A Alemanha contra o fascismo
Mais de um milhão de pessoas ocuparam as ruas de diversas cidades alemãs no último fim de semana contra o partido de extrema direita AfD
As gigantescas manifestações que ocorreram em várias cidades da Alemanha no último fim de semana representaram um grande sinal de força do antifascismo na luta contra a extrema direita do país, que cresce e está cada mais incorporada ao regime político do país através do partido AfD (Alternativa para a Alemanha).
Mais de um milhão de pessoas responderam ao chamado unificado de diversos sindicatos, movimentos sociais e partidos políticos e tomaram as ruas em mais de 100 cidades, cantando slogans como “O fascismo não é uma alternativa” e carregando cartazes do tipo “Votar na AfD é tão 1933” em uma associação direta entre a AfD e o nazismo. O chanceler Olaf Scholz, líder do atual governo do SPD (Partido Social Democrata) que enfrentou recentemente protestos de produtores rurais devido ao aumento dos combustíveis, saudou os manifestantes como defensores da democracia.
O gatilho das manifestações
Apesar da preocupação com a AfD não ser nova, o gatilho para as manifestações foi a publicidade recente de uma reunião de lideranças da extrema direita com expressiva presença de membros da AfD, realizada em em 25 de novembro de 2023 na cidade de Potsdam. O encontro, que contou também com dois membros extremistas que romperam recentemente com o partido da direita tradicional CDU (União Democrata Cristã), teve como centro o debate de um plano para a “remigração”, eufemismo para expulsões e deportações de imigrantes na Alemanha para seus países de origem.
Entre os presentes esteve o austríaco Martin Sellner, um ideólogo do chamado Movimento Identitário e defensor de teorias da “grande substituição” que já defendeu planos de “remigração” diversas vezes, inclusive propondo a deportação de imigrantes com cidadania alemã que não fossem “assimilados” no país. Denominados por Sellner como “um fardo cultural, econômico e criminológico”, os imigrantes de países do Oriente Médio e do Norte da África são o principal alvo do plano de expulsões em massa que poderia atingir milhões de pessoas.
Além de ir contra direitos básicos garantidos pela Constituição alemã, pelos quais ninguém deve sofrer preconceito de origem, raça, idioma ou local de origem, o fato de se cogitar a expulsão de cidadãos alemães naturalizados causou indignação não só entre setores de esquerda. É preciso lembrar que as comunidades imigrantes representam uma parte importante da população do país, que conta com aproximadamente de 17% da população composta por imigrantes de primeira geração. O racismo presente no plano de “remigração” é ainda mais evidente quando se leva em conta que a questão da “assimilação” tocaria exclusivamente não-europeus (a maior comunidade imigrante é a turca).
Segundo Christian Dürr, líder da bancada liberal, “os planos para deportar milhões de pessoas lembram o capítulo mais sombrio da história alemã”, se referindo ao período nazista. A ministra do Interior do governo do SPD, Nancy Faeser, foi ainda mais contundente e associou a reunião de Potsdam à Conferência de Wannsee de 1942, onde a liderança nazista definiu os termos finais do genocídio judeu durante a Segunda Guerra Mundial.
O perigo da AfD
O perigo representado pela AfD é bem real. Ocupando 10% do atual parlamento federal alemão e com bons resultados nas últimas eleições, a AfD cresceu nas últimas pesquisas e está em primeiro lugar para as eleições regionais da Turíngia, Saxônia e Brandemburgo, estados da antiga Alemanha Oriental. O partido rapidamente superou grupos fascistas históricos do pós-guerra como o Heimat (Nação), novo nome do antigo NPD (Partido Nacional Democrático), e hoje possui relações sólidas com o Chega português, a Liga italiana, o Encontro Nacional francês, entre outros partidos da extrema direita europeia agrupados no continental Partido da Identidade e Democracia (ID) que hoje possui 52 das 705 cadeiras no Parlamento Europeu.
Fundada em 2013, a AfD surgiu ao redor de uma bandeira econômica contra a moeda única europeia, dando sua guinada para a extrema direita em 2015 após um congresso do partido na qual a tendência liderada pela empresária Frauke Petry sai vitoriosa. Este foi o ano da grande crise migratória europeia, na qual a Alemanha recebeu quase um milhão de refugiados de guerra oriundos especialmente da Síria, Iraque e Afeganistão e que contaram com expressiva solidariedade popular, levando a então chanceler do CDU, Angela Merkel, a promover uma política bem mais receptiva que outros países da Europa.
Este cenário fez com que setores mais conservadores enxergassem a AfD como uma alternativa de fato, dando ao partido resultados expressivos nas eleições estaduais de 2016 e nas federais de 2017. Sua liderança atual busca superar a imagem radical anterior para viabilizar o acesso ao poder em um possível governo de coalizão formado pela direita, seguindo o exemplo de seus novos pares europeus que chegaram ao poder.
A situação alemã é complexa. Pela direita, a indignação gerada pela reunião de Potsdam entre a CDU e os Liberais convive com a possibilidade de uma futura coalizão de governo com a AfD caso sua força nas pesquisas se confirme. Um exemplo dessa perspectiva é a Werteunion (União dos Valores), recente ruptura do CDU composta pelos dois membros do partido que estiveram presentes em Potsdam. No governo, o chanceler Scholz também já deu duras declarações contra imigrantes indocumentados e seu governo aprovou recentemente uma lei que facilita a deportação daqueles que tiveram seus pedidos de asilo negados.
Pela esquerda, o partido Die Linke (A Esquerda) enfrenta a ruptura da deputada Sahra Wagenknecht, que também aumentou o tom contra a “imigração nao-verificada” e ganha popularidade com o tema. Estando entre aquelas que culpam a Ucrânia pela agressão russa, Wagenknecht coloca a problemática da imigração também para os ucranianos que representam hoje a segunda maior comunidade imigrante na Alemanha.
Internacionalismo para responder ao tema da imigração
O fato é que nenhuma saída exclusivamente nacional para a questão da imigração pode resolver o problema. As propostas de deportação e fechamento de fronteiras encampadas pela extrema direita europeia recebem agora uma um elemento curioso de parte deste setor, com organizações italianas e alemãs denunciando a imigração como resultado direto da ação de países imperialistas vitoriosos da Segunda Guerra, como os EUA, Inglaterra e França. As recentes declarações da primeira ministra italiana Giorgia Meloni sobre a responsabilidade francesa a respeito da situação drástica dos países francófonos da África Ocidental são um bom exemplo disso.
Isso coloca um desafio ainda maior à esquerda internacionalista, que hoje se enfrenta em todo mundo com uma extrema direita que se apresenta como radicalmente contra o establishment. Se, por um lado, o apoio a todas as populações imigrantes deve ser irrestrito independentemente de suas motivações ou status legal, por outro é necessário enfrentar as causas destes grandes exôdos também através da difícil tarefa de conectar e impulsionar a esquerda radical nos países de origem.
A luta contra os imperialismos na África e no Oriente Médio é uma chave internacionalista para responder à questão imigratória. A miséria crônica, as inúmeras guerras e as catástrofes climáticas que geram estas ondas humanas dispostas a morrer no mar Mediterrâneo para buscar melhores condições de vida são frutos inegáveis da ação imperialista dos governos dos EUA, da Rússia, da China, da Inglaterra, da França, entre outros.
Derrotar o imperialismo enquanto sistema mundial é a única saída real para garantir a dignidade do conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras que enfrentam as consequências da crise migratória, seja em seus países de origem ou seja vivendo o drama da imigração. Enquanto o capitalismo dilapidar o planeta sem conhecer fronteiras, nossa organização e solidariedade deve responder da mesma forma.