Ilya Budraitskis: “se quisermos entender a extrema direita no Século XXI, temos que olhar para o caso da Rússia”
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Ilya Budraitskis: “se quisermos entender a extrema direita no Século XXI, temos que olhar para o caso da Rússia”

Entrevista com o militante socialista russo exilado devido pela perseguição do governo Putin

Ilya Budraitskis 2 set 2023, 09:41

Via Radar Internacional

Berço da maior revolução socialista da história, a Rússia passou por intensas transformações sociais, econômicas e políticas ao longo do século XX. Da ascensão de Stalin ao atual regime de Putin, pouco restou da experiência organizativa dos soviets e do legado socialista que caracterizou os primeiros anos da Revolução de 1917. Ilya Budraitskis, militante socialista russo, é categórico ao afirmar que o atual regime de Putin apresenta todos os traços do que poderíamos caracterizar como o fascismo do século XXI.

Ilya Budraitskis é militante e teórico político. Viveu em Moscou por muitos anos, onde consolidou sua militância, e é autor de diversos textos sobre política, cultura e história intelectual russa. Tem artigos publicados em revistas acadêmicas, como Radical Philosophy, New Left Review, Slavic Review e South Atlantic Quarterly, e também em importantes portais de mídia crítica, como Jacobin, London Review of Books, E-Flux, Le Monde Diplomatique, Inprecor e Open Democracy. Sua coleção de ensaios Dissidents among Dissidents: Ideology, Politics and the Left in Post-Soviet Russia (ainda sem edição em portugues) foi publicada pela editora Verso em 2022. Ele também é membro do conselho editorial do portal russo socialista anti-guerra Posle.media.

Em sua passagem pelo Brasil, Budraitskis conversou com o Radar Internacional sobre o processo de despolitização da sociedade russa pós-URSS, os impactos do neoliberalismo, as características do regime Putin e suas estratégias de aproximação com o Sul Global. Por fim, comentou sobre as possibilidades de organização da esquerda russa hoje.

Radar Internacional: Nós gostaríamos de começar perguntando como você caracteriza o regime de Putin: é um regime nacionalista? Fascista? Você pode falar um pouco mais sobre isso?

Ilya Budraitskis: Sim, eu diria que esse regime existe há mais de 20 anos e, durante todo esse período, passou por uma séria transformação. Então começou como um regime bonapartista neoliberal e se transformou em um tipo de ditadura aberta fascista. E eu acredito que essa transformação em um regime fascista começou depois do início da invasão da Ucrânia. Posso apresentar uma análise mais extensa sobre como essa transformação aconteceu ao longo desses anos.

Isso aconteceu devido a duas tendências paralelas existentes no interior da sociedade russa, especialmente durante a última década. Porque se você olhar para a transformação do regime de Putin, você pode dizer que o primeiro período da sua existência, isto é, os anos 20000, foi caracterizado pelo crescimento econômico, pela implementação de reformas neoliberais e por um profundo processo de despolitização da sociedade russa, que trouxe como consequência a desarticulação e a alienação da maior parte das formas de auto-organização política.

Mas em 2011 e 2012, algo importante acontece. Depois da crise econômica de 2009, a economia russa ainda não havia se recuperado, então o crescimento econômico ainda não havia sido retomado e a economia russa encontrava-se estagnada. No mesmo período, a despolitização dá lugar a um novo movimento de protestos iniciado no fim de 2011 principalmente em Moscou, mas que também tem repercussão em muitas grandes cidades russas. Era um movimento contra o regime, cujas demandas eram em sua maioria políticas, e não sociais, mas que de alguma forma eu acredito que também refletiu o crescente descontentamento da situação econômica e social.

Esse movimento emergiu exatamente no momento em que Putin decide voltar à presidência e se candidata para as eleições presidenciais de 2012, concorrendo para o seu terceiro mandato. Diferentemente das suas campanhas na década de 2000, esta não foi marcada por um processo despolitizado, mas sim por uma ofensiva conservadora e anti-revolucionária. Então a partir desse momento, é possível dizer que se inicia uma virada conservadora no regime de Putin. O discurso apresentado por ele é de que as manifestações não eram um movimento de oposição interna, mas sim um grupo de agentes externos, de traidores nacionais, de pessoas que querem destruir a família tradicional, os valores tradicionais russos e assim por diante. Então, a partir desse momento a retórica extremamente conservadora é adotada na ideologia desse regime.

Em 2014, a Rússia inicia o envolvimento militar na Ucrânia, com a anexação da Crimeia. Para Putin, isso não era apenas uma questão de política externa, da recuperação da influência imperial da Rússia no espaço pós-sovietico, mas também uma questão de política interna. Era sobre a criação de uma unidade patriótica da sociedade russa em torno do seu presidente. É visível o quão rápido Putin recuperou sua popularidade na sociedade russa depois da anexação da Crimeia.

Mas o efeito da Crimeia, o efeito de comício em torno da bandeira, não durou muito tempo. Três anos depois do que ficou conhecido como “reunificação da Crimeia”, a popularidade de Putin começa a diminuir e uma nova onda de manifestações se inicia na Rússia. A partir de 2017, um novo movimento começa a emergir contra a corrupção, contra o autoritarismo do regime e, no fundo, contra a profunda desigualdade social existente na sociedade russa. Essas manifestações ficaram muito associadas à figura de Alexei Navalny, mas na verdade não se tratava de um movimento apenas de seus apoiadores pessoais. Do lado do regime, tudo isso foi articulado como a luta contra a “revolução colorida”.

Então qual era o maior problema na Ucrânia? De acordo com Putin era Maidan, era a destituição ilegal do governo pelo povo e isso é absolutamente inaceitável. Então era necessário impedir que isso acontecesse na Ucrânia e na Rússia. Putin adota então uma postura contra essa possível revolução porque, para ele, todas as revoluções que ocorreram na Rússia, incluindo a de 1917, vieram como produto da atividade de inimigos externos. De acordo com ele, todas as revoluções são uma conspiração, são processos que vêm de fora para desestabilizar o Estado russo. E, de fato, esse pensamento anti revolucionário está muito presente na versão oficial da história russa, nos livros de escolas, nas grandes exposições historiográficas, nos quais não apenas 1917 é apresentado como uma espécie de motim anti-russo organizado pelo Ocidente mas até mesmo os levantes populares do século XVIII, como o Levante de Pugachev, que foi apresentado como uma conspiração vinda do exterior.

Nesse sentido, é possível ver como o início da invasão não foi apenas uma questão de política externa, mas também uma forma de disciplinar a sociedade russa. E quando você olha para os primeiros meses dessa invasão, você percebe como internamente as regras do jogo mudaram completamente na Rússia. Desde o início da invasão, não é possível criticar a guerra de nenhuma forma. Não é permitido nem mesmo falar sobre este evento enquanto uma guerra. Usar a palavra “guerra” é um ato criminoso de acordo com a lei russa, porque oficialmente não é uma guerra, mas sim uma “operação militar especial”. Este é o termo que você deve usar para descrever esse evento.

Toda a mídia independente que permaneceu até esse momento no país foi expulsa uma semana depois da invasão e atualmente é possível ver essa tendência repressora da recuperação da unidade total da Rússia, como Putin apresenta. Para ele, nós enquanto sociedade russa somos consolidadas em torno da ideia de luta contra o Ocidente, contra qualquer tipo de inimigo interno e externo e nenhum tipo de crítica ainda é permitida no país. Por exemplo, talvez você tenha visto que na semana passada Boris Kagarlitsky foi preso em Moscou. Isso aconteceu como parte de uma crescente campanha de repressão das manifestações, que já deixou um saldo de muitos presos políticos. E quando Putin foi perguntado em uma conferência de imprensa sobre Kagarlitsky, claro que disse que era a primeira vez que ouvia esse nome, como sempre faz, mas também falou: “nós estamos agora em um conflito militar com nosso vizinho. É por isso que tudo o que for feito contra a nossa unidade nacional deve ser eliminado. Esta é a razão para todos esses casos”.

Eu penso que se nós falarmos do movimento fascista hoje, de qual a cara do fascismo no século XXI, deveríamos olhar para o que já está acontecendo na Rússia. Porque nós estamos em um contexto onde já não é necessário um movimento de massas vindo de baixo, pode ser uma virada fascista, vinda de cima. Se você olhar para o fascismo clássico, que emergiu no século XX, era sempre a combinação de movimentos de massa com a classe dominante, que usava o movimento de massas para transformar o regime político. Hoje, para as sociedades que já foram muito destruídas pelo neoliberalismo, com a destruição de qualquer tradição de organização, de solidariedade etc, nessas sociedades não é mais preciso um movimento de massas fascista. É por isso que eu acho relevante falar sobre a transformação fascista do Estado russo e penso que nesse sentido o caso russo não é único. Não é uma exceção da tendência global, mas sim a imagem dela. Se nós quisermos entender como esses movimentos de extrema-direita podem transformar a sociedade, devemos ter a Rússia como exemplo.

RI: Agora falando um pouco mais sobre a política externa de Putin, ele tem se aproximado do continente africano e do Sul Global de modo geral. Você poderia falar um pouco mais sobre isso? Como nós do Sul Global devemos ver essa aproximação com Putin e a guerra?

IB: Essa é uma pergunta muito interessante, porque definitivamente Putin está tentando explorar esse sentimento antiocidental, anti-EUA, anti colonial e está propondo, no lugar da atual ordem mundial, um outro tipo de modelo, que é chamado de mundo multipolar. E o que é o mundo multipolar? É a existência de civilizações particulares ou Estados-civilizações particulares. “Estados-civilizações” são um importante termo já usado na nova versão da doutrina de política externa russa adotada no começo deste ano. Estado-civilização não significa o mesmo que Estado-nação, mas sim que os verdadeiros Estados soberanos existem como uma espécie de civilização – como os Estados Unidos, a China e a Rússia -. Por exemplo, digamos que o Brasil é um país-chave para a civilização sul-americana. Basicamente, isso significa que você deve controlar o continente inteiro para restaurar a verdadeira soberania do Brasil e para controlar o domínio orgânico dos seus interesses nacionais como um Estado-civilização. O mesmo é verdade para a Rússia, claro, porque o Estado-civilização russo é algo muito maior do que as atuais fronteiras do Estado russo. Então, por exemplo, a Ucrânia organicamente e historicamente pertenceu ao Estado-civilização russo. O mesmo provavelmente é verdade para a China, para recuperar seu próprio Estado-civilização.

Basicamente, se você quiser encontrar as raízes desse conceito, você pode ler o livro do Samuel Huntington, “O choque de civilizações”, onde ele propõe quase a mesma coisa. A ideia de Huntington era que o Ocidente, os Estados Unidos, não deveriam ter a pretensão de propor nenhuma ordem mundial, mas apenas serem responsáveis por sua própria civilização. Então as civilizações ocidentais, como os Estados Unidos e a Europa Ocidental seriam parte de uma mesma civilização e os Estados Unidos seriam o principal Estado dela. Isso significa que o Ocidente não deveria ser muito ambicioso em relação a sua influência e deveria focar nos seus próprios valores, sua própria religião, suas próprias tradições e assim por diante, dando a possibilidade para que outras civilizações tenham suas próprias tradições. Por exemplo, vocês tem suas tradições brasileiras, vocês têm o tipo tradicional brasileiro de regime político, que é provavelmente a ditadura militar, porque é o melhor regime para servir os interesses do seu Estado-civilização, e vocês tem seus valores tradicionais que são particulares da sua civilização e que devem ser preservados. Esse é basicamente o conceito de mundo multipolar. É um mundo sem nenhum senso de universalismo, sem nenhum senso de autodeterminação nacional, porque não é sobre nação, mas sim sobre civilizações, e definitivamente não é um mundo mais justo e igualitário do que o mundo que nós vivemos, talvez seja até pior.

Por exemplo, se você olhar para a África e todas as especulações sobre o que a Rússia tem falado sobre a África e o que a Rússia tem efetivamente feito lá, é o grupo Wagner a chave para entender a política externa russa no continente africano. Você vai ver absolutamente o mesmo tipo de método colonial, porque a Rússia atualmente é quase o principal fornecedor de armas no continente africano e é um país que está tentando explorar e extrair os recursos naturais da mesma forma que as potências ocidentais coloniais e imperialistas. Se você olhar para o que o grupo Wagner está fazendo na República Centro-Africana, onde eles basicamente controlam as principais minas de ouro e o extraem em troca de apoio militar para o atual governo, esse é o típico modo neocolonial de fazer política – providenciar apoio militar para uma elite governante em troca do monopólio de extração de recursos naturais desse país -. Eu não vejo nenhuma diferença dessa política em relação à França ou Reino Unido. A única diferença é que o grupo Wagner representa outro “Estado-civilização”. Na República Centro-Africana, por exemplo, eles promoveram ativamente a religião ortodoxa. Já organizaram missões ortodoxas, treinaram padres locais etc.

RI: Indo para o final da entrevista, eu gostaria de te perguntar sobre as possibilidades de organização da esquerda dentro da Rússia. Como a esquerda atua em relação ao governo Putin? Quais as possibilidades de atuação dentro do Partido Comunista. Como é a organização da resistência dentro da Rússia?

IB: A questão da esquerda na Rússia é bastante complicada, porque eu não acredito que grupos e partidos que apoiam a invasão da Ucrânia possam ser considerados de esquerda ou socialistas. Você pode ver que a direção do Partido Comunista e uma grande quantidade de grupos stalinistas próximos ao Partido Comunista apoiam totalmente a invasão da Ucrânia, o que significa que eles se mantêm integrados ao sistema político de Putin. Esse sistema foi construído e desenvolvido ao longo desses 20 anos de regime Putin e, dentro desse sistema, a direção do Partido Comunista não tem nenhuma capacidade de agência política. É totalmente orientada pelo Kremlin.

O Partido Comunista Russo e o stalinismo em geral na Rússia são muito ligados ao legado imperialista do final do período stalinista. Durante os últimos anos da Segunda Guerra Mundial e logo depois, Stalin explorou muito o legado do nacionalismo russo. Eu acho que a tradição stalinista na Rússia tem esse elemento de chauvinismo russo e a continuidade disso certamente esteve muito presente nas posições do Partido Comunista Russo e de outros grupos stalinistas depois do início da invasão.

Mas claro que existe outra esquerda na Rússia, a esquerda que esteve em oposição às ambições imperialistas do seu próprio governo, formada por grupos socialistas, trotskistas e anarquistas. E como eu já expliquei, atualmente não é possível expressar abertamente críticas à guerra, que é a principal questão política no país. É por isso que não é possível para a esquerda russa anti-guerra atuar legalmente no país neste momento. Muitos ativistas-chave que já eram conhecidos por suas posições anti-guerra e anti-Putin saíram do país. Na minha organização, Movimento Socialista Russo, a maior parte da direção já saiu do país. Kagarlitsky foi preso justamente porque ele continuou a criticar a guerra ainda estando no país. Essa é a razão pela qual ele foi preso.

Há ainda alguns membros dos grupos anti-guerra que estão tentando fazer alguma coisa na Rússia, mas de forma semi-clandestina, como discussões políticas fechadas, eventos de propaganda com convites pessoais, divulgação de informação por meio do Telegram ou Youtube. Mas se você está na Rússia você precisa seguir a legislação russa atual, o que significa que você não pode fazer nenhum comentário sobre a guerra. Não apenas sobre o nome dessa guerra, que não é uma guerra, mas uma operação militar especial, mas também sobre a atuação do exército russo no geral. Porque agora existe uma lei na Rússia que criminaliza todas as fake news sobre o exército russo e a definição de fake news é muito simples: qualquer uso diferente do das declarações oficiais do Ministério da Defesa da Russia. Então, por exemplo, se você disser que o exército russo cometeu crimes de guerra, você pode ser presa imediatamente e cumprir uma pena, em geral, de cinco anos.

RI: É possível ser presa mesmo postando nas redes sociais, como Facebook ou Instagram?


IB: Sim, sim. E não é apenas uma possibilidade, mas há vários casos desse tipo. Centenas de pessoas foram presas ou multadas por suas postagens nas redes sociais. Mas em relação ao Instagram e ao Facebook, essas redes sociais já foram proibidas no território russo, então não é permitido usá-las. O Youtube e o Telegram ainda são permitidos, mas nós não sabemos por quanto tempo. Há rumores de que as autoridades russas vão provavelmente bloquear o Youtube até o fim deste ano. Já foi proposta uma alternativa, uma espécie de plataforma russa totalmente controlada pelo governo para substituir o Youtube, que é bastante popular na Rússia.


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