Tudo normal?
O relatório do assassinato de Marielle e o que revela sobre as milícias no Brasil
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
As notícias da prisão dos principais suspeitos de mandantes do assassinato de Marielle e Anderson vieram, em muitos espaços da mídia, política e sociedade em geral, com duas reações conflitantes: um choque com o nível de conspiração em um alto escalão da política para garantir sua execução e uma angústia pela relidade corresponder com a expectativa – uma “normalidade” anormal da barbárie que esse assassinato representa.
Os nomes de Domingos Brazão (ex-deputado estadual e membro do Tribunal de Conta do Estado do Rio de Janeiro), Chiquinho Brazão (deputado federal até então em exercício) e Rivaldo Barbosa (ex-Chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro) demonstram não só como vinha do alto escalão da política e do Estado fluminense a elaboração de como seria a execução da Marielle, mas também como, em uma escala mais ampla, as organizações criminosas seguem intrinsecamente ligadas ao Estado e à política brasileira.
Esse controle do aparato estatal não é, porém, nenhuma novidade. O primeiro esquadrão de morte do Rio de Janeiro, que depois construiria as bases para as milícias, foi fundado também por um alto nome da segurança pública: Amaury Kruel era Chefe de Polícia do Departamento Federal de Segurança Pública (na época no Rio), quando fundou, por pressão da Associação de Comércio do Estado, a TVRAMA, um grupo “extra-oficial” de policiais sob seu controle para assassinar “criminosos” sem julgamento.
Desde então, essa confusão entre o Estado e milicianos só se expandiu. O próprio relatório do STF sobre o assassinato de Marielle comenta como só foi possível que a execução fosse cometida porque o controle, já existente, da Delegacia de Homicídios da Polícia Civil do Estado por milicianos resultou na morte de mais de 30 pessoas ligadas a política desde 2016, com pouquíssimos casos sendo elucidados. Ou seja, a estrutura policial já, há tempos, decidia que casos ou não iriam para frente no seio da polícia civil.
A realidade é que já estamos em uma situação onde a dinâmica do funcionamento da cidade do Rio, já é, em muitos sentido, ditada pelas próprias milícias. A atividade em que estavam envolvidos os irmãos Brazão de grilagem na Zona Oeste é só mais um demonstrativo de como a expansão urbana carioca é hoje definida principalmente pelo crime: desde a concepção da regra do loteamento urbana na Câmara de Vereadores até sua implementação por empresas de fachada.
Ou seja, o contexto e significados do assassinato de Marielle precisam ser um alerta vermelho para a esquerda brasileira. A expansão da influência das organizações criminosas no Brasil pode permitir uma mudança de qualidade no Estado brasileiro – como já vimos de forma acelerada no México e Colômbia. O Rio de Janeiro é um ponto alto, mas que não é mais isolado na realidade nacional.
Ao mesmo tempo que é correto apontar que Bolsonaro foi um ponto alto desse processo e um representante legítimo dessa máfia política, não podemos resumir um problema estruturante ao que foi sua expressão mais explícita. Rivaldo Barbosa foi apontado como chefe da Polícia Civil pelo ex-ministro bolsonarista Braga Netto, mas antes já controlava o balcão de negócios da instituição como chefe da Delegacia de Homicídios. As relações do governo do PMDB (aliados então de Lula e Dilma) com as milícias são denunciadas há muitos anos como centro da política corrupta fluminense.
A postura do vice-presidente nacional do PT, Washington Quaquá, de relativização da criminalidade dos irmãos Brazão dá o exemplo do que não podemos fazer: naturalizar o que significa o papel das milícias na política brasileira. A busca por aliados do governo em milicianos como Waguinho, de Belford Roxo, ou a até a submissão de à sua política como fez o próprio Freixo ao trabalhar subordinado à esposa do mesmo político da baixada no Ministério do Turismo, são exemplos de como parte significante da esquerda não está levando a sério essa disputa e esse debate.
Não existe possibilidade de derrota da extrema direita sem um combate político às milícias e uma ruptura com seus representantes e aparatos. Uma disputa que só se dá no terreno do discurso, mas que termina por aceitar um status quo de sua dominação que só pode levar a uma maior expansão e mudança de qualidade do próprio Estado brasileiro. Precisamos fazer o que for necessário para impedir isso e isso precisa ser desde já.