Equador: Olhar depois da grade
O tráfico de drogas e as gangues criminosas não podem funcionar sem vínculos orgânicos com os grupos de poder locais e transnacionais, com as estruturas do poder do Estado
A paz não é a ausência de guerra, é uma virtude, um estado da mente, uma disposição para a benevolência, confiança e justiça. Baruch Espinoza
O Equador vive um novo capítulo em um tempo conturbado. Fito escapou da prisão, e seus soldados ocuparam os estúdios da TCTV para transmitir ao vivo a exigência de respeitar sua permanência na suíte controlada por ele, ameaçando com uma guerra generalizada. Desencadeia-se uma série de atentados, carros incendiados, bombas em locais públicos, assaltos a estabelecimentos comerciais.
A resposta do governo de Noboa é a declaração de guerra contra as gangues e a instauração do Estado de exceção e conflito interno. Uma onda de terror e intimidação se espalha. A sociedade acaba sendo aprisionada pelo toque de recolher e pelo medo.
Fito é um sintoma de um problema mais profundo. O tráfico de drogas e o capital criminoso são formas de reprodução ampliada do capital na fase atual; não há uma fronteira clara entre o capital legalizado e o capital criminoso. O tráfico de drogas e as gangues criminosas não podem funcionar sem vínculos orgânicos com os grupos de poder locais e transnacionais, com as estruturas do poder do Estado.
O caso “Gran Padrino”, durante o governo de Lasso, mostrou a ligação das máfias albanesas com o Grupo Financeiro Banco de Guayaquil de Danilo Carrera e com a rede criada pelo governo na administração das empresas públicas sob Hernán Luque Lecaro. Com o assassinato de Rubén Chérrez, o operador e elo, esse processo foi silenciado.
O caso “Metástasis” revela as conexões de Leandro Norero com o ex-vice-presidente Jorge Glas, generais, juízes, legisladores, políticos, que criam uma rede de impunidade e negócios fraudulentos. Surge então a pergunta: onde estão os telefones de Fito, quem são os juízes, políticos, policiais que garantem o domínio dos Choneros a partir das prisões?
E a outra raiz estrutural está na captação, principalmente, de jovens de setores marginais por parte das gangues criminosas, pois não encontram perspectivas de vida. Uma cultura do dinheiro fácil, do sucesso individual e dos modelos de traficantes, difundida pelos meios de comunicação e redes, destrói os laços de convivência e abre a porta para o recrutamento de jovens pelo crime organizado. A adesão às gangues tornou-se uma forma de vida, ou melhor, de morte. Como um deles disse, não temos esperança, já estamos mortos.
O governo, em seu Decreto de Conflito Armado Interno, nomeia 21 gangues, mas estima-se que haja 70, com 40 ou 50 mil membros, localizadas principalmente nas províncias da Costa, Esmeraldas, Manabí, Guayas, e nas províncias fronteiriças, Carchi, Imbabura, Sucumbíos, onde estão as rotas do grande tráfico do capital criminoso; embora tenham se expandido para nível nacional. As gangues prosperam no microtráfico, extorsão, vacinação, sequestros, assassinatos contratados, serviços para cartéis transnacionais, tráfico de drogas, pessoas, armas, órgãos, e começaram a lavar dinheiro em outras atividades, como mineração, construção e esportes.
As gangues são o primeiro nível operacional do tráfico de drogas e do capital criminoso. Elas estão ligadas aos cartéis transnacionais mexicanos, Sinaloa, Jalisco Nueva Generación, o Clan del Golfo, à máfia albanesa, que disputam rotas e redes para o envio de drogas para a Europa e os Estados Unidos, mercados de consumo e acumulação de dinheiro criminoso. Estima-se que, principalmente após os Acordos de Paz na Colômbia em 2016, 70% das drogas produzidas no Sul da Colômbia passam pelas rotas do Equador.
As gangues locais operam em articulação com grupos econômicos vinculados ao comércio exterior e fluxos financeiros, locais e transnacionais; com atores estatais, políticos, juízes, militares, policiais. Os vínculos são orgânicos, não há fronteiras entre as gangues e o capital criminoso.
A resposta do governo de Daniel Noboa continuou e radicalizou a estratégia de “guerra contra o tráfico de drogas e as máfias”. As perguntas da Consulta e os Decretos de Estado de exceção e Conflito interno reforçam as atribuições repressivas e de controle das Forças Armadas, que agora atuam não apenas como complemento às ações policiais, mas como liderança estratégica; entramos em um plano de militarização do país, substituindo o Estado de Direito por um Estado de Segurança Policial, e uma política de renúncia à soberania em nome da ajuda internacional. Uma estratégia de intimidação da população que justifique medidas de choque político e econômico e repressão indiscriminada, direcionada principalmente para a condenação racial dos jovens afrodescendentes, indígenas, mestiços, que habitam os bairros assolados pela pobreza e pelo tráfico de drogas; uma revitimização que condena os pobres e excluídos e envolve os criminosos com poder em impunidade.
Essa estratégia pode trazer resultados imediatos na cena, mas fracassou no Equador e em outros países. Não aborda as raízes estruturais do capital criminoso e do tráfico de drogas. As estratégias de segurança e reforço da capacidade dissuasiva dos organismos militares e policiais devem ocorrer no contexto de uma política abrangente, que comece pela reforma e depuração das Forças Armadas e da Polícia, por uma reforma integral da Justiça, pela investigação e inteligência para localizar as cabeças das gangues e a articulação com os poderes econômicos e políticos. Uma tarefa imediata é a vigilância e a exigência de que a Corte Constitucional examine os Decretos de exceção e Conflito armado interno, assim como as perguntas da Consulta, e não legitime os planos de guerra e violência contra os direitos humanos e constitucionais.
Há temas tabu. Um ponto de partida é desconstituir a raiz econômica, o negócio lucrativo do tráfico de drogas e das diversas formas de capital criminoso, por meio de um processo gradual e sob controle do Estado e da sociedade, e acordos internacionais, principalmente com os países Andinos, de legalização da produção e consumo de drogas, impulso a planos regionais de desenvolvimento alternativos e controle de fluxos financeiros, facilitados em nosso país pela dolarização.
Para evitar que os jovens e as famílias dos bairros, comunidades e províncias empobrecidas sejam atraídos pelo capital criminoso, é necessário um plano de construção de territórios liberados e atendimento às necessidades básicas e expectativas de vida da população marginalizada. Saúde, educação, oportunidades de emprego e produção, ética de solidariedade e laços comunitários são antídotos contra o mal do capital criminoso e do tráfico de drogas. É aí que deve se concentrar a ação firme, os acordos políticos, a ajuda internacional.
É difícil, quase impossível, que os poderes dominantes atuem nessa direção. A responsabilidade deve ser assumida pela sociedade civil, pelos movimentos sociais, pelos povos indígenas, afrodescendentes, mestiços, pelos coletivos de mulheres e direitos humanos, pelas universidades críticas, pelos meios de comunicação alternativos, pelas comunidades religiosas comprometidas com os pobres, para construir uma cultura e uma estratégia de paz, a partir de um poder próprio e do compromisso esperançoso com um Equador justo.