Gaza é uma prisão sitiada. Esta é minha carta para o mundo lá fora
Palestinians set up tents near the border fence between Israel and east of Gaza city, for a six-week show of support for Palestinian refugees

Gaza é uma prisão sitiada. Esta é minha carta para o mundo lá fora

Ahmed Abu Artema, um dos fundadores da Grande Marcha do Retorno, escreve sobre como enfrentar o ataque genocida de Israel a Gaza

Ahmed Abu Artema 17 out 2023, 14:00

Foto:  Ashraf Amra \ apaimages

Via ESSF

Devo confessar que, nos últimos anos, fiquei seriamente desapontado com os moderados brancos. Quase cheguei à lamentável conclusão de que a grande pedra no caminho do negro rumo à liberdade não é o White Citizens Councillor ou os membros da Ku Klux Klan, mas o branco moderado que é mais dedicado à ordem do que à justiça; que prefere uma paz negativa, que é a ausência de tensão, a uma paz positiva, que é a presença da justiça; que diz constantemente: “Concordo com você no objetivo que busca, mas não posso concordar com seus métodos de ação direta”; que, de forma paternalista, sente que pode estabelecer o cronograma para a liberdade de outro homem; que vive pelo mito do tempo; e que constantemente aconselha o negro a esperar até uma “época mais conveniente”.
(Martin Luther King Jr., Carta da Cadeia de Birmingham, 1964)


Carta da prisão de Gaza

Digo aos moderados dos Estados Unidos e da Europa que é preciso ir à raiz do problema na Palestina. Infelizmente, durante décadas, o mundo não se importou com o sofrimento, o genocídio e a opressão dos palestinos. Mas justamente quando Israel gritou, o mundo inteiro acordou de repente e começou a falar como se os eventos tivessem começado apenas em 7 de outubro.

Não podemos ler um livro começando pelo último capítulo; logicamente, é preciso começar a ler desde o primeiro capítulo. Portanto, quando buscamos justiça, precisamos entender o contexto, a raiz do problema.

O povo palestino não tem como alvo os judeus, apesar do que diz o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e do que disse o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, quando visitou Israel, isso está completamente errado. Os judeus viviam pacificamente nos países árabes antes de 1948. Desde então até agora, os judeus vivem normalmente em alguns dos países árabes.

Nosso problema é que estamos sob um poder colonial. O movimento sionista, quando chegou à Palestina em 1948, cometeu genocídio. Cometeram uma limpeza étnica contra o povo nativo. Eles nos trataram como se o povo palestino não existisse, disseram que a Palestina era “uma terra sem povo” e essa ainda é a situação atual. Há poucos dias, Yoav Gallant, ministro da Defesa israelense, disse que Israel está lidando com “animais humanos”.

Ao dizer isso, Gallant não se refere aos combatentes das facções políticas. Ele se refere ao povo palestino, a todos nós. E Netanyahu disse ao povo, não aos combatentes, mas a todo o povo de Gaza, 2,3 milhões de habitantes, a maioria dos quais são mulheres e crianças, que saíssem agora. O que isso significa?

Significa claramente genocídio. Estamos vendo o que está acontecendo agora. Com o apoio da administração dos Estados Unidos, com o apoio dos governos ocidentais, estamos vendo uma extensão do genocídio que Israel iniciou em 1948. Eles estão planejando deslocar à força o povo palestino.

O problema de Israel não é com o Hamas. O problema de Israel é com a própria existência palestina, isso está claro. Colocamos esse problema para Israel porque ele é um Estado colonial que foi e é baseado na negação da existência palestina. Vou dar dois exemplos.

O primeiro exemplo é que agora Israel está demonizando o Hamas e dizendo ao mundo que seu problema é com o Hamas. Eles estão mentindo. Às vezes fazem comparações entre o Hamas e os nazistas, outras vezes afirmam que há semelhanças entre o Hamas e o ISIS. Mas o Hamas foi criado em 1987. Antes de 1987, não havia Hamas. Mas antes de 1987, havia refugiados. Havia uma ocupação. Havia prisioneiros. Havia massacres. Havia assentamentos ilegais. Havia violações dos direitos humanos. O problema de Israel não começou com o Hamas.

Outro exemplo: hoje, na Cisjordânia, o Hamas quase não está presente. Mas na Cisjordânia há assentamentos ilegais. Desde o início de 2023, mais de 250 palestinos foram mortos na Cisjordânia. Embora o Hamas não esteja lá, o Estado colonial de Israel está, a opressão israelense está. Portanto, temos de enfrentar a raiz do problema com coragem. A raiz do problema é que os palestinos enfrentam a opressão há décadas. Eles estão vivendo sob colonização, estão vivendo sob o apartheid. Isso está de acordo com relatórios de grupos como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch e a organização israelense de direitos humanos B’Tselem. Todos esses grupos e organizações descrevem Israel como um estado de apartheid.

As pessoas em Gaza já estavam morrendo. Agora estamos morrendo por causa dos mísseis, mas antes de 7 de outubro, estávamos morrendo por causa das condições que Israel criou deliberadamente ao nos privar de tudo. Portanto, é injusto concentrar-se no resultado e ignorar os antecedentes, ignorar a raiz do problema. O problema não começou em 7 de outubro. Como era a situação antes de 7 de outubro?

Gaza é um lugar muito estreito, um lugar muito miserável. Dois terços da população, os residentes de Gaza, são refugiados. Isso significa que dois terços da população de Gaza são originários das cidades e vilarejos atrás da cerca que os palestinos romperam em 7 de outubro. Eles vivem atrás dessa cerca. Pessoalmente, sou do vilarejo de al Ramla. Meu avô foi deslocado à força de lá. Hoje, ela fica no que se tornou Israel, e ele veio para Gaza. E por 16 anos, desde 2007, Israel impôs um bloqueio quase total contra a população de Gaza.

O bloqueio fez com que centenas de milhares de pessoas morressem em Gaza porque as autoridades israelenses negaram seu acesso aos hospitais, aos serviços médicos em Jerusalém, na Cisjordânia, nas outras cidades da Palestina ocupada. Nos últimos meses, muitos jovens palestinos fugiram de Gaza de forma perigosa, pegando barcos no Mediterrâneo. Buscando um lugar onde pudessem obter seus direitos e necessidades básicas. Muitos morreram no mar.

Isso não é normal. É por causa do bloqueio israelense. O bloqueio israelense significa que não há empregos. Não há futuro para a próxima geração. Não há chance de viver. Não há meios para os jovens obterem suas necessidades básicas.

Portanto, as pessoas em Gaza já estavam morrendo. Agora estamos morrendo por causa dos mísseis, mas antes de 7 de outubro, estávamos morrendo por causa das condições que Israel criou deliberadamente ao nos privar de tudo. Ele nos privou da liberdade de movimento. Tenho 39 anos de idade. Não posso visitar a Mesquita de Al-Aqsa. Al-Aqsa fica a apenas duas horas de carro. Mas não posso visitá-la. Por quê? Israel me privou disso porque sou palestino.

O que Israel está fazendo com os palestinos é pior do que o apartheid. Eles estão nos expulsando. Estão cometendo genocídio contra nós. Portanto, as pessoas em Gaza sentem profundamente que não há esperança, que não há futuro, por causa de Israel. Com tudo isso, como o mundo pode esperar que os palestinos que vivem nesse bloqueio, nessas condições, sejam sempre um povo educado e pacífico com base em seus padrões?

A resistência é uma tentativa do povo oprimido de mostrar ao mundo que estamos aqui, de simplesmente dizer “nós existimos”.

Imagine que você coloque um ser humano em uma sala, feche a porta e o prive de comida, de sua liberdade de movimento, de remédios, de tudo, o viole e o humilhe repetidas vezes. Então, se eles tentarem arrombar a porta, você diz ao mundo: “Olha, eles são terroristas, bárbaros, um “animal humano””. É exatamente isso que Israel está fazendo, com o apoio total dos Estados Unidos. Eles nos colocaram em condições desumanas, nos humilharam, nos privaram de tudo.

Eles nos privam das coisas mais básicas, da liberdade e da dignidade. E então, quando os palestinos se enfurecem, Israel diz ao mundo: “Veja, eles estão atacando os judeus. Eles são terroristas. Nós queremos matá-los. Queremos massacrá-los”. Isso é uma profunda hipocrisia.

Ajudei a organizar a Marcha do Retorno em 2018 e escrevi pessoalmente os princípios da Grande Marcha do Retorno. Os princípios da Grande Marcha do Retorno declaravam que éramos totalmente pacíficos, um protesto desarmado.

Nosso protesto exigia a implementação do direito internacional. Como refugiados, exigimos nosso direito de retornar aos nossos vilarejos. E marchamos de forma não violenta para expressar essa exigência. E, no entanto, qual foi o resultado? O resultado foi que Israel atirou deliberadamente em nós, manifestantes desarmados, matando pelo menos 270 de nós, além de ferir e incapacitar milhares.

Qual foi a mensagem? A mensagem de Israel foi que vocês, palestinos, não deveriam lutar por meios pacíficos. Essa é a mensagem da violência israelense. Portanto, quando vocês privam os palestinos de tudo, quando os matam quando tentam gritar pacificamente, então não têm o direito de culpar os palestinos quando eles tentam dizer ao mundo “estamos aqui”.

A questão é não ver isso como uma via de luta ou resistência. Acho que o ponto mais importante é o que é a resistência? A resistência é uma tentativa do povo oprimido de mostrar ao mundo que estamos aqui, de simplesmente dizer “nós existimos”. O Estado colonial israelense nega a própria existência palestina.

Portanto, se as pessoas do mundo levam a sério a busca pela paz e pela justiça, elas devem olhar para o sofrimento dos palestinos, para sua origem, para como tudo começou. As pessoas não devem se concentrar apenas na reação, mas nas raízes do problema.

Nesse ponto, acho que é importante mencionar os prisioneiros palestinos. Há pelo menos 5.000 palestinos nas prisões israelenses. Alguns desses prisioneiros estão lá há 40 anos, quatro décadas. Milhares de prisioneiros são mantidos sob o que é chamado de detenção administrativa. Isso significa que eles estão confinados sem acusações e sem julgamento. Centenas deles são mulheres e crianças. Muitos perderam suas mães, seus pais, seus entes queridos. Membros da família morreram sem que os prisioneiros pudessem encontrá-los.

Portanto, devemos fazer a pergunta: Por que isso está acontecendo? Não devemos nos concentrar apenas nos eventos de 7 de outubro que são usados por Israel como justificativa para cometer o genocídio contra Gaza que está ocorrendo hoje. A pergunta deve ser como tudo começou. E se chegarmos à raiz da questão, estaremos mais próximos de encontrar a verdadeira justiça.


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Pedro Micussi