CONAE: a luta continua
Sem a mobilização permanente em defesa da educação pública, o Documento Final da CONAE corre o risco de virar “letra-morta” e ser deformado ao longo da tramitação no Congresso Nacional
Ao encerrar de janeiro, entre os dias 28 a 30, aconteceu a Conferência Nacional de Educação (CONAE). A UnB recebeu mais de 2500 pessoas, das quais 1847 eram delegados eleitos nas etapas estaduais, municipais e distrital da conferência. O Documento Final da CONAE, enviado terça-feira (4) ao Ministério da Educação (MEC), servirá de orientação para elaboração do Plano Nacional de Educação 2024-2034.
A CONAE, inquestionavelmente, aconteceu sob novos marcos. Em que pese a presença da extrema-direita na conferência, sobre a qual falarei adiante, a CONAE também acontece após a derrota eleitoral de Bolsonaro, contra o qual os trabalhadores da educação e o movimento estudantil lutaram incansavelmente por quatro anos. A luta em defesa da educação tem maioria social no Brasil. Não é por acaso que a Folha de S. Paulo tenha feito seu editorial no dia 01/02 dedicado a CONAE, atacando-a – obviamente – por suas virtudes e não por seus limites.
A ingerência crescente das fundações empresariais sobre as políticas educacionais demonstram, inequivocamente, a defesa de projetos de educação socialmente antagônicos. Do Centro Comunitário Athos Bulcão, na UnB, onde aconteceu a plenária final da CONAE, Camilo Santana ouviu um sonoro “Fora Lemann!” entoado pelos mais de 2 mil presentes, entre os quais estavam estudantes, trabalhadores, conselheiros, dirigentes educacionais e pais e mães. Todos os que, virtuosamente, têm os dois pés firmes no chão da escola pública, razão pela qual se opõem firmemente à liturgia neoliberal da Fundação Lemann, do Todos Pela Educação, do Instituto Ayrton Senna, do Itaú Educação e Trabalho e assim por diante.
O recado final ao Ministro Camilo Santana materializou-se no Documento Final aprovado pela CONAE: a necessidade de ruptura radical, sem mediações, com as políticas educacionais produzidas sob os governos de Temer e Bolsonaro. Isso tem a ver diretamente com a revogação do Novo Ensino Médio (NEM), da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), da BNC Formação e, estruturalmente, com a ampliação do fundo público para educação pública. Sem a mobilização permanente em defesa da educação pública, tanto contra a extrema-direita quanto contra os neoliberais, o Documento Final da CONAE corre o risco de virar “letra-morta” e ser deformado ao longo da tramitação no Congresso Nacional.
A derrota da extrema-direita na CONAE
Não é menor que a extrema-direita tenha sido derrotada na CONAE. Na prática, a conferência derrotou – ao menos por agora – o programa bolsonarista para educação: o homeschooling, a militarização das escolas, a Escola Sem Partido, exclusão do debate de gênero nos currículos e na formação da comunidade escolar e todo entulho autoritário e reacionário que passou a ocupar o debate público nos últimos anos. Ao mesmo tempo, embora minoritária, não se pode desprezar a presença da extrema-direita organizada no espaço da conferência. Houve uma atuação por dentro, um acúmulo de forças para exercer mais influência posterior na fase de tramitação do Plano Nacional de Educação.
O campo popular, assim homogeneamente chamado, hoje enfrenta-se tanto contra as fundações empresariais quanto contra a extrema-direita. Nisso importa dizer que, salvo diferenças, há pontos de coincidência entre os dois, como por exemplo no balanço de que a participação de ambos acabou sendo estrangulada na CONAE. Trata-se de uma tentativa de atacar as etapas municipais, estaduais e a conferência nacional desde a sua forma com vistas a deslegitimar seu conteúdo. Outro ponto de aproximação entre bolsonaristas e “privatistas” está em matéria econômica, com a defesa do público não-estatal, dos mecanismos de austeridade fiscal, ideologicamente baseados na ideia de que educação é mercadoria e não direito universal – como consagrado na Constituição Federal de 1988.
Há um longo caminho a percorrer no campo econômico. Embora o FUNDEB não esteja incorporado ao Novo Arcabouço Fiscal aprovado no Governo Lula, os efeitos no financiamento da educação em sentido amplo são devastadores. A recomposição orçamentária tornou-se uma promessa para 2025 e 2026, com parcelas de 4,5% em cada ano. A proposta de reajuste zero para o funcionalismo público federal no ano de 2024 é um efeito material sentido por milhares de professores e técnicos-administrativos das universidades federais. Como resposta, a FASUBRA aprovou o indicativo de greve nacional no dia 11 e o ANDES-SN discute iniciativas na direção de um plano de lutas – conforme aprovado no 42° Congresso do sindicato.
De volta a CONAE e a presença inédita da extrema-direita organizada, convém dizer: sem mobilização permanente, a extrema-direita logo reverterá parte de sua derrota quando o PNE estiver em tramitação no Congresso Nacional – cuja relação de forças permitiu Nikolas Ferreira tornar-se presidente da Comissão de Educação. Além disso, por fim, na luta política, é importante explorar as diferenças e contradições entre a extrema-direita e as fundações empresariais no campo educacional, sem perder de vista que há entre elas coincidências estratégicas – sobretudo em matéria econômica. A presença maciça do setor privado mercantil no MEC organiza derrotas.
O privado na CONAE
O trânsito das entidades empresariais pelos corredores do MEC não é exatamente a novidade aqui. Basta recordar que Fernando Haddad, então Ministro da Educação do Governo Lula 2, colaborou com a fundação do Todos Pela Educação. Desde aí o TPE alcançou uma nova forma de “empresariamento da educação” ao se tornar uma iniciativa comum de classe, disputando o fundo público em sentido ampliado e não apenas na tradicional fórmula de conversão de propriedade pública em propriedade privada. Isso significa que as fundações empresariais, organizadas pelo TPE sob alcunha de Organização Social de Interesse Público (OSCIP), almejam ter o controle sobre a gestão dos sistemas educacionais, alinhando-os aos seus interesses imediatos e históricos como classe dominante.
Agora, por ocasião da CONAE 2024, a atuação do TPE e de todas as fundações empresariais se assemelha a CONAE de 2011 – que deu base ao PNE de 2014-2024: inserir-se formalmente na conferência, limitando o exercício da sua influência política ao MEC e ao Congresso Nacional. Nos dois casos, lamentavelmente, tem avançado com o seu programa para a educação.
O conteúdo programático de atuação do setor privado mercantil na CONAE é o mesmo: o aprofundamento da dualidade estrutural da educação. Trata-se de uma escola organizada em prol da reprodução da divisão social do trabalho sob domínio capitalista. Não é por acaso que o Novo Ensino Médio é a pedra angular de todo debate. O NEM, aprovado em 2016 sob o governo Temer e mantido até agora pelo governo Lula, sepulta a concepção de educação básica e descaracteriza as licenciaturas. Os chamados itinerários formativos estimulam a formação instrumental para a classe trabalhadora, ou seja, um retrocesso cujo paralelo remota aos anos de 1940 com reformas de semelhante natureza. O “novo” é um fetiche no NEM, diante do qual até mesmo setores da esquerda com peso em entidades estudantis caíram em encantamento.
O setor privado mercantil, portanto, sofreu uma derrota na CONAE quando a maioria aprovou a revogação do NEM, da BNCC e BNC Formação e defendeu investimento de 10% do PIB em educação. O MEC na figura de Camilo Santana que, como descreveu Daniel Cara, não só conserva mas defende o legado educacional de Temer, também precisa acatar o que diz a Conferência Nacional de Educação.
A luta continua
As políticas educacionais e, em maior escala, os projetos de educação condensam as relações sociais de força. A CONAE deu um passo importante em direção a superar o entulho autoritário e conservador dos governos Temer e Bolsonaro, alcançando vitórias parciais importantes sobre a extrema-direita e o setor privado mercantil. Apesar dos limites de um conferência ainda oficialista e ligada aos aparatos de governo, a participação popular de milhares de trabalhadores da educação, dirigentes sindicais e estudantes construiu maioria ao redor de um programa distinto dos últimos anos.
Agora, com o Documento Final enviado ao MEC e em breve o PL do PNE em tramitação no Congresso Nacional, se mantém a necessidade de uma luta prolongada nas escolas e universidades para que o PNE aprovado não seja uma mera deformação daquilo encaminhado e referendado na CONAE. Começa aqui e agora, enfrentando o PL do Novo Ensino Médio cujo parecer é de Mendonça Filho, construindo o calendário de lutas dos técnicos-administrativos e professores das universidades federais, ou seja, com ações decididas para transformar uma luta de maioria social em uma relação de forças em prol da educação pública, gratuita, laica, socialmente referenciada. A luta continua.