor de congressistas mudasse de posição na votação da moção e conseguisse um número suficiente de votos para aprovar a vacância.

Dias antes, a vice-ministra de Castillo, Dina Boluarte, que havia jurado lealdade ao seu presidente, rompeu com ele depois de chegar a um acordo com a direita, no qual obteve apoio para assumir seu cargo. Foi uma boa tática para usar Boluarte como um cavalo de Troia, assumir o governo e se tornar um fantoche a serviço do golpismo. Após a tentativa de fechar o Congresso, o judiciário ordenou a prisão de Castillo, e lá ele permanece até hoje.

Se inicia um processo político e da violência de estado

A grande maioria da população entende a grande ameaça dessa nova mudança no tabuleiro político; o setor político mais reacionário, racista e autoritário, com um traço fascista marcante, está por trás da figura de Boluarte. Dessa forma, esse setor pode avançar em seu principal objetivo: ser o próprio governo sem intermediários. Keiko Fujimori seria, muito provavelmente, a candidata do grande capital e da direita reacionária. Para isso, eles buscam assumir o controle das instituições, principalmente do JNE, do judiciário, do TC e da Defensoria Pública.

Porém, do lado do movimento popular, iniciou-se um processo de luta e mobilização na região macrossul e no centro do Peru, principalmente em Puno, que se converteu em vanguarda do processo, exigindo a renúncia de Boluarte, o fechamento do Congresso e um referendo para uma assembleia constituinte.

A resposta do governo foi com mão de ferro, uma brutal repressão às manifestações. Com o objetivo claro de esmagar a luta do povo e suas esperanças de mudança, as Forças Armadas e a polícia de Boluarte assassinaram quase 70 irmãos e irmãs. O massacre em Juliaca foi o ato mais repudiável, Com 18 mortos em um dia, permanecerá na memória coletiva como os casos de Cantuta e Barrios Altos. Boluarte, que estava tentando se tornar a primeira mulher presidente, será lembrado como a assassina de 70 irmãos.

No processo, ao calor da mobilização, as palavras de ordem se tornaram cada vez mais claras. Raramente houve um consenso nacional sobre o sistema de consignas, e isso se tornou um processo político e democrático, exigindo “Fora Boluarte”, o fechamento do Congresso e uma Assembleia Constituinte como saídas para a crise. Algumas outras palavras de ordem foram acrescentadas, como reparação para as famílias dos assassinados, liberdade para os presos políticos e punição para os assassinos.

Durante os meses de janeiro, fevereiro e março, Lima foi o epicentro do processo. Os irmãos do Sul receberam a simpatia e o apoio da esquerda e das organizações progressistas, como o Nuevo Perú, que montou sua sede para abrigar os irmãos. Ele foi único partido que abrigou os companheiros e que, dia após dia, forneceu mais de 3 mil almoços, graças ao apelo de solidariedade que foi feito por doações.

Houve duas ondas de lutas em Lima nos primeiros meses de 2023. O calor intenso não impediu as marchas, inclusive as marchas de sacrifício de Huaycan-Lima, mas a falta de unidade em um corpo para liderar a luta foi um fator que contribuiu para o fracasso em derrubar o governo de Boluarte. E do lado do governo, as Forças Armadas, o PNP, a ala direita do Congresso, as grandes empresas e o imperialismo cerraram fileiras em defesa do regime e da Constituição de 1993.

E foi assim que as duas primeiras ondas chegaram ao fim. O processo fez uma pausa para recuperar sua força mas, acima de tudo, para tirar conclusões e ter a clareza que estava faltando. Desde a região Sul se conformou o Comando Nacional Unitário de Luta do Peru (Conulp).

“3ª tomada de Lima”

Após alguns meses, e depois de discutir os balanços das duas primeiras ondas de luta em diferentes espaços e em todos os setores – com exceção dos sectários -, eles acabaram chegando a uma conclusão: é necessária a mais ampla unidade na organicidade e nas ruas. Um passo importante foi dado na busca dessa unidade tão necessária: a ANP e a Conulp uniram forças e convocaram a primeira reunião nacional em 1º e 2 de julho, na qual delegados de muitas províncias do Peru se reuniram e concordaram com as consignas políticas e também uma plataforma social.

Na reunião, houve pontos de divergência com um setor minoritário, que propunha a recondução de Pedro Castillo sem um forte argumento político, e o outro, em contradição com o primeiro, era a antecipação das eleições. Ambas consignas não foram incluídas e foi decidido baixá-las para discussão nas bases.

Os acordos da reunião são:

  • Convocação de uma “3 tomada de Lima” para o 19J.
  • FORA COM BOLUARTE
  • FECHAMENTO DO CONGRESSO
  • REFERENDO PARA UMA ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE
  • PREPARAÇÃO PARA AS FAMÍLIAS DOS IRMÃOS ASSASSINADOS E LIBERDADE PARA OS PRESOS POLÍTICOS
  • PRISÃO DOS RESPONSÁVEIS PELOS ASSASSINATOS

Ao se aproximar o dia 19 de julho, o governo e a mídia de direita iniciaram uma campanha de terror e ameaças de mais mortes. Apesar disso, o dia 19 foi um dia de luta impressionante, muitas delegações das províncias vieram a Lima; em muitas províncias também houve ações de luta, sendo Lima o epicentro. Houve uma forte mobilização na qual diferentes setores, que não faziam parte dos primeiros meses de mobilização, se juntaram ativamente.

Foi uma demonstração de repúdio a Boluarte e ao Congresso, um golpe muito forte contra o governo. Neste momento, o processo ainda está em aberto, e há pelo menos dois cenários. O que está em jogo nesse processo é o futuro do Peru: ou se consolida um governo reacionário com traços fascistas ou avançamos em um processo de mudanças estruturais.

O Nuevo Perú e o vácuo de liderança

Os nefastos governos dos últimos 30 anos, com abuso e exploração permanentes, geraram uma erosão dos partidos políticos, o que em 2020 levou à mobilização explosiva e maciça contra o golpe liderado por Manuel Merino, que durou apenas cinco dias após sua posse como presidente. Esse foi o início de um processo de ruptura com os partidos tradicionais. Somado a isso, a traição de Ollanta, a direitização de Pedro Castillo, e após a capitulação do Cerronismo no Congresso, a questão da construção e da influência se tornou um desafio também para a esquerda. No momento, a única organização nacional com um programa de transição, onde é possível construir, é o Nuevo Perú (NP).

O NP segue sendo um espaço que pode avançar em ser um ponto de referência. Nossa corrente dentro dele está travando uma batalha para que o curso e a estratégia não mudem.

Estarmos próximos de alcançar a legalidade. É um fato político de grande importância e significado. É quase impossível para um partido obter a legalidade no Peru, ainda mais para um partido que não faz parte do regime político, com 40 mil filiações, 80 comitês locais nos distritos.

O Nuevo Perú já superou os requisitos do JNE, que é alcançar mais de 30 mil filiações e conseguimos consolidar comitês em 40 distritos. Ter Veronika Mendoza como porta-voz principal é uma vantagem favorável. Veronika é psicóloga e antropóloga e, nas últimas eleições, obteve 7,9% dos votos com um programa de reformas que, entre outras coisas, inclui medidas antineoliberais e independência em relação ao imperialismo, abrindo caminho para a luta anticapitalista no Peru. De fato, o processo de mobilização contribuiu para a obtenção da legalidade do Nuevo Peru e isso pode ser uma referência para milhares de trabalhadores, jovens e camponeses em todo o país. A conquista de sua legalidade será um passo importante diante dos desafios impostos à esquerda peruana.

Súmate

Desde o início, estamos impulsionando esse processo para derrubar Boluarte e seus aliados no Congresso. A luta básica do povo peruano vai além de exigir que Boluarte, a assassina e fantoche da direita, saia. A luta do povo peruano é contra o modelo econômico e o sistema capitalista que está arrastando o mundo para um abismo.

Precisamos estar cientes do que estamos enfrentando a fim de nos prepararmos para um processo de longo prazo. Ao mesmo tempo, uma tarefa no calor da luta é construir um instrumento político independente do regime e de seus partidos que rompa com o modelo e, junto com o povo organizado, decida o futuro de nossa nação.

Antonio Neto é geógrafo, professor e membro da comissão internacional do MES

Jorge Escalante é sociólogo, líder nacional das correntes Súmate e Nuevo Perú


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