Imigração: Macron veste a camisa da extrema direita
Emmanuel Macron em maio - Jeso Carneiro / Flickr

Imigração: Macron veste a camisa da extrema direita

Macron e seu governo acabam de dar um passo gigante rumo à adoção de uma política discriminatória, racista e xenófoba em relação aos estrangeiros não originários da União Europeia (UE), com o apoio da extrema direita

León Crémieux 9 jan 2024, 14:25

Macron e seu governo acabam de dar um passo gigante rumo à adoção de uma política discriminatória, racista e xenófoba em relação aos estrangeiros não originários da União Europeia (UE), com o apoio da extrema direita. 

A lei que acaba de ser aprovada na França, em dezembro de 2023, por um voto convergente da aliança macronista, do partido de direita LR (Os Republicanos) e do partido de extrema direita Reagrupamento Nacional (RN) é a mais regressiva na França desde aquela que foi aprovada há quase 40 anos, em 1986 (Lei Pasqua), e contém aspectos ainda mais reacionários. Ela está alinhada com as premissas da extrema direita, que designa os estrangeiros e a imigração como um perigo, uma ameaça ao país, alimentando a fantasia da “submersão migratória”, do desequilíbrio econômico e social criado pelos imigrantes e assimilando a imigração com insegurança, delinquência e ameaça de terrorismo. Esses temas são amplamente desenvolvidos na Europa, mas particularmente na França pelo RN de Marine Le Pen e pelo pequeno partido Reconquête (Reconquista), de Marion Maréchal e Éric Zemmour. 

Nos últimos 20 anos, mais ou menos, a direita tradicional também os tornou amplamente populares, gradualmente adotando a propaganda ideológica de Jean Marie Le Pen e do Front National (Frente Nacional, antecessor do RN) sobre essas questões. No início dos anos 2000, Nicolas Sarkozy, em particular, tentou dividir a sociedade francesa introduzindo um debate sobre “identidade nacional”, até mesmo incorporando esse conceito ao título do Ministério do Interior, designado como “Ministério do Interior e da Identidade Nacional”, seguindo a ideia de um de seus conselheiros, Patrick Buisson, oriundo da extrema direita “nacionalista”.

Macron e seu governo, então, também seguiram esses caminhos lamacentos, inicialmente pensando em armar uma manobra parlamentar para desestabilizar o partido LR. O tiro saiu pela culatra contra o campo presidencial. 

No início de seu segundo mandato, no verão de 2022, Macron e seu ministro do Interior, Gérald Darmanin, anunciaram a apresentação de uma nova lei sobre as condições de entrada e residência dos estrangeiros, focada no direito de asilo, apenas três anos após a que ele havia aprovado em 2019. Equiparando explicitamente a delinquência aos solicitantes de asilo, o objetivo anunciado era lutar para “evitar fluxos migratórios não europeus”, “acelerar os procedimentos para solicitantes de asilo” e “procedimentos de deportação”, todos temas reacionários clássicos. Acima de tudo, em um momento em que as principais preocupações das pessoas eram a inflação, a crise do sistema de saúde e as ameaças às aposentadorias, o objetivo principal era tentar polarizar o debate público sobre essa questão, brandindo a “ameaça insuportável da migração” e, mais uma vez, culpando os imigrantes pela situação social das classes trabalhadoras. 

O objetivo declarado de Darmanin era “tornar a vida impossível para os imigrantes”. Seu perfil arrogante era até mesmo o de um “Sr. Mais”, gabando-se de ser mais duro com os imigrantes do que a extrema direita, falando com um toque de sexismo sobre a “suavidade” de Marine Le Pen e a “incapacidade de lidar com os problemas de migração” de Georgia Meloni. Esse projeto de lei foi combatido desde o início pelo movimento social e pela esquerda, com o coletivo Unis Contre l’Immigration Jetable- Unidos Contra a Imigração Descartável (UCIJ) – reunindo 800 coletivos e associações, incluindo centenas que atuam no dia a dia para o acolhimento e a solidariedade com os migrantes sem documentos e solicitantes de asilo, com o apoio dos Verdes, do La France Insoumise (LFI) e da esquerda radical, entre outros, o Novo Partido Anticapitalista (NPA). 

Desde as eleições de junho de 2022, nas quais Macron saiu sem maioria parlamentar própria nem aliança com outros partidos, ele e seu governo tiveram que negociar projeto por projeto com os outros partidos, principalmente o partido da direita gaullista tradicional, os Republicanos (LR). Sendo assim, eles votaram a favor de dois terços das leis apresentadas pelo governo entre junho de 2022 e junho de 2023 de forma fragmentada. Darmanin, portanto, tinha aberto as conversas com o LR sobre essa sua lei. A potência dos protestos contra a reforma da aposentadoria na primavera de 2023 forçou o governo a arquivar o debate sobre esse projeto de lei. O LR, por sua vez, viu o debate sobre esse projeto de lei como uma oportunidade de recuperar espaço no debate político. O resultado das eleições legislativas de junho de 2022 – onde ficaram com 62 dos 577 deputados, uma perda de 51 assentos – reduziu os republicanos à posição de auxiliares de Macron, atrás do Rassemblement National e da France Insoumise, e eles tinham dificuldade para existir, encurralados entre o presidente e o RN. Sem esquecer que muitos quadros macronistas são oriundos dos Republicanos e que o ex-presidente Nicolas Sarkozy pediu várias vezes que o partido que ele liderou por muito tempo se aliasse a Macron. 

Na primavera de 2023, os LR tentaram uma operação política introduzindo duas leis para atacar a imigração e os estrangeiros morando na França. Considerando que essa era a única base sobre a qual eles poderiam fazer ouvir uma voz diferente de Macron, seus projetos de lei retomaram sem problemas os principais elementos do programa do Rassemblement National, notadamente adotando a “preferência nacional”, discriminando os direitos sociais para estrangeiros de fora da UE com direitos reduzidos a benefícios sociais, voltando atrás da regra do “direito do solo” para crianças nascidas na França, introduzindo novos obstáculos para a adoção da nacionalidade francesa, com repressão mais forte e deportações mais rápidas de estrangeiros sem documentos. No último ano, o LR desenvolveu uma campanha obsessiva contra a submersão migratória, a invasão de imigrantes e o custo exorbitante da imigração, tornando-se muito mais vocal do que a extrema direita nessa questão.

Uma crescente pressão ideológica da extrema direita 

Se a França tem sido, por muito tempo, um país de imigração com legislações bastante abertas, desde a década de 1970 ela tem restringido significativamente os direitos de entrada e residência. Ainda cunhado pela aquisição de nacionalidade por meio do droit du sol, o país se divide entre um acolhimento de fachada e práticas cada vez mais fechadas. Isso vale tanto para a imigração quanto para a recepção de refugiados. A França, com 7,7% de sua população composta por estrangeiros, está abaixo da média europeia (8,4%), em comparação com 8,7% na Itália e na Suécia, e 11-13% na Espanha, Alemanha e Bélgica. Estamos muito longe do “chamamento” e da “política excessivamente generosa” apontada pelo governo e seus novos amigos. 

No que diz respeito aos refugiados, a guerra levou, especialmente entre 2014 e 2015, a um êxodo de refugiados da Síria. A realidade é que a maioria dos 6,8 milhões de exilados permaneceu na Turquia, na Jordânia e no Líbano. Apenas 17%, pouco mais de 1 milhão, solicitaram asilo na União Europeia, com a França registrando 2,2% desses 17%… cerca de 25 mil! No caso dos afegãos, o esforço foi um pouco maior, com a França sendo responsável por 8% dos refugiados afegãos na Europa. Da mesma forma, embora existam cerca de 4,6 milhões de refugiados ucranianos na UE e 120.000 na França, e ninguém tem protestado contra a chegada de uma população que tem a “sorte” de não ser de origem muçulmana, mais uma vez o número não é a altura do peso econômico (17%) e demográfico (15%) da França na Europa. O discurso pretensioso e “autossatisfatório” de Macron sobre “a participação da França no acolhimento de refugiados” não tem nada a ver com a realidade. Especialmente porque a França tem uma das taxas de proteção mais baixas da Europa quando se trata de pedidos de asilo. Cerca de 70% das solicitações tiveram o status de proteção recusado (refugiado ou proteção subsidiária), deixando os solicitantes de asilo em situação irregular e precária, expostos à ameaça permanente de expulsão. 

Os líderes europeus e franceses estão vivendo uma negação esquizofrênica sobre a migração internacional. A migração é um fenômeno natural e inevitável na história passada e presente da humanidade, um fenômeno do qual os próprios europeus participaram e continuam participando, e que hoje afeta a África e o Oriente Médio muito mais do que a Europa. Mas os reacionários estão tentando transformá-lo em uma questão de guerra entre civilizações, de invasão bárbara, de submersão demográfica. Infelizmente, é verdade que as guerras e as mudanças climáticas acentuarão os fenômenos migratórios, mais uma vez sem que a União Europeia seja o primeiro destino. A negação da UE é, obviamente, o fato de ela ser uma das principais responsáveis pelas mudanças climáticas, diretamente por meio da poluição ambiental e indiretamente por meio dos grupos capitalistas industriais e comerciais europeus, de manter relações neocoloniais com os países do Sul, fazendo com que parte de seus habitantes seu habitat, que sua política externa também é responsável por conflitos e guerras abertas, com todas as suas consequências catastróficas pelos seres humanos, mas que quer impedir os fluxos migratórios naturais, colocando centenas de milhares de homens e mulheres em risco extremo e levando à morte de dezenas de milhares de seres humanos nas rotas migratórias.

A outra negação é que a França e a UE como um todo estão elas mesmo organizando a imigração internacional, que é em grande parte legal e organizada pelos estados europeus porque é parte integrante do sistema econômico e social europeu. Em 2022, para cada 350 mil imigrantes sem documentos que entraram na União Europeia, houve 3,5 milhões de entradas legais. E além da demagogia reacionária puramente ideológica, três reações na França após a votação da lei são altamente significativas: a de 3,5 mil médicos, incluindo de emergência, a dos presidentes das principais universidades e dos diretores das grandes écoles, e a do presidente do Movimento das Empresas da França (Medef), principal sindicato patronal. Os médicos protestaram contra a ameaça de abolição da Aide Médicale de l’Etat (AME) – Ajuda Medica do Estado que garante minimamente acesso aos cuidados médicos para todos, inclusive os imigrantes sem documentos – e se comprometeram publicamente a continuar oferecendo atendimento gratuito aos imigrantes sem documentos se a AME fosse abolida, tanto por respeito aoJuramento de Hipócrates de tratar qualquer pessoa doente quanto por preocupação com a saúde pública. Os presidentes das universidades e os diretores das grandes écoles – grandes escolas, fileiras de formação elitista, recrutando seus alunos via concurso, em margem do sistema universitário que recruta através de um exame de nível – estão protestando contra o sistema de garantia de retorno (uma quantia que os estudantes estrangeiros terão de depositar em suas contas bancárias antes de chegar à França), que já existe em outros países europeus; e contra a limitação da assistência social que os estudantes estrangeiros terão de suportar a partir de agora, sob o pretexto da fantasia de “falsos estudantes que se aproveitam dos sistemas sociais”. 

Atualmente, há cerca de 400 mil estudantes estrangeiros na França, ou 13% do total. Eles são um pilar do sistema universitário, especialmente nas grandes écoles,  contribuem para sua vitalidade e, é claro, para a internacionalização do ensino universitário para os estudantes, incluindo 70 mil estudantes de doutorado. Longe das fantasias xenófobas de falsos estudantes que são a obsessão de Ciotti, presidente do partido LR, e Darmanin. A última reação veio de Patrick Martin, presidente do Medef, que disse que “a menos que reinventemos nosso modelo econômico”, serão necessários mais 3,9 milhões de trabalhadores estrangeiros na França nos próximos anos, e pelo menos o mesmo número no restante da União Europeia. Ao contrário dos porta-vozes dos partidos LR e RN, os empregadores estão cientes de um fato que há muito tempo é proclamado pelos economistas da OCDE: as populações estrangeiras e migrantes, longe de serem um fardo financeiro para os países anfitriões, têm um superávit no “balanço líquido” dos orçamentos dos países anfitriões em todos os países da OCDE. 

No coro de absurdos dos últimos meses, um deputado do RN pegou um artigo no jornal de direita Le Figaro, que dizia que a imigração “custa mais do que traz” e citava um valor de 53,9 bilhões de deficit. Outros números foram citados, mas sempre com o fio condutor da ideia de que os estrangeiros vêm para se aproveitar do sistema social, vivendo de benefícios sociais e seguro-desemprego. A realidade dos estudos exaustivos realizados pela OCDE em 2021, abrangendo o período 2006/2018, é que nos 25 países estudados, a contribuição orçamentária líquida está sempre entre -1% e +1% do PIB, com um excedente médio de 10 bilhões de euros por ano para a França durante esse período. Além desses números, a realidade óbvia é que os estrangeiros sem dúvida nenhuma participam da vida econômica do país onde estão, muitas vezes na Europa com trabalhos menos bem remunerados e condições de trabalho mais difíceis. Essas dificuldades decorrem tanto das dificuldades que alguns têm para regularizar sua situação quanto do clima de discriminação que dificulta o acesso ao emprego, não só para os estrangeiros, mas também para os descendentes de estrangeiros de segunda ou até terceira geração. 

A manutenção desse clima de racismo é obviamente uma arma usada pelos empregadores. Mas os empregadores de setores que, por definição, não podem realocar suas atividades, como transporte, logística, hotelaria, construção e assistência, muitas vezes recorrem a trabalhadores estrangeiros ou com histórico de imigração. E a realidade na Europa é que a curva demográfica natural está agora em uma tendência de queda em todos os lugares, excluindo a migração líquida, e a França não é exceção a essa tendência. 

Portanto, por trás da retórica da direita mais ou menos extrema, que serve para dividir as classes trabalhadoras e esconder as pessoas que são realmente responsáveis pelas políticas de colapso social, há obviamente a realidade incontornável de que não somente a imigração não é um custo, mas que tentar impedi-la seria criar um desequilíbrio social e econômico nas próximas décadas. A hipocrisia das classes dominantes é que, na maioria das vezes, elas apoiam o discurso da extrema direita e o cultivam em sua mídia escrita e televisiva, fantasiando sobre o “chamamento” que a menor regularização de migrantes sem documentos representaria, ao mesmo tempo em que pensam no presente e no futuro, integrando a realidade de um fluxo contínuo de migrantes. Uma política utilitarista e hipócrita que priva milhões de homens e mulheres de direitos sociais e condições de vida dignas, que mantém a discriminação e a violência policial nos bairros populares onde vivem muitos filhos de imigrantes, mas que, no entanto, mantém as redes de imigração essenciais para o equilíbrio econômico e social.   

Essa política é ainda mais grave quando se trata de migrantes e imigrantes sem documentos que tentam chegar à Europa pelo Mediterrâneo ou pelas fronteiras continentais. A direita, a extrema direita e sua mídia falam em submersão, quando os números contam uma história diferente: de acordo com os números do governo, há entre 4 e 5 milhões de imigrantes sem documentos na Europa, ou seja, menos de 1% da população total. Metade deles vive na Alemanha e na Grã-Bretanha, cerca de 700 mil na França e entre 5 mil e 700 mil na Itália. Mas a fantasia da submersão e a propaganda xenófoba e racista justificam o tratamento desumano para aqueles que querem vir para a Europa. Dezenas de bilhões são gastos na segurança e no controle das fronteiras, na rejeição de chegadas e na negociação com países africanos e do Oriente Médio para bloquear a passagem pelas fronteiras. Esses valores devem ser comparados com as pequenas somas concedidas para recepção, moradia e ajuda às populações migrantes. 

Os refugiados da Ucrânia foram a única população a receber o “status de proteção temporária” do Conselho da União Europeia. Na França, em particular, eles foram os únicos a se beneficiar de condições de recepção adequadas: permissão de residência imediata, acesso ao mercado de trabalho e à moradia, assistência médica e acesso das crianças à educação, direito de abrir uma conta bancária. Esses direitos devem, obviamente, ser aplicados a todos os solicitantes de asilo da Síria, do Afeganistão ou de qualquer outro lugar.

Darmanin e Macron presos em uma armadilha 

Então, com relação ao avanço dos debates em torno dessa lei na primavera de 2023, os republicanos, em seus projetos de lei contra a imigração apresentados em maio de 2023, também queriam uma mudança na Constituição para que a França pudesse derrogar a lei europeia com relação às obrigações com os solicitantes de asilo e se opor a qualquer regularização de migrantes sem documentos até nos chamados setores com escassa mão de obra (setor hoteleiro em particular), que é o que Darmanin propôs em seu projeto de lei. Eles também queriam abolir o Auxílio Médico do Estado (AME), que dá aos imigrantes sem documentos acesso a cuidados de saúde cobertos pelo sistema de seguridade social em hospitais (380 mil pessoas se beneficiaram disso em 2023). Darmanin e o governo estavam contra essa abolição. 

A LR, que ainda se beneficia de uma maioria no Senado, achava que poderia exercer uma forte pressão para forçar Darmanin e Macron a chegar a suas posições. Darmanin, por sua vez, esperava que, ao adotar algumas das medidas propostas pelo LR, ele conseguiria que pelo menos alguns de seus parlamentares votassem a favor de seu plano, enfraquecendo ainda mais o LR na Assembleia. Esse jogo político sórdido nas costas dos imigrantes também servia ao propósito de Darmanin de tentar se posicionar na corrida para suceder Macron como presidente em 2027. 

Portanto, o projeto de lei de Darmanin foi suspenso até o início do outono de 2023. Mais uma vez, após seis meses de protestos em massa contra a reforma das aposentadorias, após as revoltas nos bairros populares das periferias durante o verão diante da violência e do assassinato de jovens pela polícia, o governo quis estigmatizar a população de origem imigrante e conter as preocupações sociais predominantes entre a população: poder aquisitivo, saúde, meio ambiente…. Essas preocupações são claramente evidentes nas mobilizações sociais e até mesmo em pesquisas de opinião recentes – como a do instituto IPSOS, de 23 de setembro, na qual a imigração aparece apenas em nono lugar como uma preocupação para os entrevistados. 

A hiperbolização das questões de migração no arsenal midiático da extrema direita e dos líderes reacionários manteve um clima nauseante com o objetivo de misturar imigração, insegurança e islamismo e fazer dessa amálgama a principal questão política, com a ajuda predominante das redes de midia e da imprensa escrita nas mãos dos principais capitalistas franceses, em primeiro lugar a galáxia midiática nas mãos de Bolloré… Essa questão de fato ocupou o campo do debate público de setembro a dezembro, mas não com o resultado que Macron e seu governo queriam. 

Na esperança de manobrar como fez em várias outras questões, a agenda do governo era simples. O debate começou com uma votação no Senado no início de novembro, onde os republicanos emendaram o projeto de Darmanin com todas as medidas tomadas pela extrema direita. Em seguida, no início de dezembro, o Comitê de Leis da Assembleia, onde o governo mantém uma maioria relativa, deu uma limpa no projeto de lei, trazendo-o de volta à sua versão original, uma versão reacionária que não incluía muitos dos acréscimos do Senado (por exemplo, a abolição da AME, o período de 5 anos de residência legal para obter benefícios sociais, a regularização em ocupações de “pouco pessoal”). Então, logicamente, o jogo das abstenções deveria ter permitido que Borne e Darmanin aprovassem a lei, artigo após artigo, contando com a contribuição dos votos dos republicanos e das abstenções do Partido Socialista, dependendo dos artigos da lei.   

E foi aí que as coisas começaram a dar errado. Os ecologistas, que se opunham ao projeto de lei juntamente com todos os grupos do Nupes, apresentaram uma moção para rejeitar em bloco o projeto, bloqueando assim sua consideração pela Assembleia. Em 11 de dezembro, contra todas as expectativas, essa moção foi adotada por uma maioria de votos do Nova União Para a Ecologia e o Socialismo (Nupes), mas também de 2/3 dos deputados do LR e do RN: 270 votos a favor da rejeição e 265 contra. A armadilha então se fechou para Darmanin e seu governo. Não poderia mais haver uma votação artigo por artigo na Assembleia sobre a versão do governo. Macron teve a opção de retirar completamente seu texto ou fazer uma nova tentativa de compromisso, elaborando conjuntamente um novo texto entre deputados e senadores (em uma Comissão Mista Paritária), seguido de uma votação em bloco em cada uma das duas câmaras sobre o mesmo texto. 

Após sofrer uma derrota retumbante e ser derrotado na Assembleia pela primeira vez, Macron se recusou a reconhecer seu fracasso retirando a lei. Ele preferiu colocar o projeto de lei nas mãos dos republicanos, já que só foi possível redigir um texto conjunto nessa CMP de 14 membros (sete deputados e sete senadores) por meio de um acordo entre os cinco macronistas e os cinco republicanos e centristas de direita. De fato, o novo projeto foi negociado diretamente entre a primeira-ministra, Elisabeth Borne, e a liderança dos republicanos.    

O texto, que acabou sendo votado pela Assembleia e pelo Senado, é, portanto, uma cópia muito próxima das posições da LR, inspirada pelo Rassemblement National. Este último, sem ter participado da menor negociação e até mesmo demonstrando sua hostilidade até o fim a um projeto que consideravam muito moderado, finalmente aproveitou a oportunidade para mostrar seu apoio votando em um texto amplamente inspirado em suas posições, criando um clamor geral. Essa é a primeira vez em 40 anos que as forças tradicionais votam no mesmo texto que a extrema direita sobre imigração.  Além disso, a primeira-ministra Elizabeth Borne se comprometeu formalmente a submeter às assembleias uma revisão da AME. Embora Macron e Darmanin esperassem que essa lei proporcionasse um “golpe” político ao fraturar os republicanos e isolar a RN em seu próprio terreno favorito, o resultado foi o oposto: a RN parece ser a vencedora política de uma lei que retoma suas obsessões xenófobas e adota a preferência nacional, a discriminação para benefícios sociais e condições mais rígidas para a naturalização. O RN, graças ao seu controle do Senado, saiu fortalecido, enquanto os macronistas saíram enfraquecidos e divididos: apenas 131 dos 171 parlamentares votaram a favor da lei, 20 votaram contra e 17 se abstiveram. Os “jovens com Macron” rejeitaram a lei e o Ministro da Saúde renunciou ao cargo.

A necessidade urgente de uma resposta da esquerda 

O fraco equilíbrio de poder que Macron tinha após sua segunda eleição já havia sido abalado pela enorme mobilização em defesa das aposentadorias e, depois, pelas revoltas nos bairros da classe trabalhadora no início do verão. O governo agora parece ser um mero refém da direita e da extrema direita. 

Na esquerda e na Nupes, infelizmente, essa mudança em direção à extrema direita demora para provocar a reação necessária. O governo, apoiado por uma campanha de imprensa feroz e multifacetada, fez tudo o que estava ao seu alcance no ano passado para desacreditar a Nupes, que emergiu como a principal força de oposição nas eleições e, acima de tudo, a França insubmissa, condenada ao ostracismo e demonizada por Macron e Borne como tendo “deixado o arco republicano” (visando ai, em particular, sua posição de apoio durante as revoltas nos bairros populares e de denúncia dos assassinatos cometidos por policiais) enquanto o tapete tricolor era estendido sob os pés do RN. Portanto, foi exercida pressão máxima para forçar o rompimento dessa aliança, que nunca conseguiu ir além do status de um intergrupo parlamentar. 

Os componentes do Nupes, por várias razões, sempre se recusaram a construir uma força política popular nacional, estruturada nas cidades e nos bairros. Apesar das posições convergentes de seus componentes em apoio à mobilização em defesa das aposentadorias, nenhum impulso político foi criado naquela ocasião. Há vários meses, foi a questão eleitoral das eleições europeias de 2024 que fez com que as tendências centrífugas paralisassem o Nupes e o levassem a se separar, com os partidos aliados à FI se recusando a apresentar uma lista unida, especialmente porque não queriam adotar o programa radical do Nupes sobre a União Europeia. Apesar da ampla convergência do movimento sindical e comunitário contra a violência policial e, mais recentemente, para exigir um cessar-fogo imediato em Gaza em face do massacre perpetrado pelo exército israelense, a oposição de esquerda a Macron hoje parece incapaz de construir um equilíbrio de poder político e social realmente unido. Apesar de tudo, a votação de dezembro fez com que dezenas de milhares de ativistas se revoltassem ao ver a extrema direita ditando a política do governo. Em abril de 2022, metade dos votos de Macron contra Le Pen veio de eleitores de esquerda que queriam bloquear o Rassemblement National.  

Em torno das convocações da coalizão Unis Contre l’Immigration Jetable(UCIJ) – Unidos Contra a Imigração Descartável -, milhares de pessoas saíram às ruas em várias cidades. Mas o desafio no início deste ano será construir uma força popular unida e uma mobilização que corresponda às demandas sociais e à ameaça da extrema direita.


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Pedro Micussi