Revolução e contrarrevolução em Portugal
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Revolução e contrarrevolução em Portugal

Uma análise do dirigente trotskista Nahuel Moreno sobre a Revolução dos Cravos escrita em 1975, no calor dos acontecimentos

Nahuel Moreno 25 abr 2024, 16:07

Via NahuelMoreno.Org

Publicamos abaixo o texto clássico de Nahuel Moreno sobre a Revolução dos Cravos, publicado em 1975 nos Cuadernos de Revista de América nº1. Nele, Moreno analisa a dinâmica dos acontecimentos revolucionários em Portugal no biênio 1974/1975, com a derrota da ditadura salazarista e as reviravoltas na situação dos meses posteriores. As movimentações do imperialismo português e as traições dos partidos reformistas, assim como as tarefas necessárias da classe trabalhadora naquele momento, trazem importantes lições históricas para a luta dos revolucionários de hoje. (N.E da Revista Movimento)


Todo o movimento de esquerda concorda que Portugal é hoje um dos principais centros revolucionários do mundo e, sem dúvida, o eixo da revolução europeia. Para muitos de nós é, sem sombra de dúvida, o ponto mais alto da luta de classes em escala internacional.

Esse primeiro acordo sobre a importância atual da revolução portuguesa deixa de sê-lo assim que começamos a considerar os problemas que ela coloca: é uma revolução operária ou democrático-popular? O que é o Movimento das Forças Armadas (MFA)? Qual é o caráter de seu governo? É inédito ou já conhecido pelo marxismo? O que devemos fazer diante do pacto que o MFA obrigou os partidos operários majoritários, o Socialista e o Comunista, a assinar, pelo qual reconhecem seu direito de governar o país por vários anos? Permitimos que a Assembleia Constituinte, já eleita, veja seus poderes soberanos reduzidos dessa forma? Defendemos a legalidade dos grupos maoístas proibidos pelo governo? Aceitamos que o diário “República” – uma empresa privada, mas ao mesmo tempo o órgão oficial do Partido Socialista – deixe de ser publicado como tal devido a uma manobra conjunta do PC e do MFA – ou de um setor dele? Como nos definimos na luta entre o PS e o PC? E em Angola, a principal ex-colônia portuguesa, o que fazer com as tropas estacionadas lá? Devem ficar para intervir na guerra civil que estourou entre as três frentes de libertação? Ou devem se retirar e deixar a FLNA – ligada ao Zaire – derrotar o MPLA – oportunista, ligado ao PC e disposto a fazer um pacto com o governo português e o imperialismo? Houve várias respostas para essas e outras perguntas de igual ou menor importância.

O movimento trotskista mundial não é exceção. Em suas fileiras, essas questões têm sido amplamente discutidas e respondidas. Os artigos que publicamos nesta edição da Revista de América (de Gus Horowitz, Livio Maitan, Ernest Mandel, Andrés Romero e Fernando Sousa), bem como o editorial em “Rouge” sobre o diário “República”, são contribuições para essa polêmica viva, mas responsável, que somente os trotskistas são capazes de desenvolver a partir da abordagem dos princípios do marxismo revolucionário. Não concordamos com elas em sua totalidade; por isso achamos oportuno escrever este longo artigo, que não consideramos uma resposta definitiva, mas uma contribuição adicional à polêmica. A distância, a falta de documentação exaustiva, nos torna mais abertos do que nunca para modificar nossos pontos de vista se outros fatos ou outras interpretações se mostrarem mais precisos.

Por fim, um último esclarecimento. Este artigo foi escrito para a edição da Revista de América que deveria ter sido publicada em 23 de junho. Por essa razão, não polemizei com o interessante artigo de Mandel, que eu não havia lido. O atraso na impressão do trabalho nos permitiu fazer correções de forma e algumas de conteúdo, o que, no entanto, não alterou a linha geral do artigo.

Nahuel Moreno, Buenos Aires, 10 de julho de 1975


I
As revoluções portuguesa e russa

1. Uma comparação feliz

Enquanto os lógicos modernos gastam longos parágrafos explicando a função da analogia ou comparação, Bacon, há vários séculos, simplesmente disse: “coisas novas em si mesmas serão compreendidas por analogia com coisas antigas”. Nós, revolucionários, entre outros métodos, seguimos o conselho do velho filósofo. Assim, “The Militant”, o decano dos jornais trotskistas, em 14 de junho de 1974, em um editorial que marcou época, logo após o golpe que derrubou Caetano, apontou que o processo português tinha “paralelos com a revolução russa”. Gus Horowitz diz o mesmo no artigo que publicamos nesta edição da Revista de América.

De acordo com o editorial, há cinco semelhanças principais. A primeira é que “na Rússia houve um levante de massas semelhante”, cuja “primeira consequência foi a queda do odiado regime czarista e uma tentativa da burguesia de oferecer uma alternativa ao regime para manter o capitalismo”.

A segunda é que “houve uma traição semelhante às massas por parte do partido majoritário do movimento operário, os mencheviques, que apoiaram a alternativa burguesa ao tsarismo”. Eles, assim como os stalinistas portugueses de hoje, entraram no governo de coalizão nacional como ministros e, sob o pretexto de que o atual estágio democrático da revolução tinha de ser consolidado, disseram aos trabalhadores para adiarem suas reivindicações.

A terceira semelhança está na necessidade urgente dos magos colocarem um fim à guerra, imperialista na Rússia, colonial em Portugal.

A quarta é o sentimento a favor da unidade e do governo dos trabalhadores contra os ministros burgueses e o governo de coalizão.

O quinto, finalmente, é a tendência dos “trabalhadores russos… de organizar conselhos amplos (a palavra russa é ‘sovietes’)”, uma vez que “os trabalhadores portugueses já deram alguns passos nessa direção”.

Consideramos que a comparação de “The Militant”/Horowitz é boa, embora com duas limitações: eles não aprofundam as semelhanças, nem apontam as diferenças.

Em primeiro lugar, concordamos que ambas as revoluções são o produto de um “levante de massas” e que, em ambos os casos, a burguesia tentou uma mudança de regime para manter o capitalismo. Mas o que seria surpreendente – permita-nos esta nota de humor – seria o oposto: que houvesse uma revolução que não fosse produto de uma revolta das massas e em que a burguesia não tentasse manter o poder por meio de uma mudança de regime. Essas são características comuns a qualquer processo revolucionário. Mas “The Militant” deixa de apontar as diferenças importantes entre os “levantes de massa” português e russo. A força motriz da revolução russa de fevereiro de 1917 foi o movimento operário e seu centro geográfico foram as cidades, de onde se irradiou para a periferia; foi, por sua dinâmica de classe, uma revolução operária que entregou o poder à burguesia. A revolução portuguesa, por outro lado, foi uma consequência direta da revolução colonial, pequeno-burguesa e periférica, que teve repercussões nos centros e nas massas urbanas metropolitanas e se tornou imediatamente uma revolução operária.

À segunda analogia – a comparação entre a traição dos mencheviques russos e a dos partidos operários majoritários portugueses – não há nada a objetar. Exceto por um detalhe, cujas consequências veremos mais adiante: os editores do “The Militant” não nomeiam nem incluem em sua analogia o outro partido de massas da revolução russa: os socialistas revolucionários.

A terceira semelhança está correta em toda a linha. A necessidade de acabar com a guerra era de extrema urgência para as massas, tanto na Rússia, envolvida em sua guerra interimperialista, quanto em Portugal, envolvido em sua guerra colonial. Faltaram acrescentar ao “The Militant” que a consequência de ambas as guerras foi uma crise aguda de ambos os exércitos – os suportes finais do estado burguês – uma crise que foi o produto de sucessivas derrotas. E, além disso, faltou dizer que ser derrotado por outro exército imperialista não é o mesmo que ser derrotado por dez anos de guerra colonial revolucionária.

2. Um lapso perigoso: a pequena burguesia e seus partidos

Como já antecipamos, há um lapso e uma imprecisão que talvez não sejam acidentais: no editorial ao qual nos referimos, não há menção ao Partido Socialista Revolucionário, também conhecido na história da revolução russa como “Social-Revolucionário” ou “SR”. Entretanto, não é correto dizer que o partido majoritário dentro da classe trabalhadora, e o único que praticava a colaboração de classe, era o partido menchevique. O Social-Revolucionário foi o grande partido de massa que colaborou com os governos burgueses e de cujas fileiras surgiu Kerensky, o elo entre a burguesia e as organizações de massa. Era um partido típico de toda revolução: refletia “as massas” em geral e a pequena burguesia em particular (incluindo as seções mais atrasadas da classe trabalhadora, que vinham do campo e mantinham a mentalidade rural). Era a expressão das grandes massas postas em movimento pela revolução, lideradas pela classe média moderna, setores intelectuais e profissionais, tecnocratas e burocratas de todos os tipos, etc., que são a ferramenta política mais útil para a burguesia imperialista quando ameaçada por uma crise revolucionária.

O outro partido pequeno-burguês, embora representasse a classe trabalhadora, era o partido menchevique, o único citado no “The Militant”. Em sua ideologia, programa e liderança, era um partido pequeno-burguês, embora fosse seguido pelos trabalhadores. Ele refletia dentro da classe trabalhadora a pressão da classe média e a pequeno-burguesia de algumas seções do proletariado. Com relação a Portugal, “The Militant” compara o menchevismo apenas com o stalinismo e se esquece dos socialistas.

Muito mais do que essas omissões, estamos preocupados com a possível razão para elas. Aparentemente, para nossos autores, parece haver apenas duas classes em Portugal: a burguesia e o proletariado, uma vez que eles nunca citam a pequena burguesia como protagonista do processo revolucionário ou contrarrevolucionário. E, consequentemente, vêem apenas duas categorias de organizações políticas: as da burguesia imperialista portuguesa e as organizações reformistas que representam o movimento operário. Mas não é assim: o proletariado industrial constitui apenas cerca de um terço da população economicamente ativa. Há uma grande camada pequeno-burguesa, tanto urbana quanto camponesa, contra a qual o proletariado, mesmo se acrescentarmos o proletariado industrial e agrícola, é minoria. A pequena burguesia, como classe e como representação política do proletariado por meio dos partidos reformistas (de ideologia e liderança pequeno-burguesas), desempenha um papel duplamente decisivo na revolução; não podemos, portanto, ignorá-la. Uma coisa é apontar corretamente que nessa, como em todas as revoluções, há apenas duas saídas e dois tipos de governo: capitalista ou dos trabalhadores. Outra coisa bem diferente – e errada – é levar em conta apenas essas duas classes na análise da revolução e, assim, ignorar a existência e o papel fundamental da pequena burguesia e de suas organizações políticas.

Tanto Trotsky quanto Lênin insistiram várias vezes nesse problema. Lênin dizia:

“É muito característico e significativo que tanto os socialistas revolucionários quanto os mencheviques, sem negar isso ‘em princípio’, e conhecendo muito bem o caráter capitalista da Rússia atual [de 1917], não ousem encarar a verdade de frente. Eles têm medo de reconhecer a verdade de que todo país capitalista, incluindo a Rússia, é basicamente dividido em três forças fundamentais e principais: a burguesia, a pequena burguesia e o proletariado. Sobre a primeira e a terceira, todo mundo fala, todo mundo as reconhece. A segunda – que constitui a maioria justamente por causa de seus números! – não quer ser avaliada de forma sensata, nem do ponto de vista econômico, nem político, nem militar. “(“Obras Completas”, Editorial Cartago, Buenos Aires, 1957, Volume XXV, p. 193).

E, enfatizando o papel da pequena burguesia, ele apontou:

“O fato de nossa revolução ter ‘passado em vão’ seis meses de vacilações com relação à organização do poder é indiscutível e é determinado pela política vacilante dos socialistas revolucionários e mencheviques. Mas, por sua vez, a política desses partidos foi determinada, em última análise, pela posição de classe da pequena burguesia, por sua instabilidade econômica na luta entre capital e trabalho”. (Op. cit., Vol. XXV, p. 857).

Trotsky disse repetidamente a mesma coisa:

Para responder à questão de como a revolução operária e camponesa cedeu o poder à burguesia, é necessário unir à corrente política um elo intermediário: os democratas pequeno-burgueses e socialistas do tipo Sukhanov, os jornalistas e políticos da nova classe média que ensinaram às massas que a burguesia era o inimigo, mas que o que eles mais temiam era libertar as massas das garras de ferro desse inimigo. A contradição entre o caráter da revolução e o do poder que dela emergiu é explicada pelas peculiaridades contraditórias do novo setor pequeno-burguês, situado entre as massas revolucionárias e a burguesia capitalista” (Leon Trotsky, “História da Revolução Russa”, Galerna, Buenos Aires, 1972, Vol. 1, p. 205).

Em cada curva do caminho histórico, em cada crise social, devemos examinar uma e outra vez a questão das relações mútuas entre as três classes da sociedade moderna: a grande burguesia, liderada pelo capital financeiro; a pequena burguesia, que oscila entre os dois campos fundamentais; e, finalmente, o proletariado” (Leon Trotsky: “A Luta contra o Fascismo na Alemanha”, Ed. Pluma, Buenos Aires, 1973, Vol. 1, p. 18).

3. As etapas das revoluções russa e portuguesa

Ao não aderir estritamente às advertências de Lênin e Trotsky com relação à pequena burguesia (ou “democracia pequeno-burguesa”, como eles também a chamavam), “The Militant” e Horowitz amarram as mãos para aprofundar ainda mais a comparação entre as duas revoluções e exploram até o fim sua sabedoria, abstendo-se de procurar semelhanças entre os estágios das duas revoluções e o lugar nelas da “democracia pequeno-burguesa”.

Para dar apenas um exemplo, observemos que o editorial de “The Militant” não prevê a luta, primeiro silenciosa e depois aberta, entre Spinola, representante da grande burguesia, por um lado, e, por outro, a democracia pequeno-burguesa: o MFA e seus aliados no PC e no PS. E Horowitz, já diante do fato consumado dessa luta, não pode nos dar nenhuma definição ou comparação dela com base em uma análise de classe. Horowitz, um ano após o início da revolução portuguesa, se abstém de especificar seus estágios e personagens, limitando-se a uma descrição dos eventos.

Para nós, até o último golpe de Spinola, esse paralelo com a revolução russa é acentuado. Esse golpe reflete a contrarrevolução burguesa korniloviana derrotada pela mobilização do movimento de massas como um todo, incluindo a democracia pequeno-burguesa portuguesa. Parece-nos que Spínola combinou, em uma única personalidade, a do príncipe Lvov (titular do primeiro governo provisório da revolução russa, destinado a consolidar um governo de unidade nacional com traços marcadamente bonapartistas) e a de Kornilov (encarregado de liquidar o governo kerenskista para implantar o bonapartismo contrarrevolucionário). Isso não é coincidência, já que Lvov simbolizava a contrarrevolução feudal e Kornilov, a burguesa.

Spínola reflete apenas uma contrarrevolução: a burguesa, já que não há outra contrarrevolução em Portugal. Assim, tendo derrotado a primeira possibilidade, Spínola se lançou na segunda, na conspiração e no golpe abortado de 11 de março. A revolução portuguesa já derrubou seu príncipe Lvov – Spínola no governo – e teve seus dias de setembro, esmagando seu Kornilov – o Spínola do golpe de 11 de março. A única diferença fundamental é que os trabalhadores russos, após as jornadas de setembro, tinham um partido bolchevique para conduzi-los de forma decisiva à tomada do poder; os trabalhadores portugueses, por outro lado, não têm. Mas foi precisamente depois das jornadas de setembro que o papel dos bolcheviques foi absolutamente decisivo no processo subsequente da revolução russa. Sua ausência em Portugal transforma, a partir desse ponto, qualquer nova analogia em uma comparação vazia e, portanto, inútil.

Suponhamos que não concordemos com essa comparação entre as relações e os estágios da grande burguesia, da pequena burguesia e do proletariado na Rússia e em Portugal. Se assim fosse, seria necessário apontar com muita clareza o caráter e as diferenças, nesse aspecto, entre as duas revoluções.

4. As revoluções portuguesa e espanhola dos anos 30

Assim como achamos proveitoso comparar a revolução portuguesa até 11 de março de 1974 com a revolução russa, acreditamos que, para entender a nova etapa, é útil compará-la com a revolução espanhola da década de 1930, embora também devamos apontar algumas diferenças importantes.

Como Trotsky previu na época, a revolução espanhola foi muito lenta em relação à revolução russa. A atual revolução portuguesa, por outro lado, cobriu em um ano o que a revolução espanhola levou cerca de seis. Isso aconteceu porque tanto a revolução russa quanto a portuguesa tiveram em comum a crise no exército desde os primeiros momentos da revolução, fenômeno que não ocorreu na revolução espanhola. E a esse fator somou-se, em Portugal, a falta de organizações reformistas fortemente enraizadas no movimento operário e de massas.

Como já dissemos, para nós, antes de a revolução completar um ano, ocorreu em Portugal o clássico golpe korniloviano ou franquista: tal é a importância no calendário português dos dois golpes fracassados de Spínola. Em suas consequências, as revoluções russa e portuguesa foram mais uma vez semelhantes: o golpe contrarrevolucionário fracassou e, ao fazê-lo, acelerou a crise no exército. Na Espanha, por outro lado, o triunfo dos primeiros dias sobre o golpe não se consolidou como resultado da traição do governo e das lideranças dos trabalhadores. Assim, a reação não se desorganizou e iniciou a guerra civil. Ela dividiu o país em dois campos: em um deles, o exército burguês, agora fascista, dominava; no outro, no campo da República, a polícia e o exército desapareceram em um primeiro momento para serem substituídos pelas milícias operárias e antifascistas.

Dessa forma, o poder dual na Espanha alcançou um grau de desenvolvimento (com o desaparecimento do exército e o domínio das milícias, com a expropriação da maioria das indústrias pelo movimento operário, principalmente na Catalunha, e a tomada de terras pelos camponeses, apenas em Aragão) do qual Portugal não se aproxima. Mas essa diferença é compensada pela crise brutal do exército português, que não pode contar – como Franco fez com os famosos “mouros” – com as tropas coloniais, e vê surgir dentro dele importantes focos de dualidade de poder, um fenômeno que não ocorreu no exército espanhol, que não sofreu crises internas e não foi corroído pelos germes da dualidade de poder. Um segundo fator derivado disso, que também compensa essa diferença no desenvolvimento do poder dual em Portugal e na Espanha na década de 1930, é que, no primeiro caso, a derrota do golpe de Espínola afastou, por um tempo mais ou menos longo, a possibilidade de um novo golpe reacionário.

Mas, apesar de todas essas diferenças, as duas revoluções são semelhantes em alguns aspectos fundamentais. O primeiro deles é que, após o golpe contrarrevolucionário, quando as condições objetivas colocam o poder ao alcance do proletariado, o proletariado carece de um partido bolchevique forte. O segundo aspecto é que, se na Espanha, após o golpe de Franco, o principal fator contrarrevolucionário foi o stalinismo em aliança política com uma sombra da burguesia e com os remanescentes do exército e da polícia que restaram no campo republicano, um papel semelhante tem sido desempenhado pelo stalinismo português desde o golpe de 11 de março, servilmente ligado a essa sombra da burguesia que é Costa Gomes e ao oficialismo “esquerdista” português que constitui o MFA.

Essas duas semelhanças antecipam uma terceira, que pode ser trágica para o proletariado português. Assim como houve um maio catalão (1937), no qual o stalinismo e o governo republicano travaram sua própria guerra civil contra o movimento operário naquela província espanhola para impor um governo bonapartista, o maior perigo para os trabalhadores portugueses é, no futuro imediato, um papel semelhante para o stalinismo português e o MFA.

II
Uma revolução colonial se transformando em uma revolução socialista metropolitana

1. As previsões da Terceira Internacional

A Revolução Portuguesa se aproxima das previsões de Lênin e Trotsky, que previram, no primeiro pós-guerra, que os movimentos coloniais dos antigos impérios – Inglaterra, França – fariam parte de um único movimento revolucionário na escala de todo o império, no qual a revolução operária metropolitana seria a vanguarda das revoluções coloniais pequeno-burguesas e burguesas.

Por quase sessenta anos, nenhuma dessas previsões se concretizou. O fracasso da revolução operária na Europa após a Primeira Guerra Mundial, devido à traição das lideranças social-democratas, frustrou essa combinação de movimentos agrários e nacionalistas pequeno-burgueses ou burgueses com a revolução operária metropolitana. O caráter marítimo, e não territorial, desses impérios coloniais ajudou-os a enfrentar a tempestade.

Mais tarde, a traição stalinista do segundo pós-guerra permitiu que os velhos imperialismos realizassem com sucesso a manobra neocolonial. As colônias conquistaram a independência política, mas para se juntarem ao mundo dos países atrasados, dominados economicamente em formas semicoloniais ou dependentes pelos mesmos velhos imperialismos em parceria com o imperialismo norte-americano, esse processo não foi combinado com a revolução dos trabalhadores nas metrópoles. Quando as guerras de libertação, democráticas ou agrárias (China, Indochina, Coreia, Argélia, Cuba) eclodiram, foi novamente o stalinismo que agiu em todas as frentes para impedi-las: nem o Vietnã nem a Argélia, as duas revoluções coloniais mais heróicas desse período pós-guerra dentro dos impérios viciosos, tiveram o apoio incondicional e revolucionário do stalinismo e do movimento operário francês que ele liderava. O fato de a revolução colonial e o movimento operário do país imperialista não terem conseguido se unir em um único processo, em um todo orgânico, enquanto provocavam guerras intermináveis, terrivelmente cruéis e sangrentas nas colônias, permitiu a sobrevivência – embora enfraquecida – da estrutura capitalista e imperialista nas metrópoles.

Por razões apenas indiretamente relacionadas ao stalinismo e diretamente ao atraso do movimento operário japonês e americano, as revoluções e as guerras semicoloniais na China, Coreia, Indochina e Cuba também não estavam ligadas a eles. O fascismo impediu que o movimento operário japonês colaborasse e se unisse aos trabalhadores chineses que se opunham a ele na década de 1930 e no início da década de 1940. Nem o fraco movimento contra a agressão dos EUA em Cuba nem o grande movimento contra a guerra do Vietnã foram liderados pelo movimento operário. Muito menos por um movimento de trabalhadores que se movia em direção à revolução socialista.

Esse elo perdido entre as revoluções democrático-burguesas e a revolução dos trabalhadores dentro dos impérios ocorreu, no entanto, dentro das fronteiras de alguns países coloniais e semicoloniais. As guerras camponesas democráticas ou anti-imperialistas chinesas, coreanas, vietnamitas, iugoslavas e cubanas foram transformadas, pela lógica objetiva dessas lutas, em revoluções operárias deformadas. A teoria da revolução permanente sobre a combinação das duas revoluções foi, portanto, corroborada.

Essa combinação revolucionária, há muito frustrada, dos movimentos dos trabalhadores coloniais e metropolitanos finalmente se concretizou com a revolução portuguesa.

2. Um império capitalista em declínio

Os ideólogos do MFA, consciente ou inconscientemente seguidos por muitos setores da esquerda, esforçam-se para tentar equiparar Portugal, libertado do fascismo, aos países coloniais e semicoloniais, a fim de encobrir seu caráter imperialista. É o famoso “terceiro-mundismo” dos capitães. Para que essa teoria perigosa e falsa se sustente, ela precisa se basear em um fato verdadeiro: o óbvio atraso de Portugal.

Qualquer tentativa de comparar Portugal com os países coloniais deve começar com este problema básico: a natureza de seu atraso: é porque chegou tarde demais ao desenvolvimento capitalista, como os países coloniais, ou, ao contrário, porque chegou cedo demais? Este último é o caso de Portugal, que foi o primeiro país capitalista moderno a formar um império comercial, muito antes da Inglaterra. Como resultado, foi capaz de adquirir colônias que continua a explorar até hoje. Ela se assemelha à Inglaterra, com a diferença de que o declínio desta última começou décadas e não séculos atrás. Nas diferentes origens do atraso está o caráter diferente de Portugal e dos “países do terceiro mundo”. O primeiro é um imperialismo senil, o mais senil de todos, porque foi o primeiro; os países coloniais e semicoloniais, por outro lado, não conseguiram se desenvolver plenamente como países capitalistas, porque chegaram tarde demais. Se nem sequer conseguiram alcançar a plena independência econômica e política, muito menos conseguirão se transformar em potências imperialistas capazes de explorar outros países.

Portugal difere do império russo pelo mesmo fato. Este último foi um retardatário do desenvolvimento capitalista. Portanto, era uma semicolônia em relação aos impérios europeus (o capitalismo estrangeiro dominava sua economia), embora ao mesmo tempo fosse imperialista em relação às nacionalidades de seu território.

Portugal nunca se tornou uma semicolônia de outros impérios mais poderosos, apesar de sua extrema fraqueza: pelo contrário, até a década de 1960, o regime de Salazar havia alcançado um alto grau de autossuficiência.

É um fato histórico que, durante séculos, Portugal foi uma submetrópole comercial e, mais tarde, industrial e financeira, do imperialismo britânico. Mas a crise de 1929 permitiu que a burguesia portuguesa se tornasse relativamente independente de seu caráter submetropolitano, e a Segunda Guerra Mundial a tornou totalmente independente.

Embora a crise e a guerra tenham ferido mortalmente seu parceiro britânico, a burguesia imperialista portuguesa usou essa situação para se fortalecer dentro de seu império. Ela foi ajudada por dois fatos: primeiro, o fato de não ter intervindo na guerra mundial e, portanto, não ter que pagar pela reconstrução do país; segundo, o fato de que suas colônias mais importantes estavam no centro e no sul da África, a área menos afetada pela guerra e pelos movimentos de libertação nacional (uma área muito diferente, por exemplo, do Extremo Oriente, que havia sofrido a invasão japonesa e visto o triunfo da grande revolução chinesa).

Isso permitiu que Salazar mantivesse um império autárquico, relativamente fechado a investimentos de outros imperialismos, sem elementos “submetropolitanos” (explorados em parceria com imperialismos mais fortes), muito menos “semicoloniais”. Foi também graças a isso que a ditadura conseguiu se manter no poder por quase meio século.

Mas as condições favoráveis que permitiram que o país, apesar de seu atraso, mantivesse a independência ou a autarquia, foram ficando para trás à medida que o boom econômico imperialista do pós-guerra se desenvolvia. A burguesia portuguesa, por si só, não poderia desenvolver os novos ramos de produção característicos da economia capitalista atual: automóveis, petroquímicos, eletrônicos, bens duráveis de todos os tipos e assim por diante. Para desenvolver esses ramos, era imperativo entrar em parceria com os monopólios ianques ou europeus. A guerra colonial acrescentou mais um fator de dependência das grandes potências imperialistas: o fornecimento de armas sofisticadas para combater as guerrilhas, que o atraso do país impedia de produzir. Assim, a partir de 1960, o capital ianque e europeu começou a entrar no império. Se entre 1943 e 1960 apenas 2 milhões de contos entraram no império, em apenas 6 anos, entre 1961-67, entraram 20 milhões, ou seja, dez vezes mais, e essa tendência continuaria.

O governo de Salazar-Caetano permitiu essa penetração com relutância, mas não permitiu que ela se tornasse predominante. O principal parceiro continuou sendo a burguesia portuguesa. Se a revolução operária não intervier, a tendência do Portugal imperialista não deixa margem para dúvidas: seu atraso o condenará a se tornar uma submetrópole, ou seja, um parceiro júnior de outros impérios mais poderosos na exploração da classe trabalhadora e das colônias; e, em um futuro muito distante, não está fora de questão que ele perca totalmente sua influência em suas colônias e seja transformado diretamente em uma semicolônia. Portugal, para manter sua atual independência do capital estrangeiro, tem apenas uma alternativa: o socialismo, que lhe permitiria superar seu atraso sem cair sob o domínio dos grandes monopólios internacionais. Essa transição de um imperialismo relativamente independente e dominante em sua esfera de influência para um imperialismo dependente ou submetropolitano, como parceiro menor de outros imperialismos, caracteriza a dinâmica atual da economia burguesa portuguesa. Trata-se de uma transição inevitável que provoca fortes contradições no seio da burguesia e da pequena burguesia portuguesas, como veremos.

3. A revolução colonial abala o império

Se o regime de Salazar conseguiu manter intacto e, de certa forma, fortalecer seu império por meio século, a guerra colonial finalmente abalou seu regime.

Já em 1962, um conhecido jornalista da esquerda inglesa, descrevendo o início da revolução colonial em Angola, escreveu estas palavras, verdadeiramente premonitórias (caso ela se espalhasse, como aconteceu, para as outras colônias portuguesas):

“Em fevereiro de 1961, começou a guerra de libertação em Angola, que agora parece provável que atinja as dimensões da guerra da Argélia, que se torne o início da revolução na África Central e Austral e que abale os alicerces do colonialismo português de tal forma que Salazar seja mortalmente ferido e a situação na Península Ibérica seja radicalmente transformada” (Peter Freyer e Patricia Mc Gowa1n Pinheiro; “Salazar’s Portugal”, Ruedo Ibérico, Paris, 1962, p. 139).

Na verdade, a guerra levaria ao atoleiro econômico do imperialismo português, que seria forçado a manter um exército de 150.000 homens e gastar quase metade de seu orçamento com ele. O antigo império não poderia sustentar tal situação (nem, como se provaria mais tarde, realizar com sucesso a manobra neocolonial).

O famoso livro de Spínola, “Portugal e o Futuro”, não foi apenas o best-seller mais importante dos últimos anos do Portugal fascista. Por trás dele havia interesses ocultos que não eram exatamente literários. Sua publicação indicava que o alto comando do exército português havia se dividido ao longo das linhas da oligarquia portuguesa como resultado do impacto da guerra colonial, que já durava mais de dez anos. O campo mais reacionário era da opinião de que a guerra deveria continuar até a vitória; o campo Spinola-Costa Gomes era da opinião de que ela deveria ser encerrada negociando com as colônias uma saída que as transformaria em estados associados à metrópole, algo semelhante à situação atual das colônias britânicas. Ambos os lados se opunham à autodeterminação das colônias, mas enquanto o primeiro queria preservá-las como tais, o setor de Spínola aspirava a manter o império em uma forma neocolonial.

A esse objetivo ele acrescentou outro, de importância primordial: “democratizar” o país para permitir sua integração ao Mercado Comum Europeu e associar-se a ele na exploração das colônias e da classe trabalhadora portuguesa.

Esse primeiro plano do setor oligárquico representado por Spinola-Costa Gomes era politicamente semelhante ao que a grande burguesia espanhola está desenvolvendo atualmente: exercer forte pressão para que o próprio governo “fascista” se “modernizasse”, ou seja, “mudasse alguma coisa para que tudo continuasse igual”. Por isso, eles se limitaram a tentar convencer – sem sucesso – o governo da conveniência de liberalizar o jogo político e iniciar negociações para acabar com a guerra. A resistência de Caetano foi apoiada pelos setores burgueses que continuaram a apostar na “autarquia” imperialista. No entanto, a revolução colonial, ao mesmo tempo em que acelerava a crise política da oligarquia portuguesa, enfraquecendo seu setor mais arrogante, começou a se infiltrar, à medida que a crise econômica e social se aprofundava, nas próprias fileiras do corpo de oficiais do exército imperial.

4. A crise no exército: MFA e o “putsch”

Se a guerra colonial provocou uma profunda divisão na oligarquia portuguesa, uma crise muito mais profunda começou a se manifestar nas forças armadas do império. Elas tiveram que fazer esforços terríveis para manter a guerra nas colônias. Os jovens sofreram quatro anos de recrutamento. Muitos estudantes foram convocados como oficiais. Todos eles, oficiais, suboficiais e tropas, passaram longos anos longe de casa, em uma guerra que lhes era estranha, cheia de decepções e derrotas. Nessas condições, a divisão do alto comando facilitou o início da organização de um grupo de capitães e oficiais de baixa patente estacionados em quartéis próximos a Lisboa.

Como acontece com frequência na história, tudo começou por um motivo mesquinho, trivial, se preferir. Os capitães de carreira queriam melhores condições do que as disponíveis para os oficiais agregados. Eles fizeram uma apresentação à superioridade e continuaram a pressionar para que suas exigências fossem atendidas. Mas logo depois de se organizarem, chegaram à conclusão de que o grande problema não eram os encoleirados, seus companheiros de armas e infortúnios, mas a guerra colonial e o governo fascista, e se voltaram para a luta. Era preciso acabar com a guerra e o governo fascista.

A participação dos capitães transformou o plano de substituição de um setor da oligarquia e de Spínola em um golpe militar. A relutância de Caetano em aceitar o conselho de Spínola o colocou em uma situação sem saída e sem perspectivas. O descontentamento e a inquietação da classe média, refletidos nos protestos e na organização dos capitães, tiraram-no dessa incerteza. Spínola acreditava que poderia usá-los na mecânica do golpe e depois demiti-los, agradecendo-lhes pelos serviços prestados e forçando-os a retornar à disciplina férrea do quartel. O programa do Movimento das Forças Armadas – como finalmente foi chamada a organização dos capitães de carreira a que estamos nos referindo – era ambíguo, sem qualquer clareza, e se prestava a ser usado dessa forma. Por outro lado, o MFA também queria servir ao representante da grande burguesia e garantir a disciplina. O terror do movimento de massas e da indisciplina ligava Spinola aos capitães descontentes. Tudo estava preparado para um golpe de Estado sem intervenção popular e dos trabalhadores. Mas as coisas aconteceram de forma diferente.

5. Um “golpe” que se transforma em uma revolução dos trabalhadores

Alguns anos depois que o fascismo chegou ao poder na Itália, iniciou-se uma polêmica entre o stalinismo e o trotskismo sobre o caráter social da revolução antifascista. O stalinismo aproveitou os triunfos da contrarrevolução fascista para transferir para os países europeus sua malfadada teoria dos “estágios” revolucionários dos países atrasados. De acordo com os stalinistas, trata-se, como nesses países, de um longo estágio de revolução democrática liderada pela burguesia liberal. A partir dessa teoria do futuro da revolução europeia, ele elaborou sua política de frentes populares ou democráticas com a burguesia liberal para desenvolver a revolução democrática antifascista até o fim.

O trotskismo sustentava que somente uma classe, a classe trabalhadora, com seus métodos de mobilização, poderia derrotar o fascismo, impor as mais irrestritas liberdades democráticas e levar os países ao socialismo. As liberdades democráticas conquistadas deveriam ser subprodutos da luta revolucionária da classe trabalhadora; não um estágio histórico, mas uma manobra da burguesia para apaziguar a classe trabalhadora com concessões e, assim, impedi-la de fazer a revolução socialista. Por outro lado, para que haja um estágio democrático burguês, deve haver uma burguesia ou pequena burguesia capaz de conduzir as massas em um processo revolucionário até suas últimas consequências. Mas, desde meados do século passado, não existe essa burguesia “progressista”, pois o que ela mais teme é a mobilização da classe trabalhadora, já que o proletariado é seu inimigo histórico mais importante, muito mais do que o imperialismo, as potências capitalistas rivais e os remanescentes feudais. Esses setores estão unidos por sua condição de capitalistas ou exploradores; a classe trabalhadora está nitidamente separada deles pelo fato de ser sua exploradora direta. Se tudo isso é verdade para os países atrasados, é muito mais verdadeiro para os avançados, onde a burguesia não pode, nem por um minuto, deixar de ser duplamente contrarrevolucionária, pois, além de explorar seus trabalhadores, explora suas colônias. Portugal tem sido uma nova prova histórica da validade de ambas as teorias e políticas. Vejamos.

(…) apesar de as estações de rádio controladas pelo exército conclamarem a população a permanecer calma e em suas casas, dezenas de milhares de civis inundaram as ruas, acompanharam os tanques, ofereceram cravos vermelhos e confraternizaram com os soldados, ao mesmo tempo em que se lançaram maciça e alegremente no mais radical desmantelamento do odiado aparato repressivo fascista.

(…) O colapso do aparato repressivo da ditadura abriu subitamente a possibilidade de uma imensa mobilização popular e dos trabalhadores.No próprio dia 25 e nos dias seguintes, as ruas se encheram incessantemente de manifestações espontâneas de milhares de pessoas gritando contra o fascismo e a PIDE, pelo fim da guerra, pela confraternização com os militares e assim por diante. Um símbolo eloquente disso talvez seja o que aconteceu em várias escolas secundárias, onde os estudantes do ensino médio começaram imediatamente a descobrir, perseguir e prender os outrora temidos informantes (“bufos”) da PIDE e da Legião Portuguesa. A “higienização” dos elementos reacionários se espalhou como fogo em todo o país.

A presença ativa das massas e particularmente da classe trabalhadora foi claramente visível nas manifestações de 1º de maio, durante as quais 500.000 pessoas saíram às ruas somente em Lisboa, e na leva de greves e mobilizações que se seguiram para impor as mais diversas demandas democráticas e econômicas. Dessa forma, foi conquistada uma margem muito grande de liberdade e houve uma mudança substancial no equilíbrio de poder entre as classes.

Foi assim que Aldo Romero resumiu as consequências do golpe militar na Revista de América nº 1, e todo o jornalismo produziu versões semelhantes.

As datas são, às vezes, por um estranho acaso, simbólicas. A semana revolucionária que começou em 25 de abril, o dia do golpe, culminou no Primeiro de Maio, o dia internacional dos trabalhadores por excelência, com uma manifestação de 500.000 pessoas em Lisboa. Ela indicava claramente, tanto em sua composição social quanto nos slogans entoados, a presença de uma revolução operária que havia começado a executar um programa democrático ou algumas de suas tarefas fundamentais.

Muitas das palavras de ordem eram essencialmente antifascistas e democráticas, como “Morte ao fascismo”, “Morte aos PIDEs”, “Saneamento”. Alguns deles, em apoio à burguesia – “Viva o Spínola” – ou à pequena burguesia – “Viva o MFA” – eram indicativos do atraso do movimento operário português após 50 anos de ostracismo político. A falta de slogans anticolonialistas (com exceção do um tanto ambíguo “Fim da guerra”) era impressionante em uma revolução que – como seria demonstrado mais tarde – era, consciente ou inconscientemente, profunda e objetivamente anticolonialista. Os aplausos para Spinola provavelmente refletiam esse caráter de forma um tanto confusa, já que Spinola, após a publicação de seu livro, foi visto como o porta-estandarte do fim da guerra por todos os meios.

Mas, ao lado dessas palavras de ordem, outras foram entoadas, como “Salário mínimo a 6.000 contos” e “Cunhal ao governo”, o que já demonstrava, em termos de demandas específicas, a primazia absoluta da classe trabalhadora no movimento. Não foram ouvidas reivindicações correspondentes aos interesses específicos de outras classes ou setores. Por fim, reafirmando os métodos revolucionários dos trabalhadores, essa grande manifestação foi precedida e sucedida por inúmeras greves, o método de luta dos trabalhadores por excelência. E a liquidação do aparato fascista começou a ser feita diretamente, agredindo e prendendo seus personagens, sem ouvir as recomendações dos militares.

Em seu conjunto, as palavras de ordem demonstram a combinação de circunstâncias que provocaram o início da grande revolução antifascista dos trabalhadores. Os aplausos a Spínola e ao MFA eram o reconhecimento do movimento de massas aos golpistas burgueses e pequeno-burgueses que haviam aberto as comportas, assim como a sentença de morte do fascismo indicava claramente o objetivo imediatamente democrático da revolução operária que havia começado e que se concretizou tanto no método das manifestações e greves quanto nos slogans “salário mínimo” e “Cunhal ao governo”. Mas elas também expressavam um fato indiscutível: era o povo como um todo, da classe média ao proletariado, que estava se preparando para mudar o regime fascista. Visto por esse ângulo, tratava-se de um grande movimento popular, mas um movimento popular cujo apoio mais vigoroso e dinâmico era a classe trabalhadora. Foi, em suma, uma revolução operária que se uniu a todos os setores explorados, principalmente à classe média urbana, e começou a exigir o cumprimento até o fim das tarefas democráticas, ao mesmo tempo em que propunha, desde o início, tarefas e métodos de luta próprios do proletariado.

Poucos meses depois, essas mesmas massas trabalhadoras sairiam sozinhas às ruas para gritar “Morra Spinola”, demonstrando mais uma vez a dinâmica socialista e da classe trabalhadora da revolução.
Uma dinâmica que os próprios exploradores e seus serviçais de classe média, como o MFA, o PC e o PS, seriam obrigados a reconhecer, recorrendo à grande burla de se autodenominarem “socialistas” e disfarçarem seus projetos burgueses atrás da mentira de que o que está acontecendo em Portugal já é a marcha para o socialismo.

III
As massas derrotam a contrarrevolução spinolista

1. O governo de “unidade nacional”

O golpe militar levou ao poder o primeiro governo “revolucionário”, o do general Spínola. Ele tentou criar um governo de “unidade nacional”, que incluiria tudo, desde a grande burguesia até os partidos reformistas dos trabalhadores. E todos os setores concordaram em dar plenos poderes ao general do monóculo: o MFA, recém-formado e sob os olhos do público, não se atreveu a concorrer ao governo; os partidos tradicionais dos trabalhadores, por sua vez, jogaram todas as suas cartas em um regime de unidade nacional. Assim, Spínola tornou-se a figura dominante no governo, cercou-se de ministros amigos e entregou – como se estivesse jogando um osso para um cachorro – algumas pastas para o MFA, o PS e o PC. Palma Carlos, um apoiador incondicional seu, foi nomeado primeiro-ministro.

O fato de o MFA ter começado a se consolidar como uma organização política dos oficiais inferiores refletiu, à sua maneira, a crise revolucionária nas fileiras do exército. É totalmente “anormal” que uma organização pública de jovens oficiais co-liderasse um exército burguês, uma vez que a essência do exército burguês é a disciplina hierárquica absoluta e a obediência ao alto comando. Se Spínola teve que aceitar essa “anormalidade” e incorporá-la ao governo, foi porque a ascensão do movimento de massa o forçou a isso. Por outro lado, ele achava que, dessa forma, poderia canalizar a rebeldia dos jovens oficiais e suboficiais para os canais normais da mais rígida disciplina militar, o que era essencial para sustentar o governo ao qual ele os havia incorporado. Mas o MFA – e devemos ter isso em mente – não era o mesmo que os oficiais superiores. E relutava em se dissolver em uma obediência disciplinada a esses últimos. Assim, refletia no exército a classe média moderna, cujas expectativas não eram idênticas às de Spínola e da oligarquia portuguesa.

A participação do Partido Comunista no governo foi um fenômeno novo na política europeia nos últimos vinte e cinco anos, desde o último período pós-guerra. Com exceção do Chile, esse fenômeno também era novo no mundo ocidental. A formação desse governo de colaboração de classes, de frente popular, é um reconhecimento do imperialismo e da burguesia portuguesa de que eles têm de lidar com uma revolução operária em andamento. Justamente por isso, eles foram forçados, embora com relutância, a aceitar os solícitos afagos colaboracionistas dos partidos Socialista e Comunista.

O PC respondeu do governo às expectativas de seus novos aliados burgueses e imperialistas. Fez isso substituindo a exigência de um salário mínimo de 6.000 escudos por apenas 3.500 escudos e começou a “condenar certas lutas dos trabalhadores como ‘irresponsáveis’ ou ‘promovidas pelo fascismo’, como aconteceu, por exemplo, com a greve nacional dos trabalhadores dos correios em junho de 1974” (Aldo Romero, “Portugal, reconstrução ou revolução?”, Revista de América, nº 1).

Apesar dessa política e da política igualmente traiçoeira do Partido Socialista – insistimos no primeiro porque ele tem uma influência muito maior sobre os ativistas sindicais, e não porque o segundo tenha sido menos colaboracionista – o movimento dos trabalhadores foi adiante.

Ele começou a superar a atomização dos sindicatos por ramo de atividade, herdada do fascismo – e da antiga tradição anarco-sindicalista – e começou a organizar comissões de trabalhadores nas grandes fábricas (o stalinismo incentivou o desenvolvimento de sindicatos por ramo de atividade e, ao mesmo tempo, usou-o para criar uma organização centralizada de sindicatos industriais, a Intersindical, à qual impôs sua própria liderança escolhida a dedo). Contra as recomendações do stalinismo, os trabalhadores continuaram a fazer greves selvagens, embora de caráter isolado, enquadradas no leve refluxo de todo o movimento operário, provocado pelos apelos à passividade dos partidos reformistas.

2. Crise do governo de Spínola: o MFA assume o poder e a Assembleia Constituinte é imposta.

Apesar da boa vontade dos partidos reformistas dos trabalhadores, o governo Spínola viveu de crise em crise, até que o movimento de massa o expulsou. As leis da luta de classes são sempre mais poderosas do que os projetos reformistas. A grande burguesia, dividida no final do governo de Caetano sobre se deveria ou não acabar com a guerra colonial e “democratizar” o regime fascista, uniu-se novamente, após o 25 de abril de 1974, atrás de Spínola. Para deter o movimento operário e de massas, utilizou, com bastante sucesso, os representantes pequeno-burgueses da classe operária (os partidos reformistas) e da classe média moderna dentro do exército (o MFA). Mas foi justamente o sucesso alcançado, ou seja, a contenção do movimento dos trabalhadores e seu consequente enfraquecimento, que tornou a democracia pequeno-burguesa desnecessária para a burguesia.

Assim, ela tentou, por meio de Spínola, não apenas reverter a revolução operária em andamento, mas também as conquistas democráticas já alcançadas ou em andamento.

Esse projeto, se bem-sucedido, teria significado a transformação do governo em um governo bonapartista, uma vez que o movimento dos trabalhadores e suas conquistas democráticas não podem ser esmagados de uma vez por todas por um governo de frente popular, nem um governo de frente popular pode sobreviver quando o movimento dos trabalhadores tiver sido derrotado. Não é coincidência, portanto, que uma parte importante do esforço burguês para reverter a revolução tenha sido acompanhada, por um lado, por uma forte campanha anticomunista e, por outro, por confrontos ferozes com o MFA. A burguesia, depois de usá-lo para conter o movimento operário e de massas, entrou em conflito com a democracia pequeno-burguesa, que queria colaborar com o governo de Spínola, mas dentro de um regime democrático-burguês de respeito aos partidos operários e ao MFA.

Essa disputa entre os dois setores do governo tomou forma em torno da questão da convocação de uma eleição presidencial ou de uma eleição constituinte. Spínola e a grande burguesia sustentavam a necessidade de um governo forte e autoritário e, portanto, consideravam imperativo e urgente impor um regime bonapartista por meio de uma eleição presidencial que, de fato, não passaria de um plebiscito de Spínola. Dessa forma, eles pretendiam frear e, se necessário, esmagar o movimento dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que se livravam dos capitães do MFA e dos partidos dos trabalhadores, especialmente do PC, um agente incômodo de Moscou, em um governo que pretendia permanecer na OTAN e no Pacto Ibérico e aderir ao Mercado Comum Europeu. A democracia pequeno-burguesa se opunha a esse projeto e defendia, na época de forma unificada, a Assembleia Constituinte.

O outro ponto de discórdia era a questão colonial. Os soldados negros do exército português estavam começando a desertar e os soldados brancos, suboficiais e oficiais estavam começando a exigir o retorno para casa. Ao mesmo tempo, de acordo com um soldado trotskista português entrevistado por Gerry Foley (Revista de América, N’ 4), “no período após 25 de abril de 1974, quando a luta contra os spinolistas, que se opunham à descolonização e buscavam uma solução neocolonialista, estava em andamento, houve algumas lutas contra o envio maciço de tropas para Angola. Alguns grupos de soldados até se recusaram a ir”. Diante dessa situação, a grande burguesia e seu representante, Spínola, pretendiam negociar o fim da guerra a partir de uma posição de força, para impor às colônias sua transformação em províncias ou estados associados ao império. A democracia pequeno-burguesa, por sua vez, queria negociar a independência com os movimentos de libertação nacional; uma independência que fosse condicional e favorável ao império, mas, ainda assim, independência.

Em julho de 1974, essa crise tornou-se pública quando Palma Carlos declarou que, para evitar a anarquia, era necessário convocar eleições presidenciais em vez de eleições constituintes. Embora o movimento operário tivesse sido desmobilizado, a combinação da ascensão da revolução colonial, a crise no exército e o desespero da democracia pequeno-burguesa forçaram Spínola a se livrar de seu primeiro-ministro e a nomear Vasco Gonçalves como seu substituto. Dessa forma, ele aceitou a participação total do MFA no governo. Assim, a política da democracia pequeno-burguesa triunfou: eleições constituintes deveriam ser convocadas e a independência das colônias deveria ser negociada. Foi uma derrota parcial da contrarrevolução burguesa spinolista que, em pouco tempo, entre agosto e setembro, se manifestaria no reconhecimento da independência da Guiné-Bissau e de Moçambique.

3. As massas liquidam o governo de Spínola

Mas, após o revés, Spínola preparou o contra-ataque, indiretamente auxiliado pelo congelamento das lutas operárias e populares que o MFA e os partidos reformistas haviam provocado. Em acordo com eles, ele começou atacando a liberdade de imprensa ao proibir um jornal maoista. Em seguida, promulgou uma lei contra o direito de greve e organizou uma nova região militar em Lisboa, o COPCON (Comando Operacional do Continente), com o objetivo claro e contrarrevolucionário de “intervir diretamente em apoio às autoridades e sob suas ordens, para manter e restabelecer a ordem”. (Gus Horowitz, Op. cit.)

Como assinala Romero no artigo já citado da Revista de América nº 1,

medidas repressivas e anti-operárias foram tomadas pelos setores mais reacionários: repressão violenta de uma manifestação de apoio ao MPLA com o resultado de um morto e vários feridos a bala, proibição de manifestações operárias, intervenção militar contra a greve dos trabalhadores do transporte aéreo português (…).

Mais uma vez, a grande burguesia e Spínola começavam a se sentir fortes, a ponto de se pronunciarem publicamente contra a independência de Angola e entrarem em confronto público com o MFA e Vasco Gonçalves. “A tensão cresceu, enquanto a presidência e outros setores do governo começaram a fazer claras alegações anticomunistas e anti-operárias. No dia 10 de setembro, o próprio Spínola apelou à mobilização de uma suposta “maioria silenciosa” para pôr fim à anarquia e, no dia 28 do mesmo mês, foi montada uma provocação que serviria de cobertura ou pretexto para um autogolpe que possibilitaria a declaração do estado de sítio e a assunção de plenos poderes por parte de Spínola”.

O golpe contrarrevolucionário em andamento forçou o Partido Comunista, o mais ameaçado, a sair em desespero para se defender, convocando as massas para a luta. As massas responderam com ousadia e determinação que esmagaram a primeira tentativa contrarrevolucionária da burguesia portuguesa (que, diga-se de passagem, encerrou efetivamente a controvérsia sociológica sobre se a burguesia era reacionária ou abrigava setores “progressistas” em seu interior). De acordo com o relato de Romero na “Intercontinental Press” (citado por Horowitz no artigo publicado aqui), os trabalhadores “agiram antes do MFA e independentemente dele e do governo provisório, e deram mais atenção às instruções do PC e da Intersindical do que às dos militares”. Embora o MFA também tenha sido ameaçado pelo golpe, seu desempenho foi lamentável. A mobilização popular e dos trabalhadores, portanto, impediu o golpe contrarrevolucionário e salvou e elevou ao poder a democracia pequeno-burguesa, principalmente o MFA, que vinha se esforçando há meses para desmantelar a mesma mobilização.

4 – O governo MFA-PC-PS freia as massas

O grande triunfo do movimento operário e de massas – e do próprio PC, que estava totalmente envolvido na mobilização contra Spínola – forçou a grande burguesia a mudar sua política e seu governo. O general duro e antiquado, que queria impor a disciplina dos quartéis a todo o país, foi substituído por seu “amigo civilizado”, que estava acostumado a “falar, não a comandar”: o general Costa Gomes. A burguesia havia se convencido de que, no momento, não poderia arregimentar e derrotar o movimento operário e de massas. Por isso, procurou entre seus servos um grande negociador capaz de usar a democracia pequeno-burguesa para retardá-lo, atrasá-lo e, finalmente, derrotá-lo.

A nova política burguesa abandonou momentaneamente toda a inconstância bonapartista e voltou-se para formas parlamentares de governo: aceitou a Assembleia Constituinte.

O plano burguês tinha à sua disposição três ferramentas principais, todas elas pequeno-burguesas. O MFA seria encarregado de apaziguar os soldados, suboficiais e oficiais radicalizados, a fim de re-disciplinar as forças armadas. O Partido Comunista, disposto, como sempre, a colaborar com o governo burguês da época, se encarregaria de impedir as mobilizações e controlar a organização sindical. O Partido Socialista, que, segundo todos os relatos, venceria qualquer eleição, garantiria a inocuidade da Assembleia Constituinte e de qualquer outra variante eleitoral e parlamentar que pudesse ser apresentada.

Sob o novo governo, a luta de classes repetirá, mas em um plano mais elevado, a mesma sequência do governo de Spínola. Primeiro, a política colaboracionista das lideranças provocará um leve recuo do movimento dos trabalhadores. Em seguida, ele se levantará novamente em uma mobilização impetuosa.

O MFA no governo pediu, pela boca de Vasco Gonçalves, “domingos de trabalho”, e começou a insistir que a grande batalha era pela produção. Essa “batalha” se mostrou parte de um plano econômico de emergência proclamado em 21 de fevereiro, cuja essência era total e absolutamente capitalista: tentar salvar a economia burguesa à custa de mais exploração dos trabalhadores. Depois de garantir o apoio dos partidos dos trabalhadores a esse plano, o MFA foi além e tentou se conciliar politicamente com a grande burguesia e seus representantes. Iniciou uma cuidadosa campanha em favor de Spínola, isentando-o de responsabilidade pela tentativa de golpe anterior, porque ele havia se envolvido nela por “engano”. Não publicou investigações sobre os responsáveis pela tentativa de golpe. Não tomou medidas contra a oligarquia envolvida no fato. Deixou o exército de oficiais reacionários praticamente intacto. E, como uma demonstração de afeto aos amigos da oligarquia do outro lado da fronteira, em fevereiro a guarda fiscal portuguesa devolveu um militante de esquerda espanhol à polícia política franquista.

Enquanto isso, a situação econômica estava piorando aos trancos e barrancos. O desemprego já estava afetando mais de 200.000 pessoas, mais de 7% da população ativa. O capital estava começando a fugir para o exterior. Algumas empresas foram abandonadas por seus proprietários. O imperialismo começou a bloquear economicamente a revolução.

5. Começa um novo ascenso do movimento operário e de massas

No final do ano passado e no início deste ano, o movimento operário e de massas começou a enfrentar essas calamidades. “A queda de Spínola – diz Romero no artigo citado na Revista de América N’ 1 – foi seguida por um relativo impasse nas lutas dos trabalhadores, mas desde o início de 1975 a resistência popular se intensificou de forma espetacular (…)” e ele continua: “Outra área de luta tem sido, naturalmente, a melhoria das condições de vida, especialmente em nível de fábrica. A esse respeito, as demandas têm sido inúmeras (ritmos de trabalho, condições de saúde e segurança, equipamentos, refeitórios etc.). As reivindicações mais difundidas no momento são estabilidade no emprego e aumentos salariais”. A revolução estava dando seus primeiros passos no campo: os trabalhadores agrícolas e os camponeses pobres estavam começando a se organizar e a lutar contra o desemprego. As mobilizações não limitaram seus objetivos à estabilidade e aos aumentos salariais; elas levaram a outros slogans mais gerais e revolucionários: “inúmeras assembleias de trabalhadores de fábricas em dificuldades votaram moções a favor da nacionalização de empresas ameaçadas de demissão ou, de modo mais geral, dos monopólios”.

Ao mesmo tempo, juntamente com as greves, outros métodos de luta estavam se difundindo. A primeira grande ocupação foi destacada pelo “Le Monde Diplomatique” (junho de 1975): “O dia 7 de fevereiro foi uma data significativa: nesse dia, sete mil trabalhadores das comissões de trabalhadores da Lisnave, pela primeira vez na história de Portugal, puseram em questão a propriedade dos meios de produção – sem ainda se aventurar no terreno da autogestão”. O método de ocupação será estendido, a partir de então, não apenas aos estabelecimentos, mas também às casas de fascistas e burgueses ou simplesmente desocupadas.

Também foram feitas tentativas de controlar a produção. Em algumas empresas, “os chefes são impedidos de entrar”.

Ao mesmo tempo, a organização do movimento dos trabalhadores estava se massificando e adquirindo um caráter cada vez mais direto. O surto revolucionário combinou a organização de sindicatos por profissão, herdada do fascismo, com o surgimento de sindicatos por indústria, com a Intersindical, que tentava agrupá-los, e com os comitês de base por fábrica (as comissões de trabalhadores), bairros e de todos os outros tipos. O salto espetacular que abalou a vida social e política portuguesa desde a queda de Caetano levou à existência simultânea de: organizações sindicais por profissão, típicas dos primórdios do movimento sindical; sindicatos por indústria e suas sedes, típicos da era capitalista; e comitês de base, característicos desse período de decadência capitalista e transição para o socialismo.

O surgimento de sindicatos industriais e comitês de base – um campo em que a classe trabalhadora está à frente dos outros setores (inquilinos, soldados, etc.), já que depois de 11 de março eles foram criados na maioria das principais fábricas – aponta para a liquidação dos sindicatos por profissão. As duas formas de organização (sindicatos por setor e comitês de base) concordam com a necessidade de uma organização industrial única em todos os níveis – fábrica, grêmio, país – mas, ao mesmo tempo, são profundamente diferentes. O primeiro, institucionalizado há mais de meio século pelo capitalismo, presta-se muito mais à burocratização do que os comitês, que estão intimamente ligados às bases, que as refletem melhor do que os sindicatos e que só surgem em períodos de intensa mobilização dos trabalhadores, como o que Portugal está vivendo.

Essa diferença foi evidenciada pelo fato de que, com poucos dias de diferença, ocorreram duas manifestações: uma delas, em 14 de janeiro, convocada pela Intersindical e liderada pelo PC, para exigir seu reconhecimento oficial, reuniu entre 100.000 e 200.000 pessoas; a outra, uma grande manifestação, contou com a presença de 100.000 a 200.000 pessoas; a outra, muito combativa, convocada em 7 de fevereiro pelas “comissões interempresariais” e liderada pela ultraesquerda maoista, reuniu-se em frente ao Ministério do Trabalho para protestar contra demissões, manobras patronais e a presença da OTAN em Portugal. Seis dias depois do primeiro, em 20 de janeiro, o governo aprovou uma lei favorecendo a central única e transformando efetivamente a Intersindical em seu núcleo inicial. A Intersindical é uma grande conquista do movimento operário, mas distorcida pelo stalinismo, que a burocratizou desde o início e manipulou sua liderança para colocá-la a serviço do governo burguês. Em todo caso, o processo de lutas não poderia deixar de se refletir na busca de lideranças militantes e com consciência de classe. Recentemente – comenta Romero na Revista de América nº 1 – “as listas sindicais promovidas pelo PCP sofreram derrotas espetaculares nos Correios e no Sindicato dos Bancários do Porto”.

O exército, por sua vez, não ficou imune à ascensão do movimento de massas. O triunfo levou o MFA a promover debates de doutrinação nos quartéis. Mas essas discussões não ultrapassaram os limites da disciplina. Na entrevista com Gerry Foley citada acima, um soldado foi punido por ousar fazer uma pergunta envenenada ao comandante durante uma dessas conversas. No entanto, elas foram um importante passo adiante, pois introduziram a discussão política nos quartéis.

Tudo começou a mudar em janeiro deste ano. “Um clima deliberativo está se espalhando entre as bases e, juntamente com a rejeição da arbitrariedade disciplinar, demandas coletivas e protestos não são incomuns. Também devemos destacar eventos como o que aconteceu recentemente [em 8 de fevereiro], quando as forças do COPCON – Comando de Operações Continentais – foram deslocadas para conter uma manifestação não autorizada de trabalhadores: confrontados pelos manifestantes, os soldados se viraram apontando suas armas em outra direção e, erguendo os punhos, gritaram: “Marinheiros e soldados também são explorados. “(Romero, Revista de America N’ l.)

6. A contrarrevolução spinolista

A ascensão generalizada dos trabalhadores e do povo provocou uma nova divisão na burguesia portuguesa. Um setor minoritário, representado por Costa Gomes, continuou a jogar suas cartas na Assembleia Constituinte, na traição dos partidos socialista e comunista e no uso do MFA. Em suma, a frente popular. A maioria, em desespero, perdeu a paciência e se lançou atrás de Spinola para preparar o golpe de Estado, em uma nova tentativa bonapartista.

O fato de que o terror da burguesia também se refletia nos oficiais do exército ajudou o novo plano de golpe. O “New York Times” comentou na época que a burguesia estava se inclinando para a direita. Um fato sintomático provaria que ele estava certo: as eleições para os Conselhos de Armas, convocadas pelo MFA, foram vencidas pelos oficiais mais reacionários, inimigos jurados do próprio MFA. O MFA mostrou-se incapaz de ignorar os resultados, mesmo que fossem prejudiciais a ele e fizessem parte da preparação do golpe planejado.

O MFA começou a ter dúvidas sobre a melhor maneira de deter e derrotar a revolução. Duas opções estavam abertas para ele: por um lado, a que tendia – com a Constituinte – a um regime parlamentar; por outro, a perspectiva de um regime diretamente ditatorial e bonapartista. A urgência de superar a crise de seu regime levou-o a tentar suprimir suas contradições por meio do bonapartismo.

A crise geral e as profundas diferenças dentro do MFA, devido à ascensão, também foram expressas na luta entre os partidos Comunista e Socialista. Essa luta se tornou tão aguda que duas manifestações opostas foram programadas para 30 de dezembro, que estavam prestes a se chocar. As razões para essa disputa estão no fato de que, embora nenhum dos partidos defenda os interesses da classe trabalhadora (e nisso eles são iguais), ambos têm interesses específicos diferentes.

O rumo à direita do oficialismo, a derrota eleitoral do MFA dentro do exército e seu consequente “impasse”, a luta entre os dois grandes partidos dos trabalhadores, as dúvidas sobre a convocação da Assembleia Constituinte, todos esses elementos levaram a ala ultrarreacionária e desesperada da grande burguesia e do oficialismo a acreditar que havia chegado a hora da vingança. Liderado por Spínola, o golpe contrarrevolucionário foi finalmente lançado. Sua equação estava quase completa, mas faltava uma incógnita: a reação da classe trabalhadora, do movimento de massa e dos soldados. Isso foi assustador, os trabalhadores e soldados correram para ocupar fábricas e quartéis. O fracasso do golpe foi retumbante, o que levou a imprensa imperialista a afirmar que possivelmente se tratava de uma provocação. Não foi, ele teve forte apoio do corpo de oficiais e foi cuidadosamente preparado. O que conspirou contra seu sucesso foi a velocidade da resposta popular e sua maior combatividade, em relação ao golpe anterior de Spínola. Se a Intersindical, as manifestações e as barricadas caracterizaram a resposta ao primeiro golpe, os comitês de trabalhadores e soldados, com suas ocupações, caracterizaram a resposta à segunda tentativa de Spínola.

IV

O golpe de 11 de março abre uma era revolucionária

1. Quatro novos acontecimentos decisivos

A derrota de Spínola pelo movimento de massas produziu uma série de novos acontecimentos que, combinados, inauguraram uma nova etapa da revolução portuguesa. Quatro desses eventos são os mais decisivos:

Primeiro: a burguesia desaparece política e fisicamente como classe. A fuga de Spínola não foi um evento inconsequente, mas de enorme importância sintomática e política. Junto com ele, milhares e milhares de burgueses fugiram de Portugal, aterrorizados pela força do movimento de massa. Algumas das maiores famílias oligárquicas e todo o sistema bancário foram expropriados. Grandes burgueses, como os Champalimaud, foram presos. Foi um golpe muito duro para a burguesia

Segundo: a crise econômica e social, já muito aguda, está se agravando a limites insuportáveis. A burguesia, ao sair, abandonou muitas empresas. Quando pôde, retirou seus fundos; quando não, parou de investir. O desemprego, que já era grave – perto de 7% – subiu para 8% e continua aumentando, já afetando 800.000 pessoas. A produção está caindo. Além disso, os colonos das antigas possessões africanas começam a retornar a Portugal, agravando o desemprego e fortalecendo os setores contrarrevolucionários. Diante dessa situação, o turismo diminuiu e a crise da balança de pagamentos está se aprofundando. A situação é ainda mais agravada pelo fato de as grandes potências imperialistas não estarem investindo um único dólar em Portugal. contrarrevolucionária, do qual ela precisará de tempo e esforço para se recuperar. Física e politicamente, ela desapareceu por um tempo do cenário econômico e político. Apenas sua sombra permaneceu.

Terceiro: as ocupações de fábricas, estabelecimentos e casas se espalharam e as ocupações de terras começaram; as comissões de trabalhadores e inquilinos se desenvolveram e algumas comissões de camponeses foram esboçadas. Todos os comentaristas relataram como, após o golpe de Spínola, os bancos foram ocupados. Romero, em seus vários artigos publicados até o nº 4 da Revista de América, observa incidentalmente as ocupações de empresas e comissões de trabalhadores, mas não lhes dá nenhuma importância sintomática. Horowitz, em sua única menção a elas no artigo reproduzido nesta edição, diz de passagem que “as ocupações de fábricas e escritórios também se espalharam”. Livio Maitan, por sua vez, também dá pouca importância à questão, embora diga alguma coisa (muito pouco): “A amplitude e o dinamismo da mobilização dos últimos meses, a multiplicação de greves e ocupações de fábricas e a extensão das organizações democráticas revolucionárias surgidas das bases e com manifestações políticas (…) de 7 de fevereiro (…) pelas Comissões de Trabalhadores”. (L. Maitan, ” El papel del MFA portugués”, nesta edição da Revista de América).

Além disso, o autor ressalta que a manifestação foi liderada pelos maoístas. Gerry Foley, por sua vez, diz: “Os comitês de fábrica ainda não existem em todo o país, mas desempenham um papel importante em grandes empresas (…) O Comitê de Trabalhadores, eleito em uma assembleia de toda a fábrica, é mais representativo da força de trabalho do que os sindicatos fragmentados. Ele também é muito mais democrático”. Ele continua contando como, no Porto, “na noite de 11 de março, esses comitês organizaram piquetes de vigilância”. Esses comitês e piquetes na fábrica mencionada acima continuaram a funcionar para “expulsar os direitistas da administração e da oficina”. (Gerry Foley, “Portugal antes das eleições”, Revista de América nº 3) O “Combate Socialista”, em uma de suas edições, sem dar importância, nos informa sobre a profunda tendência à centralização desses comitês de trabalhadores, quando afirma que existe um “comitê coordenador dos comitês da CUF” (o mais importante grupo monopolista em Portugal). E confirma Lívio Maitan em relação à manifestação de 7 de fevereiro (que ele caracteriza como um exemplo de combatividade), convocada por uma “comissão inter-empresas”.

Por fim, exagerando ou não o lúcido comentarista do “Le Monde Diplomatique” (junho de 1975), ele está próximo da verdade quando afirma que “As ocupações de fábricas, fazendas, palácios e edifícios – estes últimos rapidamente transformados em clínicas populares, centros de ajuda mútua, lares de crianças, locais de recreação ou descanso ou sedes de organizações populares – pegaram de surpresa os partidos da coalizão […]. …] no entanto, o PCP e a Intersindical estavam perdendo velocidade, enquanto as organizações e comitês de base estavam consolidando seu contrapoder.”

Quarto: a crise no exército assumiu uma nova magnitude, com a fuga dos oficiais reacionários, a disseminação dos comitês e as assembleias de soldados e suboficiais, que começaram a questionar a hierarquia militar. De todos os novos acontecimentos, o mais importante é o que está começando a ocorrer nas forças armadas, conforme descrito por um soldado a Gerry Folley: “Depois de 11 de março, os soldados realizaram uma assembleia geral. Eles demitiram não apenas o comandante e o segundo em comando, mas também todos os oficiais da spinola até o posto de sargento. Também demitiram um cabo, apesar de ele ser primo do general Galvão de Melo. Os camaradas perceberam a necessidade de ir em frente e tomar o quartel. A assembleia geral resolveu criar vários comitês (…) Com o expurgo – diz mais adiante – a hierarquia militar foi quebrada, pois os chefes expulsos foram substituídos por oficiais subalternos”. Em Coimbra, “a tropa havia expulsado dois oficiais designados para o quartel pelo Conselho da Revolução”.

No mesmo artigo de Gerry Folley (Revista de América, nº 4), o soldado ressalta que “na Marinha, onde a consciência política das patentes é maior, há um comitê de marinheiros que discute as ordens emitidas pelos oficiais e pode aceitá-las ou rejeitá-las”. E Romero (Revista de América No 4) confirma isso: “Em 1º de maio, várias centenas de marinheiros de todas as patentes participaram da manifestação, de acordo com as resoluções das assembleias gerais de suas bases e de alguns navios – posteriormente, uma ‘ordem superior’ ratificou a decisão tomada democraticamente”. Todos esses fatos indicam a dinâmica que a situação assumiu dentro das forças armadas burguesas, mas são apenas o começo; ainda não se generalizaram e ainda não atingiram o ponto qualitativo em que o exército começa a transição para seu colapso total e definitivo: a nomeação de oficiais pelos soldados por meio da promoção de suboficiais. Junto com esse processo básico, a derrota do golpe deu ao tímido MFA incentivo suficiente para anular as eleições para os Conselhos de Armas que, como já vimos, foram desfavoráveis a ele.

2. O Programa de Transição define essa situação

Tanto em relação às ocupações quanto às comissões de fábrica e de estabelecimentos, o Programa de Transição é categórico:

“As greves com ocupação de fábricas, uma das manifestações mais recentes dessa iniciativa, ultrapassam os limites do regime capitalista normal. Independentemente das reivindicações dos grevistas, a ocupação temporária de empresas dá um golpe no ídolo da propriedade capitalista. Toda greve de ocupação levanta praticamente o problema de quem é o proprietário da fábrica: o capitalista ou os trabalhadores. Se a ocupação promove essa questão episodicamente, o comitê de fábrica dá a ela uma expressão organizacional (…) A partir do momento em que surge o comitê de fábrica, uma dualidade de poder é de fato estabelecida. Em sua essência, ele tem uma natureza transitória porque contém em si dois regimes irreconciliáveis: o regime capitalista e o regime proletário. A principal importância dos Comitês de Fábrica consiste precisamente na abertura de um período pré-revolucionário, se não diretamente revolucionário, entre o regime burguês e o regime proletário”. (Trotsky, “Programa de Transição”, Pluma, Buenos Aires, 1973, p. 15, sublinhado por Trotsky).

Como já vimos, em Portugal não temos apenas ocupações e comissões de trabalhadores em toda parte, mas algo muito mais importante: a crise das forças armadas e as sementes do duplo poder em seu próprio meio.

3. Uma situação revolucionária

Para alguns marxistas, a situação portuguesa “evolui ou amadurece para uma situação pré-revolucionária”. Acreditamos que essa definição está errada. Até 11 de março, havia uma situação pré-revolucionária e, desde essa data, uma situação revolucionária começou a amadurecer, se é que já não estamos totalmente nela. Optar pela definição de Trotsky dos comitês de fábrica é um sintoma de que, no mínimo, “um período pré-revolucionário, se não diretamente revolucionário” foi aberto. Acreditamos que, se às ocupações e comissões acrescentarmos a crise no exército, com seus comitês e assembleias de soldados e seus expurgos de oficiais reacionários, já estamos em uma situação diretamente revolucionária. E ainda mais se levarmos em conta a situação da burguesia portuguesa e da economia portuguesa. Referindo-se a eventos muito menores dentro do exército francês em 1936, Trotsky atribuiu a eles uma importância muito grande: “A luta dos soldados contra o ‘rabiot’ (extensão do serviço militar) significou a norma mais perigosa de ação direta das massas contra o poder burguês” (Leon Trotsky, “¿Adónde va Francia?”Ed. Pluma, Buenos Aires, 1974, p. 151).

No entanto, Trotsky considerava a ação direta das massas como a causa da situação revolucionária: “As massas trabalhadoras agora criam uma situação revolucionária com a ajuda da ação direta. “(Op. cit., p. 147.). Mais uma razão, então, para “a forma mais perigosa” dessa ação.

Duas falhas podem ser apontadas em nossa definição: a inexistência de sovietes e de um partido revolucionário com influência de massa.

Acreditamos que a primeira objeção dá um caráter absoluto à importância dos sovietes. Há camaradas que são mesmo da opinião de que, se eles não existirem, não há duplo poder e não há situação revolucionária. Concordamos que em Portugal há apenas pequenos surtos soviéticos, como já dissemos; mas há um duplo poder concretizado nas ocupações e nas comissões de trabalhadores. Esse duplo poder é molecular, em grande parte espontâneo, mas existe e está espalhado por todos os cantos do país. É um duplo poder mais atrasado do que os sovietes, mas ainda assim é um duplo poder. O mesmo pode ser dito sobre a situação das forças armadas: nenhum soviete foi organizado, mas o processo é de desenvolvimento de um vigoroso poder duplo, que está em sua infância, mas que é suficiente para abalar a estrutura do pilar fundamental do regime capitalista.

A segunda objeção, relativa à inexistência do partido revolucionário, pode muito bem se basear na definição de Trotsky, às vezes repetida, das quatro condições básicas para o triunfo revolucionário: confusão e divisão na classe dominante, a virada da classe média para soluções revolucionárias, a disposição revolucionária da classe trabalhadora, a existência de um forte partido marxista revolucionário que esteja pronto para assumir o poder. As três primeiras condições estão claramente presentes em Portugal, mas a última, o partido revolucionário forte, não está.

Para a análise trotskista clássica, a ausência do fator subjetivo, “o partido”, na estrutura das outras três condições, caracterizava situações pré-revolucionárias. De um ponto de vista formal, a situação portuguesa se enquadraria, portanto, nessa categoria. É provavelmente isso que aqueles que definem a situação portuguesa como amadurecendo em uma situação pré-revolucionária levaram em conta.

Agora, se raciocinarmos dessa forma, seriam situações pré-revolucionárias, com diferenças apenas de intensidade, quantitativas, tanto a situação boliviana em 1952 (quando o aparato estatal burguês havia entrado em colapso, o exército havia sido derrotado pela classe trabalhadora e só existiam as milícias armadas de trabalhadores e camponeses), a situação espanhola durante a guerra civil ou a situação chinesa no final de Chiang Kai-shek, por um lado, e, por outro lado, situações como a Argentina após o Cordobazo ou a situação francesa antes de 1936, nas quais não houve nem o armamento do proletariado, nem o surgimento de organismos de duplo poder, nem a destruição ou crise do exército burguês. É evidente, entretanto, que entre as três primeiras e as duas últimas há diferenças qualitativas e profundas, que são obscurecidas se as agruparmos sob a denominação comum de pré-revolucionárias. A Argentina após o Cordobazo e a França antes de 1936 são, para nós, situações pré-revolucionárias. A Bolívia em 1952, a Espanha durante a guerra civil e a China no final de Chiang Kai-shek foram muito mais longe: são situações revolucionárias. Não revolucionárias clássicas, porque não têm o partido marxista revolucionário, mas revolucionárias “sui generis”.

Trotsky, em várias ocasiões, ressaltou que poderiam surgir situações revolucionárias “anormais” que não estivessem de acordo com as condições clássicas. Em um artigo premonitório, intitulado “O que é uma situação revolucionária”, ele afirma:

“Não está excluído o fato de que a transformação revolucionária geral do proletariado e da classe média e a desintegração política da classe dominante possam se desenvolver mais rapidamente do que o amadurecimento do Partido Comunista. Isso significa que uma situação revolucionária genuína pode se desenvolver sem um partido revolucionário adequado. Isso seria uma repetição, até certo ponto, da situação na Alemanha em 1923. (Trotsky, “Writings 1930-193V”, Pathfinder, Nova York, 1973, p. 354).

Isso quer dizer que, de acordo com Trotsky, quando o peso dos fatores objetivos é sentido de forma muito aguda, uma situação revolucionária pode surgir mesmo na ausência do partido revolucionário. Posteriormente, de maneira elíptica, sem tocar diretamente no assunto, ele novamente deu uma nova definição hipotética da situação revolucionária “anormal”. Referindo-se às possibilidades históricas do estabelecimento de governos operários e camponeses constituídos pelos partidos reformistas pequeno-burgueses, ele apontou que isso poderia ocorrer como consequência de “guerra, derrota, crack financeiro, ofensiva revolucionária das massas, etc.” (“Programa de Transição”, idem, p. 33) Essas condições e outras não mencionadas poderiam, portanto, dar origem a uma situação que levasse ao governo operário e camponês revolucionário, o prelúdio da ditadura do proletariado, sem a condição do partido marxista revolucionário.

Em Portugal, tínhamos as condições para uma situação revolucionária, em nossa opinião “sui generis”, como previsto por Trotsky, reunidas e sobrecarregadas. Havia “guerra” e “derrota”; há crise econômica e uma “ofensiva revolucionária das massas”, bem como uma “transformação revolucionária geral do proletariado e da classe média e a desintegração política da classe dominante”.

4. O papel organicamente contrarrevolucionário do MFA-PC-PS encerra qualquer possibilidade de Portugal ser a China ou Cuba

Essa possibilidade de constituição de governos operários e camponeses, que Trotsky considerava muito remota – esclareça-se, de passagem, que porque ele acreditava, entre outras coisas, que nos países ocidentais a revolução viria imediatamente após a guerra – foi a constante no segundo pós-guerra. As revoluções chinesa, indochinesa, coreana e cubana seguiram esses padrões. Isso nos levou a argumentar que essas eram situações revolucionárias “sui generis”, que não se encaixavam no esquema clássico. Fizemos um esforço para definir essa nova situação revolucionária e apontamos que ela se caracterizava pelo fato de que os fatores objetivos apontados por Trotsky adquiriram um caráter permanente e crônico. Em nossa opinião, as situações revolucionárias que vimos nesse período pós-guerra foram provocadas pelo enorme peso da situação objetiva. Fundamentalmente, por uma crise econômica e social de caráter crônico que levou as massas pequeno-burguesas a um levante revolucionário muito acentuado e forçou seus partidos a romperem com o imperialismo e os proprietários de terras, voltando-se para uma guerra de guerrilha que destruiu a cobertura repressiva do regime burguês. Essa é uma abordagem diametralmente oposta à do guerrilhismo guevarista, para o qual a situação revolucionária é essencialmente desencadeada por um fator subjetivo, o grupo guerrilheiro ou a vanguarda armada dando exemplos heroicos às massas.

A situação internacional ajudou ou facilitou a guerra de guerrilha dos partidos pequeno-burgueses. A guerra interimperialista, a crise e a reconversão do imperialismo no imediato pós-guerra e a “guerra fria” deram a esses partidos um amplo campo de manobra e os colocaram diante de uma contrarrevolução enfraquecida, incapaz de se manter solidamente unida contra a revolução colonial pequeno-burguesa. A Guerra Fria teve, à sua maneira, o mesmo efeito: dividiu o bloco contrarrevolucionário americano-soviético.

Outro elemento de peso considerável, e que não recebeu a importância que merece, é o fator subjetivo da contrarrevolução.

Nós, trotskistas, enfatizamos corretamente a importância, no desenvolvimento do processo revolucionário, da política e da liderança dos partidos que afirmam pertencer à classe trabalhadora. Nossa atitude em relação às políticas e táticas dos líderes e partidos dos exploradores é diferente: não as analisamos com o mesmo interesse. Entretanto, em uma situação revolucionária, esses são elementos de primeira grandeza. A política desastrosa – do ponto de vista de seus próprios interesses – de Chiang Kai-shek, do imperialismo francês e americano, e de Batista e Washington teve uma influência decisiva nos triunfos das revoluções chinesa, indochinesa e cubana, respectivamente. Uma política muito mais cuidadosa e afinada adotada na Bolívia e na Argélia pelo imperialismo americano e francês, respectivamente, conseguiu impedir os triunfos revolucionários nesses países.

Mas a situação internacional e subjetiva da contrarrevolução mudou radicalmente contra a possibilidade de novos triunfos revolucionários “sui generis” como os conhecemos nos últimos trinta anos. A crise na frente contrarrevolucionária diminuiu e suas divisões foram soldadas novamente. O bloco dos países imperialistas com as burocracias da URSS e da China para confrontar e desviar a revolução é atualmente bastante sólido, sem grandes fissuras. E todos eles aprenderam com as novas “situações revolucionárias”. Nada demonstra isso melhor do que a mudança de política do imperialismo francês da Indochina para a Argélia, o Marrocos e a Tunísia. Com exceção do recente fim da guerra do Vietnã, há mais de quinze anos (e não por acaso) que não ocorrem triunfos revolucionários “sui generis”, dando origem a governos operários e camponeses. E o triunfo na Indochina é o produto da combinação do legado de mais de trinta anos de guerra de guerrilha, desde o período da Guerra Fria, com o movimento de massa americano e europeu contra a guerra imperialista.

Não estamos dizendo que esses triunfos não se repetirão nos países coloniais ou semicoloniais. Mas eles terão de contar com um novo fator a seu favor, muito mais poderoso do que a crise interimperialista ou a guerra fria por si só: a ascensão do movimento de massas nos países metropolitanos. Esse é o caso do triunfo no Vietnã. Mas a frente unida contrarrevolucionária EUA-URSS-China também funciona lá para tentar conseguir o que o imperialismo francês conseguiu na Argélia: um recuo do governo dos trabalhadores e camponeses para um regime capitalista.

Todos esses são fatores de primeira ordem para impedir um triunfo revolucionário “sui generis” em Portugal e para impedir que nos aproximemos de uma variante de governo operário e camponês. Mas, embora sejam de primeira ordem, isso não significa que sejam o fator decisivo para impossibilitar tal variante. O fator essencial que torna impossível uma variante chinesa ou cubana em Portugal é o caráter da pequena burguesia portuguesa e de seus partidos.

O prognóstico de Trotsky no “Programa de Transição” (idem, p. 32): “A experiência da Rússia mostra, e a experiência da Espanha e da França confirma mais uma vez, que mesmo sob as condições mais favoráveis os partidos da democracia pequeno-burguesa (socialistas revolucionários, social-democratas, stalinistas, anarquistas) são incapazes de criar um governo operário e camponês, ou seja, um governo independente da burguesia”, ainda é válido. E mais válida do que nunca para os países imperialistas, mesmo que tenha se mostrado errada para os países coloniais. A razão é simples, mesmo que Trotsky não a tenha levado em conta. Ela reside em uma diferença de classe: a diferença entre a pequena burguesia de um país imperialista e a de um país colonial ou semicolonial. A primeira desfruta de uma situação privilegiada graças à exploração dos países atrasados; a segunda, incluindo o campesinato, vive em uma crise crônica sem saída por causa da exploração imperialista e de seus agentes, os exploradores nacionais. É por isso que a pequena burguesia imperialista, bem como seus partidos e organizações – entre eles os partidos comunista e socialista – são organicamente contrarrevolucionários, agentes do imperialismo.

Em outras palavras: como sua existência privilegiada depende da existência de seu próprio imperialismo, eles são organicamente incapazes de enfrentá-lo. Essa é a situação atual em Portugal, onde o MFA, o PC e o PS estão disputando a maneira mais engenhosa ou mais rápida de salvar o imperialismo português em crise. É por isso que não há nenhuma chance de eles romperem com o imperialismo para estabelecer um governo de trabalhadores e camponeses. O menor erro ou confusão teórica sobre esse problema de princípio nos levará inevitavelmente ao declive das concessões ao oportunismo, à capitulação ao imperialismo português e ao seu agente: o governo do MFA.

V
O GOVERNO DO MFA

1. Bonapartismo clássico: uma definição pouco feliz

“Em outras palavras, a classe dominante portuguesa é obrigada a ter no poder uma espécie de juiz-árbitro, aparentemente colocado acima das classes e capaz de agir energicamente, tanto para regular os assuntos internos da classe capitalista quanto para restringir e reprimir o movimento dos trabalhadores, atuando, em última análise, como representante da classe capitalista como um todo. Em termos marxistas, esse fenômeno é frequentemente chamado de “bonapartismo, em homenagem a Napoleão Bonaparte, que desempenhou uma função semelhante, embora com muito mais força do que o MFA possui”.

É assim que Gus Horowitz define o atual governo português no artigo acima mencionado: como “bonapartista clássico”. Nesse parágrafo, há grandes novidades teóricas e políticas que conseguiram nos surpreender e preocupar. Mas vamos dar um passo de cada vez. Antes de considerar as novidades, vejamos o que Trotsky disse sobre o bonapartismo clássico:

“Para que um pequeno corso se elevasse acima da jovem nação burguesa, era necessário que a revolução tivesse primeiro cumprido sua missão fundamental: que a terra fosse dada aos camponeses e que um exército vitorioso fosse formado na nova base social. No século XVIII, a revolução não podia ir além: tudo o que podia fazer era recuar. Nessa retirada, no entanto, suas conquistas fundamentais seriam destruídas. Mas elas tinham de ser preservadas a todo custo. O antagonismo cada vez mais profundo, mas ainda não amadurecido, entre a burguesia e o proletariado estava mantendo um país abalado em seus alicerces em extrema tensão. Nessas condições, era necessário um “juiz nacional”. Napoleão deu aos grandes burgueses a possibilidade de obter grandes lucros, garantiu aos camponeses seus lotes de terra, deu aos filhos dos camponeses e aos deserdados a possibilidade de saquear na guerra. O juiz segurava o sabre em sua mão e cumpria pessoalmente a missão de oficial de justiça. O bonapartismo do primeiro Bonaparte tinha uma base sólida. (“History of the Russian Revolution”, idem, T. 11, p. 175).

Basta ler as duas citações para ver que há uma grande diferença entre os dois. Para Horowitz, Napoleão Bonaparte “cumpriu uma função”, a de “conter e reprimir o movimento dos trabalhadores”; para Trotsky, a função que ele cumpriu foi a de “preservar a todo custo” os “ganhos fundamentais” da revolução: “que a terra fosse dada aos camponeses e que um exército vitorioso fosse formado em uma nova base social” e, em cumprimento a essa função, ele “garantiu aos camponeses seus lotes de terra” e constituiu seu exército vitorioso com base nos “filhos dos camponeses” e nos “deserdados”. No cumprimento da mesma função, ele “conteve e reprimiu” a reação feudal em toda a Europa, que visava sufocar a nação burguesa e restabelecer o “ancien régime”. .

Acrescentemos que a definição de Trotsky do regime de Napoleão não tem nada a ver com a realidade portuguesa de hoje, onde não há exércitos vitoriosos (na verdade, há um exército derrotado), não há entrega de lotes de terra aos camponeses, não há nada.

Voltemos a Horowitz. Sua definição levanta uma questão de método realmente alarmante. Como já vimos, ele considera que Napoleão “cumpriu uma função semelhante” à do MFA, “embora de uma forma muito mais forte do que o MFA pode fazer”. Juntando tudo isso, isso significaria que Napoleão Bonaparte cumpriu, de uma forma muito mais forte do que o MFA, a função de “reprimir o movimento dos trabalhadores” (! ) Mas deixemos isso de lado. A verdade é que, para Horowitz, as diferenças entre Napoleão I e o atual regime português são de grau, quantitativas, não qualitativas. Seguindo a lógica do seu pensamento, o MFA e o seu governo são Napoleões Bonapartes fracos; Napoleão Bonaparte era, então, um MFA forte.

Não sabemos por qual método Horowitz supõe que um regime substancialmente semelhante ao do início do século XIX possa existir em 1975. Todas as circunstâncias mudaram: naquela época, o capitalismo estava em ascensão; hoje, ele está em declínio. Naquela época, o antagonismo entre o proletariado e a burguesia “ainda não estava amadurecido”; hoje, ele está totalmente desenvolvido; etc., etc., etc. São precisamente essas “pequenas” diferenças entre as duas épocas que fazem Trotsky distinguir nitidamente o bonapartismo do período de ascensão do capitalismo daquele de sua decadência.

Sempre diferenciamos estritamente entre esse bonapartismo da decadência e o bonapartismo jovem e progressista, que não era apenas o coveiro dos princípios políticos da revolução burguesa, mas também o defensor de suas conquistas sociais. (Leon Trotsky, “Writings, 1934-35”, Pathfinder, Nova York, 1974, p. 181).

Sempre diferenciamos estritamente entre esse bonapartismo da decadência e o bonapartismo jovem e progressista, que não era apenas o coveiro dos princípios políticos da revolução burguesa, mas também o defensor de suas conquistas sociais. (Leon Trotsky, “Writings, 1934-35”, Pathfinder, Nova York, 1974, p. 181).

Historicamente, o bonapartismo foi e ainda é o governo da burguesia durante períodos de crise na sociedade burguesa. É possível e necessário distinguir entre o bonapartismo ‘progressista’ que consolidou os ganhos puramente capitalistas da revolução burguesa e o bonapartismo da decadência da sociedade capitalista, o bonapartismo convulsivo de nossa época (von Papen, Schleicher, Dollfuss e o candidato do bonapartismo holandês, Coflin, etc.). (Leon Trotsky, “Writings, 1933-34”, Pathfinder, Nova York, 1972, p. 107).

O bonapartismo de Napoleão I era progressista, porque defendia o progresso capitalista contra a reação feudal. Mesmo até o final do século passado, os bonapartismos mantiveram características progressistas (Bismarck alcançou a unidade nacional na Alemanha, Napoleão III deu um grande impulso ao desenvolvimento capitalista na França). Mas, neste século, em plena decadência e putrefação do capitalismo, nenhum bonapartismo em um país imperialista pode ser “progressista”; ele é, e não pode ser outra coisa, contrarrevolucionário, regressivo, oposto ao progresso histórico.

Nenhum regime, de qualquer tipo, pode ser definido independentemente das condições sociais concretas nas quais ele nasce e se desenvolve. No caso do bonapartismo, isso significa que, em nosso tempo, não pode haver repetição de um regime bonapartista fundamentalmente como os da época do surgimento do capitalismo.

Além disso, se Horowitz estiver certo em sua definição, isso se voltaria contra o que ele quer provar. De fato, nesse caso, o governo do MFA seria um regime relativamente “progressista”.

Não falaremos mais sobre a infeliz definição de Horowitz.

2. Mais confusões: bonapartismo “sui generis”?

Mas ainda resta mais um aspecto sobre a questão do bonapartismo. Trotsky analisou um tipo de bonapartismo peculiar aos países semicoloniais ou neocoloniais. A fraqueza da burguesia nacional nesses países, onde o principal explorador é o imperialismo, dá origem a governos que atuam como árbitros entre o movimento dos trabalhadores e das massas e o imperialismo dominante. Na medida em que a burguesia nacional não consegue impor seu domínio diretamente, é necessário o surgimento de um árbitro entre as duas forças mais poderosas no cenário nacional.

Esses governos podem agir como agentes do imperialismo, caso em que têm um caráter marcadamente reacionário, ou podem contar com as massas de trabalhadores e camponeses para resistir à pressão da metrópole. No último caso, eles têm um caráter relativamente progressista que, distâncias históricas à parte, repete algumas das características positivas do bonapartismo do século passado. Esse caráter relativamente progressista tem sua contrapartida no papel que esses bonapartismos “sui generis” desempenham ao impedir que a classe trabalhadora avance por um caminho independente em direção à sua revolução e ao manter a resistência ao imperialismo dentro dos limites da propriedade burguesa. Cárdenas, Nasser e Perón são alguns exemplos desse bonapartismo “sui generis”: governos burgueses em sua essência, defendendo seus países do imperialismo ao contar com as massas exploradas.

Alguns ideólogos do MFA se autoproclamam “terceiro-mundistas” e comparam seu movimento aos dos povos coloniais e semicoloniais, tentando assim explorar em seu benefício o prestígio e a atratividade que os movimentos de libertação nacional têm aos olhos da esquerda europeia, especialmente de sua geração mais jovem.

Infelizmente, eles fizeram eco ao nosso movimento. Com base em terminologia e comparações puramente formais, o MFA é apresentado como estando próximo dos regimes militares do “terceiro mundo”. Livio Maitan nos diz, no artigo “O papel do MFA português” (nesta edição da Revista de América) que:

O fenômeno que estamos testemunhando hoje em Portugal apresenta claras analogias com fenômenos que ocorreram em países neocoloniais ou países econômica e socialmente subdesenvolvidos.

Quais são essas “analogias claras”? Aqui está o que Maitan argumenta:

Em situações em que a burguesia se vê incapaz de exercer sua hegemonia política pelos meios normais – o mecanismo democrático burguês parlamentar ou presidencial, a ditadura formal ou de fato de um partido político próprio, etc. – em um período de profunda crise política, o aparato militar pode emergir como a única força capaz de garantir o funcionamento do Estado. Para ser mais preciso, o exército pode assumir a função de um partido líder, com a capacidade de preservar o funcionamento do mecanismo essencial do sistema. Isso não precisa necessariamente assumir a forma de uma ditadura militar reacionária, mas pode ocorrer sob a tendência militar reformista ou populista (obviamente, a ditadura militar brasileira está na primeira categoria e o regime peruano na segunda, para citar apenas dois dos exemplos mais proeminentes na América Latina).

Confessamos que o procedimento do autor nos deixa surpresos. Ele deixa de lado o fato de que nenhum governo pode ser compreendido sem as características profundas, estruturais e de classe do país e da situação em que ele se encontra. Portugal é um país imperialista; Peru e Brasil, países semicoloniais explorados pelo imperialismo.

Essa é uma diferença nítida e decisiva. Todos os tipos de governo burguês em Portugal são, antes de tudo, governos imperialistas. Todos os governos, de qualquer tipo, no Peru e no Brasil, devem refletir de alguma forma a grande contradição que opõe o país como um todo à dominação imperialista. O regime brasileiro tem sido um agente direto do imperialismo e um inimigo de seu próprio país. O regime peruano é apenas uma defesa tímida do país em face do imperialismo.

Tais governos não podem existir em Portugal, porque o principal explorador é o capitalismo português. Naturalmente, a ideologia do “Terceiro Mundo” de setores do MFA contém um elemento de verdade. O capitalismo português é fraco e atrasado, o que o faz temer a colonização por seus concorrentes mais poderosos. O fortalecimento do Estado aponta nessa direção: ter um instrumento forte para negociar melhor com os outros imperialismos e com a classe trabalhadora e o movimento colonial.

Embora seja de longe a mais importante, essa não é a única diferença entre Portugal, por um lado, e o Brasil e o Peru, por outro. Portugal está vivenciando o desenvolvimento de uma revolução operária e a crise do regime capitalista. No Peru, não houve nenhuma situação nos últimos dez anos, muito menos revolucionária ou mesmo pré-revolucionária.

O regime brasileiro é o produto de um estágio contrarrevolucionário.

Enquanto Portugal é sacudido por uma instabilidade que está chegando ao paroxismo, os dois países latino-americanos mencionados tiveram anos de estabilidade burguesa (onze, no caso do Brasil; sete, no Peru).

Novamente, descobrimos que a única semelhança entre os três casos é o fato de serem governados por militares. Mas, mesmo considerando a questão sob esse ponto de vista formal, a analogia de Maitan está errada. Vejamos o que nosso comentarista diz:

O único aparato sólido, a única força relativamente coerente, acaba sendo as forças armadas, que, da mesma forma, emergem como a força politicamente dominante. O MFA surgiu e foi formado nesse contexto, aparecendo como a verdadeira força política do país. (Ibid.)

Agora, vejamos a realidade. Entre o exército português, por um lado, e o exército peruano ou brasileiro, por outro, a única coisa que têm em comum é que em ambos os casos são exércitos e, portanto, a garantia última e decisiva do regime burguês. Os exércitos do Peru e do Brasil são exércitos normais em situações burguesas normais; são coesos e têm regras de disciplina hierárquica em seu interior.

O exército português está totalmente anarquizado, porque está imerso no processo de uma revolução. Todas as suas hierarquias foram rompidas. É um aparato muito “insalubre”, fragmentado, dentro do qual há um grupo – uma minoria entre os oficiais – que tenta, em seu próprio estilo e sob as condições impostas pela realidade, salvar a ordem burguesa e imperialista, mesmo que entre em conflito com os “comandantes naturais”.

Esse é o MFA no governo. Ele está lá, não porque é militar, mas porque goza da confiança do movimento de massas; não porque faz parte do aparato “sólido” do exército, mas porque esse aparato está em uma crise tão profunda que é incapaz de governar sem depender dos comandantes.

O camarada Maitan, no mesmo artigo, faz outra comparação tão infeliz quanto a que acabamos de considerar. Segundo ele, a situação portuguesa caracteriza-se “precisamente por uma crescente inadequação do aparelho político tradicional e pela inexistência de um partido burguês com uma base de massas suficientemente ampla para exercer a sua hegemonia, digamos, à maneira da Democracia Cristã italiana ou do Partido Conservador inglês”.

Livio Maitan não refletiu sobre o fato de que, em períodos revolucionários, os partidos burgueses nunca têm apoio de massa suficiente para exercer a hegemonia, precisamente porque esses são períodos revolucionários, nos quais as massas não confiam na burguesia e lutam contra ela.

Justamente um dos sintomas do avanço da crise revolucionária na Itália é a impossibilidade de a Democracia Cristã continuar exercendo a hegemonia. O mesmo acontecerá com o conservadorismo britânico assim que o proletariado britânico superar os surtos episódicos – dos quais a greve dos mineiros de 1974 foi um exemplo notável – para se lançar em lutas mais duradouras e generalizadas. Ambos os partidos foram capazes de governar em tempos normais, sem lutas populares e operárias generalizadas, mas não serão capazes de fazê-lo em um estágio revolucionário. Portanto, o que define a situação em Portugal não é apenas, como diz nosso comentarista, “uma profunda crise política”, mas uma violenta crise social e econômica.

Talvez o camarada Maitán responda que nunca teve a intenção de assimilar o governo português aos regimes militares do “Terceiro Mundo” e que se limitou a destacar algumas semelhanças formais. Se ele fez isso, a explicação seria frágil. Para os marxistas, as formas de governo sempre expressam uma determinada relação entre as classes.

Uma comparação entre formas puras, abstraindo seu conteúdo de classe, não é válida nem útil. Aceitamos analogias quando elas nos permitem especificar a definição de classe de um fenômeno; se elas não servem a esse propósito, são um exercício jornalístico e implicam o perigo, no mínimo, de confusão.

Talvez o camarada Maitán responda que nunca teve a intenção de assimilar o governo português aos regimes militares do “Terceiro Mundo” e que se limitou a destacar algumas semelhanças formais. Se ele fez isso, a explicação seria frágil. Para os marxistas, as formas de governo sempre expressam uma determinada relação entre as classes.

Uma comparação entre formas puras, abstraindo seu conteúdo de classe, não é válida nem útil. Aceitamos analogias quando elas nos permitem especificar a definição de classe de um fenômeno; se elas não servem a esse propósito, são um exercício jornalístico e implicam o perigo, no mínimo, de confusão.

3. Governo das forças armadas ou da frente popular?

Os pensadores e políticos liberais cunharam uma classificação superficial dos governos burgueses: civil e militar. Os marxistas, por outro lado, definem os governos não pelas “roupas” que seus funcionários usam, mas pelo papel que desempenham nas relações de classe. O arcebispo Makarios, embora usasse batina, não estava à frente de um governo eclesiástico medieval, mas era um produto da época imperialista atual e da luta pela independência de uma colônia britânica. No entanto, os uniformes dos governantes portugueses estão dificultando que muitos camaradas percebam, por trás deles, as verdadeiras relações que foram estabelecidas entre as classes e que levaram ao atual governo do MFA.

Vale a pena lembrar que, na época, uma dificuldade semelhante levou a definições muito curiosas do regime militar peruano e de seus imitadores bolivianos de curta duração (Ovando e Torres): foram rotulados de “reformismo militar”, sem levar em conta as relações entre as classes. Dessa forma, caíram em uma descrição jornalística vulgar, que definia o fenômeno por seus aspectos externos: os uniformes que os governantes usavam e as “reformas” (verdadeiras ou falsas, importantes ou transcendentais, pouco importava) que realizavam.

O curioso é que, ao olhar para os uniformes dos governantes lusitanos, eles ignoraram um fato realmente crucial: esse é o primeiro governo burguês da Europa Ocidental nos últimos 27 anos em que o Partido Comunista intervém.

E ele não o faz sozinho, mas também com o Partido Socialista.

Esta participação dos partidos dos trabalhadores (socialistas e comunistas), e especialmente do stalinismo, no governo português, é a característica decisiva do regime do MFA. Muito mais importante do que as dragonas do general Costa Gomes.

A intervenção no governo dos dois grandes partidos dos trabalhadores é uma consequência do ascenso revolucionário, que forçou a burguesia portuguesa a aceitar um governo compartilhado com essas organizações como a única maneira de paralisar e derrotar os trabalhadores. Assim, é constituído um governo de colaboração de classes, a serviço da manutenção do regime burguês em um momento muito difícil para ele. Muito difícil, entre outras coisas, porque a crise de suas forças armadas as torna incapazes de mantê-lo pela força.

A colaboração é necessária a partir do momento em que, se não tivesse o apoio ou o apaziguamento dos trabalhadores, o governo burguês não poderia durar um minuto no poder; tal é a magnitude do levante revolucionário.

Com exceção dos uniformes, o atual governo português é um típico governo de frente popular, de bloco governamental burguês-partidos operários. O governo de Torres na Bolívia era militar e frente-populista, com a colaboração e a participação das lideranças reconhecidas do movimento operário. O governo de Kerensky e o Kuomintang também eram governos de colaboração de classe e de frente popular, embora também não fossem parlamentares.

Nesse aspecto, portanto, não pode haver dúvida: o governo de Costa Gomes, as forças armadas e os partidos reformistas são um típico governo de colaboração de classes em um período revolucionário. Se há algo de novo nele, é o fato de ser um governo duplamente frente-populista, já que, tendo de lidar não apenas com o levante revolucionário do movimento operário, mas também com a mobilização revolucionária das massas coloniais, ele também colabora ou concilia com essas massas coloniais a fim de salvar o império. A confluência das revoluções colonial e operária deu origem a um governo duplamente colaboracionista, uma frente popular ao quadrado. Isso é realmente novo em termos das relações entre classes e movimentos revolucionários e seus exploradores, embora tenha o antecedente da demagogia kerenskista frente às nacionalidades oprimidas pelo imperialismo grã-russo.

A forma, a técnica e os mecanismos pelos quais essa colaboração entre os representantes da burguesia imperialista e as lideranças pequeno-burguesas do movimento operário e colonial é realizada são importantes. Mas não são decisivos; não mudam essa definição do atual regime português.

Para que os representantes da burguesia e os da classe trabalhadora colaborem, é necessária uma dobradiça, um intermediário. No caso português, esse intermediário é o MFA.

VI

Um governo kerenskista clássico

1. Os diferentes tipos de governos imperialistas

Quer aceitemos ou não as definições acima sobre o governo do MFA feitas por Horowitz e Maitan, devemos enfatizar a importância da tentativa. Os autores que citamos colocaram o dedo na ferida: definir o estágio da luta de classes e sua provável dinâmica é um pré-requisito para a formulação de uma política revolucionária correta, mas não é suficiente. É necessário especificar o caráter do regime e do governo que as massas estão enfrentando.

A política revolucionária não será a mesma em face de diferentes tipos de governos. Há uma política para uma situação pré-revolucionária com um regime e um governo democrático-burguês e parlamentar, como nos casos da França, Bélgica e Espanha na década de 1930. Há outra política para uma situação pré-revolucionária (ou muito próxima a ela) com um governo bonapartista pós-fascista, como na Espanha de hoje. Durante a situação revolucionária que se abriu em 1905, os bolcheviques tinham slogans (Abaixo o czar!, República!) que eram uma consequência do regime semifeudal que tinham de enfrentar. Em uma situação semelhante, na Alemanha em 1919, esses slogans não tinham razão de ser, pois os comunistas tinham de enfrentar uma república e não um monarca semifeudal.

Ao responder a essa necessidade, os companheiros dos países metropolitanos se deparam com um obstáculo: a inércia teórica causada pela realidade. Nos últimos trinta anos, a Europa Ocidental tem vivido sob o mesmo regime democrático-burguês (esse período se estende a duzentos no caso dos EUA). A realidade europeia não colocou nosso movimento em confronto com outros tipos de governos burgueses, com exceção de Portugal e Espanha (que poderiam facilmente ser considerados “fósseis” herdados de um período anterior) e, por alguns anos, da Grécia. Diga-se de passagem que esses são países “periféricos” na lista europeia. Esse longo período de monotonia política fez com que os reflexos teóricos do nosso movimento não estivessem acostumados a reagir a fenômenos novos, como o atual regime português.

Novos em relação ao último período vivido pela Europa Ocidental, mas não para o marxismo revolucionário, que já teve a oportunidade de observar regimes semelhantes durante as quase três décadas entre 1917 e 1945. Naquela época, regimes e governos que não eram democrático-burgueses proliferaram na Europa Ocidental. Portanto, basta recorrer ao arsenal teórico legado por nossos mestres para encontrar definições fundamentais na tentativa de caracterizar o governo do MFA e os futuros regimes que surgirão no continente europeu à medida que a revolução continuar avançando.

Partindo da crise crônica do imperialismo (que não encontra sua solução revolucionária por causa da traição da social-democracia e do stalinismo), Trotsky estudou e definiu quatro tipos de governos e regimes imperialistas: fascista, bonapartista, democrático-burguês e kerenskista. Para os países dominados pelo imperialismo, ele especificou um tipo particular de bonapartismo: o bonapartismo “sui generis”, como já vimos. E, no devido tempo, ele avançou a definição de bonapartista para o governo de Stalin, embora com uma base social essencialmente diferente: era um órgão do Estado operário.

2. Democracia burguesa e fascismo

No final do século passado, Engels apontou a tendência dos regimes burgueses em direção ao bonapartismo, de deixar o governo nas mãos da burocracia e do aparato militar. É verdade que essa tendência foi e ainda é uma constante. Entretanto, até a Primeira Guerra Mundial, o regime democrático-burguês floresceu e se expandiu nos países imperialistas.

No regime democrático típico, os problemas da burguesia são resolvidos no jogo eleitoral entre as várias seções da burguesia que buscam o apoio das classes média e trabalhadora. Além de seu caráter eleitoral, o apoio de classe desses regimes democrático-burgueses é o acordo com a classe média sobre a manutenção de um mecanismo democrático-eleitoral.

O desenvolvimento colossal do capitalismo e do imperialismo no século passado e nos primeiros anos do século atual foi a condição necessária para o florescimento dos regimes democrático-burgueses nos países imperialistas, possibilitando uma certa melhora na situação dos trabalhadores. Assim, garantiu-se que a concessão do direito de voto ao povo não se voltasse contra a burguesia, porque os trabalhadores votariam nos partidos burgueses ou nos reformistas. Naquela época, e como consequência dessas condições, surgiu a ideologia reformista que iguala capitalismo e democracia.

Desde o final da Segunda Guerra Mundial, um fenômeno semelhante (e uma ideologia semelhante) tem sido vivenciado nos países imperialistas como consequência do espetacular “boom” da economia capitalista nos últimos vinte e cinco anos.

No entanto, no período entre as duas guerras mundiais, a economia capitalista, longe de crescer, passou por uma crise profunda e prolongada. Basta lembrar a grave crise mundial de 1929-32 e a crise que a Alemanha e os países da Europa Central suportaram por anos a fio.

A partir de 1914, o mundo imperialista começou a sofrer uma crise econômica e social. À medida que a situação do capitalismo se tornava cada vez mais crítica, o regime democrático-burguês estava queimando seus fusíveis eleitorais. Não era mais possível que a classe média e a aristocracia trabalhista garantissem seus privilégios. As disputas entre as diferentes alas da burguesia tornaram-se mais agudas. As diferentes classes não aceitavam mais esperar pelas eleições e exigiam soluções urgentes. Se na Rússia a democracia burguesa (após uma curta vida de meses) foi substituída pela ditadura do proletariado, na Itália ela deu lugar a um novo tipo de governo burguês: o fascismo. O regime democrático “eterno” de um capitalismo “eterno” revelou então seu verdadeiro caráter transitório, de um período na vida do capitalismo. Seu verdadeiro papel como uma estação de passagem para um dos dois terminais antagônicos – fascismo ou comunismo – foi revelado.

Foi Trotsky quem fez a análise precisa do novo fenômeno fascista. Diante da crise econômica e do perigo da revolução dos trabalhadores, o capital financeiro foi obrigado a mobilizar a pequena burguesia e as classes mais baixas para esmagar a classe trabalhadora e suas organizações por meio de métodos de guerra civil e para estabelecer um estado totalitário que suprimisse não apenas a democracia dos trabalhadores, mas também todas as liberdades democráticas.

3. O bonapartismo imperialista

Mas o fascismo é um último recurso, caro e cheio de riscos. A burguesia nem sempre é obrigada a mobilizar a pequena burguesia. Em muitos casos, ela pôde contar com uma carta menos convulsiva: os partidos reformistas dos trabalhadores garantiram sua sobrevivência. Isso permitiu que a burguesia, às vezes, limitasse ou suprimisse diretamente o regime democrático sem chegar ao fascismo (muitas vezes como uma etapa preliminar na marcha para esse regime). Esse regime intermediário, nascido dos avanços da contrarrevolução burguesa e das derrotas das massas, foi apoiado pela burocracia e, fundamentalmente, pelas forças armadas, o que lhe confere seu caráter bonapartista.

Trotsky foi meticuloso em seu estudo desses regimes, típicos da Europa nas décadas de 1920 e 1930. “A decadência da sociedade capitalista coloca o bonapartismo – juntamente com o fascismo e seus pares – novamente na ordem do dia. (Leon Trotsky, “The Struggle Against Fascism in Germany” [A luta contra o fascismo na Alemanha], Pathfinder, Nova York, 1971, p. 3 29).

E, apontando a ligação entre essas diferentes formas de governo burguês, ele disse que:

Entre a democracia parlamentar e o regime fascista [há] uma série de formas transitórias (…) Com base na experiência alemã, os bolcheviques leninistas registraram pela primeira vez a forma transitória de governo que chamamos de bonapartismo. (Op. cit., p. 438).

Essas formas de governo são uma consequência indireta dos avanços fascistas:

O determinismo dessas formas transitórias tornou-se aparente, naturalmente não em um sentido fatalista, mas em um sentido dialético, ou seja, para os países e períodos em que o fascismo, com sucesso crescente, sem encontrar resistência vitoriosa do proletariado, ataca a posição da democracia parlamentar a fim de estrangular o proletariado. (Op. cit., p. 438).

E, mais uma vez, Trotsky insiste no fato de que o bonapartismo se baseia no recuo das massas e nos triunfos da contrarrevolução, e não na proximidade da revolução.

Sem essa condição básica, ou seja, sem que as energias das massas tenham sido previamente exauridas em batalhas, o regime bonapartista não pode se desenvolver. (Op. cit., p. 278).

Esses regimes, precisamente por causa de seu caráter de estações intermediárias na transição da democracia parlamentar para o fascismo, eram menos estáveis do que o bonapartismo pós-fascista. Esse último surge quando o fascismo no poder se separa (às vezes com os mesmos métodos de guerra civil que havia empregado anteriormente contra o proletariado) de sua ala pequeno-burguesa e passa a governar com o apoio do aparato policial-militar.

Assim, Trotsky distinguiu três tipos de regimes burgueses “normais” nessa época de crise: a democracia parlamentar, o bonapartismo pré e pós-fascista e o fascismo. Por “normal” queremos dizer que esses são regimes em que a estabilidade da burguesia está garantida.

4. O kerenskyismo

Mas o que aconteceu nos casos inversos, quando o movimento operário e de massas avançou em direção à revolução socialista? Trotsky reconheceu nesses casos um novo tipo de regime e governo: o kerenskista ou frente popular. Trata-se de uma forma extremamente instável, atolada em uma crise crônica, cuja duração só pode ser muito limitada e que constitui o último ou penúltimo tipo de governo burguês antes da revolução operária ou da reversão ao fascismo, ao bonapartismo ou à democracia burguesa.

“O regime existente na Espanha hoje (disse Trotsky em novembro de 1931 em relação ao governo socialista liberal) corresponde melhor à concepção de uma kerenskyada, ou seja, o último (ou penúltimo) governo de ‘esquerda’ que a burguesia só pode montar em sua luta contra a revolução.” (Leon Trotsky, The Spanish Revolution, Pathfinder, Nova York, 1973, p. 169).

E à crítica de Nin a esse conceito:

“Você diz que o regime na Espanha pode ser comparado ao ‘kerenskismo’, eu não acho. Foi a última carta da burguesia. Foi o anúncio de Outubro. Azaña anuncia Lerroux, ou seja, Miliukov, a grande burguesia” (Op. cit., p. 380)

Trotsky responde criticando a concepção mecânica de Nin, que acreditava que o kerenskismo levava inevitavelmente à revolução operária, apontando que, ao contrário, havia uma boa chance de que regredisse para regimes burgueses mais reacionários. Eis a citação:

“Tudo depende de como você vê o ‘kerenskismo’: como o último governo burguês, após o qual a burguesia deve perecer, ou como o último governo de esquerda, tão à esquerda quanto a burguesia pode avançar na luta por seu domínio, e que deve permitir que a burguesia se salve (e não morra) ou dê lugar a um governo fascista”. (Op. cit., p. 397).

Em um regime kerenskista, a contrarrevolução burguesa, incapaz de esmagar a revolução operária, mas ainda capaz de impedir seu triunfo, é obrigada a se conciliar com o movimento operário para impedir seu avanço. Vamos insistir em um exemplo: se considerarmos a democracia burguesa como a estação central de uma linha de trem, à medida que nos movemos para a direita, passamos pelas estações do bonapartismo; o ponto final é o fascismo. Mas, se fizermos o caminho oposto, passaremos pela estação do kerenskismo e, cruzando a fronteira de classe, chegaremos a outro terminal: o do Estado operário.

O kerenskismo é uma combinação de revolução operária e contrarrevolução burguesa. Mas uma combinação na qual o elemento dinâmico e decisivo continua sendo a revolução dos trabalhadores em ascensão. Exatamente o oposto de um regime bonapartista, no qual o fator dinâmico é a contrarrevolução burguesa e o movimento dos trabalhadores está na defensiva.

Ficamos surpresos com a resistência da maioria dos marxistas contemporâneos em aceitar essa definição, que aplicamos recentemente aos governos de Torres, na Bolívia, e Allende, no Chile. Essa resistência é ainda mais grave porque a atual crise do capitalismo torna inevitável o surgimento de tais governos. Acima de tudo, ficamos impressionados com o fato de que os camaradas do “The Militant”, que tão bem comparam as revoluções russa e portuguesa, não conseguem ver a semelhança entre os governos produzidos pelos dois processos.

É possível que a confusão decorra do fato de que os governos kerenskistas (assim como os parlamentares) tendem ao bonapartismo. Outro fato confuso é que tanto o bonapartismo quanto o kerenskismo são característicos de épocas de crise do capitalismo, em oposição ao governo democrático parlamentar.

5. Kerenskismo e bonapartismo

Mas a grande diferença entre esses dois regimes está na maneira como a burguesia aborda a solução da crise. Quando ela depende diretamente das forças armadas sem recorrer à conciliação com o movimento operário e de massas, quando tenta superar a crise com um governo de “direita”, de “ordem” e “força”, com um “árbitro inapelável”, estamos lidando com um típico governo bonapartista.

Quando ele tenta “conciliar”, obter a “colaboração da classe trabalhadora por meio de seus representantes” para realizar um governo de “esquerda” ou “socialista”, estamos diante de um governo de colaboração de classe: kerenskista.

Poderíamos resumir dizendo que a diferença entre um governo bonapartista e um kerenskista é a mesma que existe entre um juiz ou árbitro, que impõe suas sentenças com o peso de forças armadas disciplinadas, e um conciliador, que não tem forças armadas seguras para impor suas decisões ou “conselhos”.

Logicamente, esse conciliador ou intermediário entre as classes em luta tende, com todas as suas forças, a obter o poder que lhe permitirá dar às suas decisões o caráter de irrecorríveis e obrigatórias. Mas, enquanto não tiver sucesso (e, para isso, precisa derrotar a classe trabalhadora), continuará sendo um kerenskista e não um bonapartista.

Essa combinação de características de um tipo de regime em outro não é rara. Pelo contrário, é a regra na realidade, onde os tipos puros são a rara exceção. Assim, temos o bonapartismo e o kerenskismo com formas parlamentares, regimes democráticos parlamentares com fortes tendências bonapartistas e assim por diante.

No caso do kerenskismo, seu caráter instável exige que, para restabelecer o equilíbrio social burguês perdido, ele tenda a se tornar bonapartista. Trotsky, ao historicizar a revolução russa, aponta para essa característica do governo de Kerensky. Ele fala de “elementos do bonapartismo” ao definir Kerensky e Kornilov. É assim que devemos entender as referências que, em meio à luta contra Kerensky, Lênin e o próprio Trotsky fazem ao seu caráter “bonapartista”. Especialmente na “História da Revolução Russa”, mas também em outras obras suas, Trotsky deixa isso claro:

“O infortúnio dos candidatos russos ao papel de Bonaparte não consistiu no fato de não se assemelharem, nem ao primeiro Napoleão, nem mesmo a Bismarck: a história sabe como fazer uso de substitutos. Mas eles tinham contra si uma grande revolução que ainda não havia alcançado seus objetivos e ainda não havia esgotado suas forças (…) A revolução estava cheia de vida. Não há nada de incomum no fato de que o bonapartismo era fraco.(“History of the Russian Revolution”, idem, Vol. 1, p. 176).

Nada melhor do que o inimigo de classe para resumir a diferença entre Kerensky, de tendência bonapartista, e Kornilov, diretamente bonapartista. Trotsky cita um dos grandes industriais russos reclamando do governo kerenskista:

“Representantes dos trabalhadores foram chamados a Petrogrado e, no Palácio de Mármore, foram feitos esforços para persuadi-los, eles foram insultados, reconciliados com os industriais, com os engenheiros”. (Op. cit., Vol. 11, p. 299).

Esse grande capitalista estava ansioso para que o governo “conciliador” fosse substituído por outro governo (bonapartista) que, como árbitro supremo, daria ordens e imporia suas ordens aos rebeldes trabalhadores russos.

Como Trotsky relata, de acordo com os testemunhos de Miliukov, o mais importante político burguês russo, “a instalação de um homem forte (…) [Kornilov] foi concebida de acordo com outros procedimentos que não os de negociadores e acordos”. Outro comentarista disse a mesma coisa para explicar o apoio do Partido Cadete a Kornilov:

“As esperanças de um regime democrático, da vontade do povo, da Assembleia Constituinte [….] já haviam sido abandonadas: as eleições municipais em toda a Rússia já não haviam produzido uma maioria esmagadora de socialistas? …. Então, angustiado, ele começou a procurar um poder que fosse capaz não de persuadir [como o de Kerensky, observamos], mas apenas de ordenar. (Op. cit., Vol. II, p. 161, grifo nosso).

Não há dúvida: para o trotskismo, um regime conciliatório é diferente de um regime arbitral. O primeiro é kerenskismo, o outro é bonapartismo.

6. Governo de “esquerda”, colaboracionista de classe, frente popular ou kerenskista são a mesma coisa.

Originalmente, o kerenskismo recebeu seu nome de Alexander Kerensky, que governou a Rússia nos últimos meses do regime burguês antes da Revolução de Outubro.

Posteriormente, Trotsky usou esse termo para designar todos os governos de colaboração de classe dos quais participaram os partidos reformistas do movimento operário. Dessa forma, a definição de kerenskismo englobou não apenas os governos de coalizão de esquerda entre a burguesia e o proletariado em épocas revolucionárias, mas também aqueles em situações pré-revolucionárias, como foi o caso do governo da Frente Popular francesa em 1936 e os vários projetos semelhantes em outros países na década de 1920.

Em seu país [França], um período de kerenskismo está evidentemente se aproximando, o regime do Bloco Radical-Socialista é a primeira repercussão do período de guerra. (“The First Five Years of the Communist International”, Ed. Pluma, Buenos Aires, 1974, p. 190).

Mas o candidato mais provável no momento atual é Herriot, que está preparando o terreno e as condições para uma nova política, para o kerenskismo francês, porque a tomada do poder pelo ‘Bloco de Esquerda’ significa um governo de radicais e socialistas, que sem dúvida entrarão no Bloco. (“The First Five Years of the Communist International”, Pathfinder, Nova York, 1972, vol. 2, p. 212).

O aparecimento da classe trabalhadora no poder lançará sobre o Partido Trabalhista toda a responsabilidade pelos atos do governo e dará origem a uma época de kerenskismo inglês na era do parlamentarismo (Op. cit., p. 211).

Mas há muitos sintomas de que a burguesia será levada a recorrer a uma orientação reformista e pacifista antes que o proletariado se sinta pronto para o ataque decisivo. Isso significaria uma época de kerenskismo europeu. (Op. cit., p. 262)

(…) na Espanha o kerenskismo – a coalizão de liberais e ‘socialistas’ – (…)” (Leon Trotsky, “Writings, 1930-31”, Pathfinder, Nova York, 1973, p. 355).

Como vemos, Trotsky inclui na categoria de kerenskistas todos os governos de “esquerda” envolvendo partidos de trabalhadores: do projeto “esquerdista” na França em 1922, à coalizão liberal-socialista na Espanha em 1931, ao provável governo trabalhista na Inglaterra em um período pré-revolucionário. Uma orientação demagógica-esquerdista (“pacifista e reformista”) da burguesia europeia o faz prever um período de kerenskismo em escala continental.

Assim, ele define um kerenskismo que poderíamos chamar de “não-clássico”, já que, ao contrário do regime de Kerensky, ele não ocorre em um estágio revolucionário e com uma situação de duplo poder, mas pré-revolucionário; e não é promovido ao poder diretamente pelo movimento de massas, mas indiretamente, por meios eleitorais e parlamentares.

Mais tarde, depois de conhecer e estudar os governos de frente popular de Blum, Largo Caballero e Negrin, Trotsky foi na direção oposta: ele estendeu o termo “frente popular” ao governo de Kerensky, indicando assim que eles eram sinônimos.

De fevereiro a outubro, os mencheviques e os social-revolucionários, que representam um paralelo muito bom com os ‘comunistas’ e os social-democratas, estiveram na mais estreita aliança e em coalizão permanente com o partido burguês dos cadetes, junto com o qual formaram uma série de governos de coalizão. Sob o signo dessa Frente Popular, (…). (Leon Trotsky, ‘The Spanish Revolution’, idem, p. 220).

Pois muitas vezes se esquece que o maior exemplo histórico de uma Frente Popular é a revolução de fevereiro de 1917. (Op. cit. p. 20).

7. Um governo kerenskista clássico

Vamos usar o método de Trotsky para definir o governo do MFA, observando suas relações com a revolução e a contrarrevolução. Esse governo é produto de triunfos ou avanços contrarrevolucionários ou, ao contrário, de grandes triunfos revolucionários das massas? É uma consequência de estas terem sido “exauridas em batalhas” ou, ao contrário, de terem vencido essas batalhas, primeiro contra o fascismo e depois duas vezes contra Spínola?

O governo do MFA é a consequência de estágios de transição que são o oposto daqueles que dão origem aos governos bonapartistas. Ele é o resultado da queda do regime bonapartista pós-fascista e do curso ascendente da revolução dos trabalhadores, reflete os estágios de transição na marcha dessa revolução e as sucessivas maneiras pelas quais a burguesia, a classe média moderna e os partidos reformistas que atuam como representantes do proletariado se acomodam a essa marcha para retardá-la.

O próprio Horowitz ajuda a demolir a definição bonapartista com sua descrição da situação do movimento de massa. Repetidamente, ele aponta para a existência de grandes greves, manifestações, ocupações de fábricas e assim por diante. Na última tentativa de golpe da reação, em 11 de março, as massas triunfaram, o golpe foi derrotado e a oligarquia sofreu um duro golpe com a nacionalização dos bancos e das seguradoras. Desde a queda do regime fascista, os trabalhadores têm conquistado conquista após conquista. Horowitz admite isso no artigo mencionado acima, quando afirma a necessidade de “se defenderem contra qualquer tentativa de tirar os ganhos que obtiveram”.

Tudo coincide: a curva de mobilização é ascendente. Portanto, estamos muito longe da “condição básica” que Trotsky aponta como decisiva para o desenvolvimento de um regime bonapartista: que as energias das massas “tenham se esgotado”.

Como já foi dito, não negamos que o MFA tenha características bonapartistas, que ele tende ao bonapartismo. Mas a tendência predominante desde a queda do fascismo e a ascensão do governo do MFA tem sido o oposto: ascensão e conquistas cada vez maiores das massas.

As características bonapartistas se opõem a essa tendência; esse é o principal perigo que o movimento de massas português enfrenta atualmente. Mas um perigo é exatamente isso: um mal provável, não um mal presente. Esse perigo se tornará realidade somente após uma derrota das massas, ou um desgaste de suas forças em lutas parciais e desorganizadas, ou batalhas necessárias, mas não travadas. Mais uma vez, vemos que Horowitz esvazia uma fórmula política de seu conteúdo de classe e atribui um regime que só pode ser baseado nos triunfos da contrarrevolução a uma situação em que o movimento dos trabalhadores vem ganhando posições em uma relação de forças muito favorável em relação à burguesia.

A definição do governo português como bonapartista sofre de outra falha grave. O surgimento de um regime bonapartista (ou democrático, ou fascista, ou kerenskista) só pode ocorrer em meio a um levante, pois implica a passagem de um estágio da luta de classes para outro. É por isso que Trotsky diz: “a passagem de um sistema para outro significa a crise política” (Trotsky, “The struggle Against Fascism in Germany”, idem, p. 440, grifo do autor). Portanto, os camaradas que sustentam que o MFA é um governo bonapartista devem especificar qual foi a crise política que abriu a fase bonapartista: A queda de Caetano? A queda de Spínola? A derrota do golpe bonapartista em março? Precisamente essas três crises políticas foram triunfos da revolução, não da reação. Por outro lado, o regime de Caetano era bonapartista pós-fascista e Spinola era um candidato Bonaparte. Será que o MFA significa apenas uma mudança de guarda em um regime bonapartista que é uma continuação dos regimes de Caetano e Spínola? Se assim for, os defensores dessa tese deveriam, para serem coerentes, afirmar que nada mudou politicamente em Portugal desde 25 de abril de 1974 (exceto, talvez, a “força” do bonapartismo, que agora estaria mais fraca).

Existe, por outro lado, uma definição que se ajusta perfeitamente às características do regime do MFA. Exceto pelo fato de que, até agora, não produziu um Kerensky, o governo português tem todas as características do kerenskismo ou do governo de frente popular. É um típico governo colaboracionista de classe, fraco, instável, que esconde seu caráter burguês por trás da fraseologia socialista e de uma demagogia profusa em torno das medidas (sem dúvida progressistas) que foi forçado a tomar: nacionalização dos bancos e das empresas monopolistas. Finalmente, ele está estruturado como um governo de frente popular, com a participação de um partido burguês, dos partidos oportunistas e reformistas do movimento dos trabalhadores (o PS e o PC) e de uma organização político-militar que estabelece a relação entre o primeiro e o segundo.

Pelo fato de não ser o produto de uma combinação parlamentar, mas de uma revolução operária em andamento, além de estar em uma situação que contém importantes germes de poder duplo, o governo kerenskista do MFA é muito semelhante ao do próprio Kerensky.

Essa definição, assim como o descarte da definição bonapartista, não altera a posição de princípio que os marxistas revolucionários devem adotar em relação a esse governo. Ele não deixou de ser um governo burguês e, portanto, não devemos depositar a menor confiança nele, não devemos lhe dar o menor apoio político e não devemos participar dele em nenhuma circunstância. Ele é nosso inimigo de classe e nosso objetivo deve ser derrotá-lo por meio da revolução dos trabalhadores.

Mas é de importância decisiva para determinar a política que os marxistas revolucionários portugueses devem seguir em relação a ele. Lembremos o exemplo da linha férrea com dois terminais (fascismo e estado operário): se o governo for bonapartista, o país está indo para a direita e, portanto, é urgente frear e inverter a marcha. Se for kerenskista, é urgente pisar no acelerador para acelerar a marcha em direção à revolução socialista e livrar-se do governo contrarrevolucionário (o que não significa que marchemos sempre na mesma velocidade, mas adaptando-a às circunstâncias da jornada).

Outra característica do bonapartismo é que, sendo um governo reacionário quase puro, que não se combina nem se apoia em nenhum setor popular, ele se revela como o governo quase direto do capital financeiro. Ou seja, no caso de Portugal, o governo das sete grandes famílias. Isso teria sido indiscutível no caso de um triunfo de Spínola. Mas certamente não o é no caso do governo do MFA, que expropriou parcialmente a oligarquia financeira.

O bonapartismo também é um governo de ordem por excelência. Isso ocorre precisamente porque ele se baseia não no parlamento, mas na burocracia, na polícia e no exército. Mas, para poder contar com eles, precisa de uma polícia e um exército fortes e disciplinados, prontos para cumprir as ordens repressivas do regime. Em Portugal, ocorre exatamente o contrário. A antiga polícia política está praticamente desmantelada. No exército, reina um estado abertamente deliberativo. A própria existência do MFA (uma facção política pública) contribui objetivamente para sua divisão. Em algumas unidades, os soldados depõem seus comandantes e controlam a nomeação de seus substitutos. Em outras, são realizadas assembleias nas quais oficiais, suboficiais e soldados participam em pé de igualdade. Houve casos em que as tropas se recusaram a reprimir manifestações.

Nessas condições, o bonapartismo não é possível. E a crise e a desintegração do exército estão aumentando a cada dia. A única maneira de estabelecer um regime bonapartista é reconstruir primeiro a disciplina militar. Esse é o objetivo das tendências bonapartistas do MFA; os soldados e o movimento de massa estão marchando na direção oposta. Mais uma vez: até que as tendências bonapartistas triunfem sobre o movimento de massas, não pode haver bonapartismo em Portugal.

Não achamos necessário continuar. A definição do governo burguês como bonapartista não suporta a menor análise. Não há dúvida de que se trata de um governo kerenskista com elementos de duplo poder, ou seja, clássico.

VII
O Movimento das Forças Armadas

1. Kerenskismo institucionalizado

Todo regime kerenskista ou frentepopulista é composto por três elementos: a burguesia de um lado, os representantes pequeno-burgueses ou burocráticos do movimento operário do outro lado e, no meio, o intermediário ou conciliador.

Essa função foi cumprida por Kerensky na revolução russa.

O semi-cadete e semi social-revolucionário Kerensky não era, no governo, o representante dos sovietes, como Tseretelli ou Chernov, mas o elo entre a burguesia e a democracia. Tseretelli-Chernov representava um aspecto da coalizão. Kerensky era a personificação pessoal da própria coalizão. (Trotsky, “History of the Russian Revolution”, idem, Vol. II, p. 159).

É verdade que o governo português não mostra nenhum Kerensky. Falta-lhe aquela característica pessoal que o kerenskismo compartilha com o bonapartismo. Essa circunstância não impede a correção da definição que fundamentamos. Quando os trotskistas definiram o governo de Hindenburg como bonapartista, houve a objeção de que esse velho marechal era a própria negação de Napoleão, tanto psicológica quanto socialmente. Trotsky resolveu rapidamente a questão: ele esclareceu que a definição não se referia ao indivíduo, mas à função político-social que ele cumpria. O bonapartismo de Hindenburg era uma instituição, não um indivíduo. Este último, além de suas características pessoais, era um símbolo da função histórica que o bonapartismo cumpria na Alemanha.

Podemos aplicar o mesmo critério ao governo do MFA. Kerensky surgiu do grande partido pequeno-burguês russo, o Socialista Revolucionário; mas, ao mesmo tempo, ele sempre esteve ligado à burguesia liberal. E somente desse partido poderia surgir o “conciliador” que poderia atuar como intermediário entre a contrarrevolução burguesa e a revolução dos trabalhadores. Quase cinquenta anos de congelamento político impediram o surgimento e a consolidação de um partido pequeno-burguês em Portugal (e, dentro dele, de personalidades intimamente ligadas à burguesia): esse é o vácuo político que o MFA preenche, mal e bem. E assim compensa a inexistente personalidade conciliadora.

O paralelo entre Kerensky e o MFA é notável. A discussão sobre o bonapartismo nas páginas anteriores poderia ter ocorrido, em termos quase idênticos, em 1917. Trotsky aponta para as fortes tendências bonapartistas de Kerensky, tendências que não podem prevalecer devido à ascensão triunfante do movimento de massas, que culminou com a tomada do poder. E é exatamente por isso, pelo fato de as tendências bonapartistas não prevalecerem, que não se trata de bonapartismo, mas de outro tipo de governo: o kerenskismo, como já mencionamos.

Outra característica comum a Kerensky e ao MFA é a pouca confiança e simpatia que as respectivas burguesias têm por seus “salvadores”.

O fato de entenderem que o regime de Kerensky era uma forma inevitável de dominação burguesa para aquele período não excluía, por parte dos políticos burgueses, uma extrema insatisfação com Kerensky ou sua decisão de se livrar dele o mais rápido possível. Não havia diferença de opinião entre as classes proprietárias quanto à necessidade de opor uma figura de seu próprio meio ao árbitro nacional defendido pela democracia pequeno-burguesa (Op. Cit., T. II, p. 178).

É o recuo do movimento operário e de massas que eleva e sustenta o governo bonapartista no poder. Com o kerenskismo, ocorre exatamente o oposto: todo avanço do movimento operário e de massas o eleva cada vez mais:

Obedecendo à dialética e, ao mesmo tempo, à ironia maliciosa do regime conciliatório, as massas, por sua pressão, deveriam elevar Kerensky ao ponto mais alto antes de derrubá-lo. (Op. cit., vol. II, pp. 159-160.)

É exatamente isso que vem acontecendo com o MFA. Após a queda de Caetano, ele só conseguiu alguns ministérios secundários no primeiro governo provisório. Logo depois, o movimento colonial e as lutas de massa em Portugal confrontaram Spínola sobre o atraso na independência das colônias e a convocação de uma Assembleia Constituinte, levando à queda do primeiro-ministro Palma Carlos. O MFA impôs então um de seus próprios homens (o coronel Vasco Gonçalves) como primeiro-ministro. Quando a mobilização das massas levou à queda de Spínola, o MFA assumiu o controle total do gabinete. A derrota do “golpe” de 11 de março permitiu que o MFA conseguisse que os grandes partidos operários e o mais importante partido burguês assinassem o “pacto-programa” que deu ao Movimento o direito de controlar o governo por um período de três a cinco anos. Na mesma linha, Trotsky aponta que “poderes ilimitados foram dados ao governo de Kerensky, que foi estabelecido em julho” (Op. cit., Vol. I, Vol. II, No. 1). (Op. cit., Vol. II, p. 174.) Mas, assim como Kerensky, essa elevação acima das classes e dos partidos tem pouco valor prático, já que o MFA não tem o poder necessário para impor suas decisões.

Trotsky diz que “sem Kerensky, a política de conciliação teria sido o mesmo que a cúpula de uma igreja sem uma cruz”. (Op. cit., T. II, p. 159.) O MFA também coroa o edifício da impossível conciliação de classes em meio à tempestade revolucionária.

Por fim, vejamos outra característica que equipara o MFA a Kerensky. Trata-se de sua função desorganizadora e anárquica. O que quer que ele queira consertar, ele desorganiza, o que quer que ele queira construir, ele destrói. É exatamente o oposto do bonapartismo, o regime de ordem por excelência, embora todos (com exceção dos revolucionários) gostassem de ver o MFA atingir esse objetivo. Apesar dessa vontade comum da burguesia, da pequena burguesia e dos partidos reformistas da classe trabalhadora e dos esforços que fazem nessa direção, o objetivo está fora de seu alcance. A ordem só pode vir por meio do triunfo da revolução dos trabalhadores ou da contrarrevolução burguesa, e o kerenskismo é um intermediário entre essas duas forças gigantescas, um prisioneiro de ambas.

2. Caráter político e de classe

Quando “The Militant” faz sua analogia entre a revolução russa e a revolução portuguesa, esquece-se de que na primeira havia o Partido Socialista Revolucionário e Kerensky, que representava a pequena burguesia e desempenhava o papel de intermediário entre as massas e a burguesia imperialista. Essa omissão levanta algumas questões: quais partidos ou organizações em Portugal refletem a pequena burguesia, principalmente a classe média moderna, como fizeram os socialistas revolucionários russos? Ou a revolução portuguesa é a primeira revolução sem representação da pequena burguesia? E o atual governo é um governo de colaboração de classes sem um intermediário ou conciliador como Kerensky?

Se observarmos o cenário político português, veremos que tanto a burguesia quanto a classe trabalhadora estão claramente representadas. A primeira, em suas várias alas, pelo oficialismo reacionário, Spínola, Costa Gomes e os partidos políticos burgueses. A segunda tem dois representantes pequeno-burgueses ou, em outras palavras, burocráticos: o socialismo e o stalinismo. A pequena burguesia, por outro lado, aparentemente não tem uma organização específica para representá-la. Isso não é por acaso: todos os partidos portugueses são, de certa forma, novos, já que os cinquenta anos de fascismo não lhes deram oportunidade de experimentar quadros e lideranças. Isso é duplamente verdadeiro no campo do “povo”. O PC e o PS basearam sua ideologia e seu aparato em fatores externos: Moscou e o stalinismo europeu, no primeiro caso; a social-democracia europeia, no segundo. Não é por acaso que eles são os representantes de uma classe internacional – e de suas deformações. Mas a pequena burguesia portuguesa não é uma classe internacional. E seus representantes pequeno-burgueses são – necessariamente devem ser – o produto nacional mais genuíno, o mais atrasado, sem vínculos com os aparatos internacionais. Essas também eram as características dos socialistas revolucionários russos.

Parece-nos que a pequena burguesia portuguesa, por falta de tempo histórico, teve de improvisar sua representação política, distribuindo-a entre várias organizações não específicas. Coube, em grande parte, ao partido socialista e, em menor parte, aos partidos colaterais do stalinismo. Esse vácuo forçou a improvisação de uma organização política específica dentro do exército, representando principalmente a classe média moderna, o MFA. Na Rússia, os oficiais “progressistas” e de baixa patente se filiaram ou responderam a um grande partido pequeno-burguês, o Socialista Revolucionário, organizando-se em células ou filiais desse partido dentro do exército. Em Portugal, a inexistência de um partido de classe média tão grande fragmentou a representação da classe média em três ou quatro setores políticos, mas forçou-a a se organizar de forma unitária dentro do exército.

Como o governo português se sustenta em duas bases: a estrutura e a oficialidade das forças armadas em crise e a concordância e o apoio dos partidos reformistas, há uma divisão de tarefas entre estes últimos e o MFA. Foi o mesmo que aconteceu na Rússia entre os mencheviques e os socialistas revolucionários, por um lado, e Kerensky, por outro. Os partidos reformistas portugueses apaziguam as massas e tentam desmobilizá-las, assim como os mencheviques e os socialistas revolucionários fizeram na Rússia. O MFA-Kerensky atua como uma ponte-conciliadora entre elas e os órgãos políticos e militares burgueses (partidos, alto comando e corpo de oficiais).

O MFA desempenha esse papel na ausência de órgãos ou personalidades políticas “tradicionais” que possam assumir essa função e devido às características peculiares do “Fevereiro” português. Não é por acaso que Kerensky surgiu da ala direita dos socialistas revolucionários, praticamente da fronteira entre eles e a burguesia liberal. Ele era o homem cuja prática política era a de uma ponte entre as massas revolucionárias – representadas na época pelas várias vertentes de seu partido – e a burguesia liberal cadete. Mas, em Portugal, o fascismo fez com que o “Fevereiro” ocorresse sem a existência de grandes partidos históricos das diferentes classes.

Essa é uma das razões pelas quais, em 25 de abril, o fevereiro português não encontrou sua expressão nos “socialistas revolucionários” e nos “cadetes” portugueses, mas em seus substitutos militares. Se o “golpe” de 25 de abril foi essencialmente militar, suas personalidades e organismos também devem ter sido militares. E, se os oficiais inferiores que organizaram o MFA desempenharam o papel dos SRs e Spínola o dos cadetes, Vasco Gonçalves, juntamente com o próprio MFA, substituiu Kerensky. Não é por acaso que Vasco Gonçalves é um tenente-coronel, não um membro dos escalões inferiores. Seu papel como ponte entre esta e os generais, sua localização na fronteira, no limite entre eles, colocava-o em uma excelente posição para atuar como intermediário.

E como intermediário no setor em que a crise eclodiu, as forças armadas, como Kerensky havia sido na estrutura mais ampla das relações entre os partidos e a revolução russa, quando a crise social eclodiu. Daí para a ascensão de um Kerensky entre os partidos, as classes e as frações militares portuguesas como um todo, havia apenas um passo. Um passo que foi dado pelo MFA e pelo seu líder Vasco Gonçalves. Como consequência desse papel intermediário, o próprio MFA tornou-se uma caixa de ressonância para seus interlocutores, polarizando-se em várias tendências e vivendo de crise em crise como resultado desses antagonismos.

Esse caráter e função de classe é a única explicação coerente para a história, a ideologia e a política do MFA. A outra definição, apoiada por muitos camaradas, de que o MFA é um órgão ou representação direta da burguesia imperialista, esbarra em contradições insuperáveis. Como explicar o atrito e a luta entre Spínola, que agrupou toda a burguesia em torno de si após o golpe de 25 de abril, e o MFA, que representava a mesma burguesia? Será que essas duas alas da mesma burguesia estão se enfrentando em tentativas de guerras civis, se colocando em “putsches”, brigando e se perseguindo, e enquanto um foge do país, o outro está “fazendo demagogia”? Tudo isso parece uma partida de xadrez jogada pela mesma pessoa: a burguesia imperialista. Mas essas contradições insolúveis são resolvidas (e o caráter do MFA, a partir de sua história de oscilações entre a burguesia e a revolução, com choques em ambas as extremidades, torna-se claro) assim que o consideramos como a representação política da classe média moderna dentro do exército, elevada a ter de desempenhar o papel de conciliador entre a revolução operária e colonial em curso e a burguesia portuguesa e suas representações políticas e militares.

Essa definição de classe não significa, de forma alguma, que depositamos a menor confiança no MFA. Pelo contrário, a analogia com Kerensky é aqui mais útil do que nunca. Assim como Kerensky, o MFA é o representante de uma classe média imperialista, que prosperou e quer continuar a prosperar com a exploração das colônias. Assim como os socialistas revolucionários russos queriam continuar “até a vitória” a guerra de pilhagem do imperialismo russo. E eles lucraram e querem continuar lucrando, também, com a exploração da classe trabalhadora; portanto, são duplamente reacionários.

As contradições que abalam o MFA simplesmente expressam o caráter contraditório da classe que ele representa: com seus métodos plebeus e “socializantes”, ele é a ferramenta mais formidável à disposição da burguesia imperialista portuguesa no momento atual. Se ele desempenha um papel tão proeminente na estratégia da burguesia, isso se deve à extrema fraqueza da burguesia e do império que ela defende. Essa fraqueza, que levou o exército a entrar em crise, deixou a classe média imperialista como o único baluarte contra a revolução, não apenas em Portugal, mas também no império. A burguesia imperialista não terá uma ferramenta melhor até que consiga disciplinar o exército ou desenvolver um movimento fascista.

3. Duas interpretações perigosas do MFA e a crise nas forças armadas

Várias interpretações do fenômeno do MFA foram apresentadas, algumas delas extremamente perigosas.

Alguns argumentam que se trata de “um novo fenômeno”. É verdade que o MFA, como todos os fenômenos, tem algo de novo, mas é muito grave afirmar que algo é novo para evitar uma análise de classe. Precisamente do ponto de vista das relações de classe, não há nada de essencialmente novo no MFA: ele deve ser explicado pelo impacto revolucionário e pela dinâmica das três classes fundamentais da sociedade nas forças armadas. Esses camaradas estão confusos com o fato real da crise e da dualidade de poder nas forças armadas portuguesas e atribuem essa situação ao MFA, quando, na verdade, ele é a expressão disso. Assim como muitos “esquerdistas” foram a favor da Espanha republicana e de seu governo, ou da revolução russa de fevereiro e de seu governo, ficando extasiados com a revolução em bloco, incluindo o duplo poder, alguns camaradas fazem o mesmo com a revolução portuguesa, colocando um sinal de igualdade entre o MFA e as conquistas das massas. Dessa forma, escondem as funções claras e precisas do MFA: ser o agente conciliador da contrarrevolução imperialista. Eles se dissolvem no fato certo de que, sem a revolução dos trabalhadores e o poder duplo no exército, não haveria MFA, o fato igualmente certo de que o MFA é a ferramenta contrarrevolucionária pequeno-burguesa da burguesia imperialista para impedir a revolução dentro e fora do exército.

Mas há outra interpretação oposta, também incorreta e perigosa: a daqueles que defendem que MFA e imperialismo são a mesma coisa, ou seja, que o MFA seria a expressão dentro do exército da burguesia imperialista portuguesa. Esta definição tem um mérito: apela à análise de classe. Mas padece de um defeito, oposto e simétrico ao anterior: também parte do fato certo de que o MFA faz parte do oficialato de um exército burguês e imperialista e que seu governo é imperialista, mas dissolve nessa generalidade o fato igualmente certo de que não é a burguesia imperialista, mas seu agente pequeno-burguês, e que constitui um governo de colaboração de classes, no qual atua como intermediário entre seus patrões e o movimento operário e colonial.

Trotsky tem repetidamente apontado que as forças armadas expressam de forma altamente sintética o caráter da sociedade em que existem. Portugal não escapa a essa regra. A ala de Spínola do exército refletia, sem dúvida, a burguesia portuguesa. Hoje, a oficialidade reacionária, que ainda é majoritária e que – de acordo com o soldado trotskista – está organizada e distribui panfletos nos quartéis, ainda a reflete. Ele continuará a existir e a responder à burguesia imperialista. Outra ala da burguesia concordou em colaborar com o MFA e com os partidos dos trabalhadores para impedir a revolução. Acreditamos que quem melhor reflete essa ala, que é muito fraca, composta mais por ideólogos do que por grandes burgueses propriamente ditos, uma verdadeira sombra da burguesia, é Costa Gomes, amigo de Spínola. É o próprio Costa Gomes que é responsável por estabelecer a ligação entre esse setor e o MFA. Talvez haja alguns oficiais que respondam a Costa Gomes. Se assim for, não temos conhecimento de que constituam um setor importante ou que estejam organizados. Eles seriam algo como a “sombra militar” da “sombra da burguesia” representada pelo atual presidente de Portugal.

O MFA é diferente dos oficiais abertamente spinolistas, reacionários e representativos da burguesia e da ala de Costa Gomes. Horowitz, no artigo citado acima, reconhece isso quando nos diz que “apesar das diferenças políticas do MFA com a ditadura e de uma ideologia vagamente populista ou esquerdista por parte de alguns de seus membros, o MFA não era um grupo verdadeiramente independente. Os oficiais do MFA constituíam uma ala do exército imperialista português. Eles nem sequer buscavam uma ruptura total com os oficiais superiores reacionários”. (Ênfase adicionada). Essa é uma boa imagem ou descrição, mas não aprofunda a análise. Ela não diz quais interesses de classe as várias alas, incluindo o MFA, refletem.

Para nós, nada pode ser entendido se não partirmos do pressuposto de que o MFA é tanto um produto quanto um gatilho e acelerador da crise do exército imperialista derrotado na guerra colonial, ou seja, uma manifestação da luta de classes. A partir daqui, podemos continuar. Todos concordam que se trata de uma organização dos escalões inferiores (com alguns oficiais de alto escalão) e que há três tendências dentro dela: os pró-stalinistas, os pró-socialistas e os socialistas independentes. Apesar disso, insiste-se que ele é um mero agente ou representação direta do alto comando ou da burguesia imperialista. Mas essa definição não pode explicar, entre outras coisas, sua briga com a ala de Spínola, que também representa a burguesia imperialista. Acreditamos que Trotsky nos dá a resposta quando descreve o impacto da revolução russa sobre o exército:

“[ . . . ] a guarnição de Petrogrado seguiu os trabalhadores. Após o triunfo, ela foi chamada a participar das eleições dos sovietes. Os soldados elegeram com confiança aquele que era a favor da revolução, contra o oficialismo monárquico, e que sabia como expressá-la bem; esses eram os escribas, os médicos, os jovens oficiais do período de guerra do campo intelectual, os pequenos oficiais militares, ou seja, o estrato inferior da “nova classe média”. Quase todos eles foram inscritos, a partir de março, no partido dos Social Revolucionários, que, por causa de sua ideologia vaga, correspondia melhor à situação social intermediária e às limitações políticas desses elementos” (Trotsky, ‘History of the Russian Revolution’, idem, Vol. I, p. 206).

Para Trotsky, portanto, todos os oficiais inferiores refletiam o estrato inferior da “nova classe média” e eram filiados ao partido pequeno-burguês por excelência, “os socialistas revolucionários”, que também incluía alguns oficiais superiores. Acreditamos que essa definição se encaixa muito bem no fenômeno do MFA. Trata-se de um órgão dos oficiais inferiores, composto por “oficiais militares de baixa patente” e – nesse aspecto, a semelhança é notável – por “jovens oficiais do período de guerra”. A grande diferença, como já vimos, está no fato de que, na ausência de um grande partido de sua classe, eles se organizam em uma fração do exército. Mas essa fração “socializante” também responde “e por sua ideologia vaga” à “situação social intermediária” e à “limitação política” de seus membros.

Aqueles que insistem em assimilar o MFA ao alto comando ou à burguesia imperialista não levam essa definição às últimas consequências: eles deveriam dizer que o MFA se assemelha aos oficiais kadetes do exército russo durante a revolução. Mas eles não ousam ir tão longe e optam por uma comparação mais engenhosa: eles o comparam aos oficiais republicanos na guerra civil espanhola. Embora neste último caso tenha se tratado da construção de um exército burguês e em Portugal da sua reconstrução, a comparação nos parece adequada. Se eles se referem ao corpo de oficiais improvisado das milícias, a comparação está correta. Os oficiais do 5º Regimento, do POUM e do PS estavam se esforçando para impor uma disciplina militar que lhes permitiria reorganizar um exército burguês viável. Enquanto isso, os partidos aos quais eles respondiam estavam empenhados em frear a revolução fora do exército.

Mas essa oficialidade podia cumprir esse papel de convencer, organizar e disciplinar os milicianos porque era stalinista, socialista ou poumista; ou seja, porque não era uma oficialidade diretamente burguesa, mas os representantes pequeno-burgueses da classe trabalhadora. Era ofrentepopulismo, a colaboração de classe, dentro do exército em sua forma mais pura. O oficialismo dos partidos dos trabalhadores disciplinou os milicianos para que se submetessem à sombra militar da burguesia espanhola deixada no campo republicano: Miaja e companhia. O mesmo papel está sendo desempenhado pelo MFA, só que, como já vimos, dividindo tarefas com os partidos reformistas: os últimos atuam no movimento de massas, os primeiros no exército.

Mas não acreditamos que a comparação se refira aos oficiais da milícia espanhola. Ninguém pode afirmar que os oficiais poumistas, socialistas e stalinistas eram os mesmos que o alto comando do exército espanhol ou da burguesia espanhola. Sem dúvida, ele está se referindo aos oficiais do exército espanhol que permaneceram do lado da República. Se for esse o caso, trata-se de uma analogia absolutamente falsa. Os oficiais republicanos não estavam organizados politicamente e não faziam parte de um exército em crise. Eles estavam segregados do exército espanhol que, sob o comando de Franco e sem nenhuma crise interna, estava lutando contra a República. Os oficiais republicanos não eram um fenômeno político-social, assim como seus equivalentes em Portugal, aqueles que poderiam concordar com Costa Gomes. Eram exceções individuais: a sombra militar da sombra política da burguesia no campo republicano. O MFA, por outro lado, tal como os oficiais da milícia, tenta reconstruir o exército burguês para disciplinar o governo burguês e, dentro do exército, o alto comando.

VIII
As crises do regime e o projeto bonapartista do MFA

1. Um regime em crise permanente

Os defensores do caráter bonapartista do regime português deparam-se com uma contradição insuperável. O bonapartismo é, por definição, um regime de ordem, capaz de arbitrar entre os diferentes setores sociais e tornar obrigatória a sua arbitragem. Nada poderia ser menos parecido com o governo do MFA, que vive em um estado de crise permanente e, em pouco mais de um ano, passou por quatro ou cinco crises. Em geral, nossos autores se abstiveram de caracterizar politicamente o significado dessas crises, limitando-se a dizer que elas existiram e que foram derrotadas. A lei de Trotsky, de que a passagem de um regime para outro provoca uma crise política, não foi levada em conta por esses camaradas. Eles não se fizeram esta simples pergunta: que tipo de regimes ou projetos de regimes entraram em luta para provocar essas crises? Outros são ainda mais curiosos, pois acham que as tentativas de golpe de Spínola foram…. bonapartistas. Se seguirmos as leis da lógica, devemos concluir que foram golpes bonapartistas com o objetivo de derrubar um governo bonapartista e substituí-lo por outro, também bonapartista.

Não podemos evitar uma comparação dolorosa. O stalinismo do Terceiro Período definiu todos os governos e partidos burgueses como fascistas. Trotsky apontou ad nauseam o quão ridículo parecia o quadro stalinista de governos fascistas lutando contra as tentativas de golpe dos fascistas.

Teria sido cômico, se não tivesse sido trágico: os militantes comunistas não conseguiram entender do que se tratava e, consequentemente, foram incapazes de lutar contra o fascismo real, que eles nem sequer distinguiam dos outros partidos burgueses e da social-democracia. Infelizmente, esse método, que foi responsável pelas grandes derrotas sofridas pelo movimento dos trabalhadores há quarenta anos, agora está de volta à moda em nossas fileiras. Tudo é bonapartismo: tanto a tentativa de golpe de Spínola quanto o governo contra o qual ele foi dirigido. Assim, nossos partidos e militantes ficam desarmados para enfrentar o perigo real: na época, Spínola; hoje, o curso do governo do MFA.

A crise crônica do governo do MFA e suas crises agudas cada vez mais frequentes mostram claramente que ele não é um governo bonapartista. E, além disso, elas apontam inequivocamente para a direção certa. Há apenas uma forma de governo burguês que tem isso como característica essencial (não episódica): o kerenskismo.

Isso ocorre porque o kerenskismo é uma forma “anormal” de governo burguês, uma consequência do surgimento da revolução dos trabalhadores e de sua própria impotência. Em qualquer regime capitalista normal, as massas mobilizadas não desempenham nenhum papel. No regime democrático-parlamentar, elas intervêm apenas indiretamente, por meio do voto que dão de tempos em tempos. A primeira coisa que as constituições burguesas mais democráticas estipulam é que o povo governa somente por meio de seus representantes. Nos regimes bonapartista e fascista, até mesmo a ficção “representativa” é geralmente dispensada, e o governo é exercido diretamente pela burocracia. Em ambos os casos, um papel passivo é reservado às massas: o bonapartismo peronista “sui generis” cunhou uma frase ilustrativa na Argentina: “de casa para o trabalho e do trabalho para casa”.

A marca revolucionária vira isso de cabeça para baixo. As massas saem às ruas e intervêm plenamente na vida política do país, criando de fato, através de sua mobilização, um poder paralelo ao exercido pelo Estado burguês. Esse poder da classe trabalhadora ainda não conseguiu, em Portugal, dar forma aos seus organismos soviéticos, mas mesmo assim, por mais espontâneo e molecular que ainda seja, mantém o poder da burguesia em constante controle.

Dois poderes opostos se anulam (pelo menos em grande parte). O resultado é um vácuo político que a burguesia não pode tolerar. O kerenskismo é um regime cuja normalidade é a desordem: é por isso que ele não pode durar muito. Ele deve ser substituído por uma nova ordem burguesa (parlamentar, bonapartista ou fascista) ou pela ordem socialista da revolução proletária.

Daí a preocupação e a urgência com que a burguesia busca reconstruir um regime burguês normal. As crises do governo português são o resultado dessas tentativas. Já citamos Trotsky: “A passagem de um sistema para outro significa uma crise política”. Cada crise do regime português foi a expressão da tentativa contrarrevolucionária de passar “de um sistema a outro”, que as massas impediram e que, contraditoriamente, fortaleceu a revolução e enfraqueceu a contrarrevolução, aguçando as características kerenskistas do governo. Não é coincidência que as crises mais sérias até agora tenham sido as de setembro e março, quando Spínola tentou impor uma mudança de regime.

A crise desencadeada pela atual luta entre o MFA e o PCP, por um lado, e o PS e o PPD, por outro, é o resultado de outra tentativa semelhante da ala bonapartista do MFA (com o apoio do PC) de superar o kerenskismo impondo um regime bonapartista.

2. Spínola contra o bloco MFA-PC-PS

Já apontamos como as primeiras tentativas, por parte da burguesia portuguesa propriamente dita, de superar rapidamente o regime kerenskista foram as três tentativas de Spínola de impor um governo forte. Embora seu projeto político fosse bonapartista, era muito provável que fosse objetivamente orientado para o fascismo, na medida em que ele tentava alcançar a mobilização contrarrevolucionária da pequena burguesia, apelando para a famosa “maioria silenciosa”.

O desastre sofrido por esse plano após a derrota de Spínola e a fuga do país de um grande número de capitalistas fez com que esse projeto não seja, no momento, eminentemente político – não há ninguém com força para levá-lo adiante – mas econômico. Trata-se de sabotagem econômica, por meio da desorganização da economia, da fuga de capitais, do fechamento de fábricas, de demissões, de aumentos de preços e assim por diante. Tudo isso, combinado com o isolamento econômico ao qual Portugal está de fato submetido pelo imperialismo, criou uma situação caótica e insuportável que, por sua vez, cria as condições para a ascensão do fascismo, à medida que o desespero começa a se espalhar nas fileiras da pequena burguesia. Ao mesmo tempo, o retorno dos colonos que fogem da revolução nos territórios africanos acrescentará novos contingentes à possível base de massa do fascismo, e o mesmo pode acontecer até mesmo com a classe trabalhadora desempregada.

Isso não quer dizer que o surgimento do fascismo seja inevitável, embora ele se torne mais provável quanto mais a crise se prolongar por falta de uma saída revolucionária para a classe trabalhadora. O MFA, como já vimos, se opôs à tentativa espinosista e, no momento, não está embarcando em uma variante fascista. Mas não se deve descartar a possibilidade de que, como qualquer movimento pequeno-burguês, uma ala possa surgir em seu meio orientada nessa direção, refletindo precisamente, se isso acontecer, a virada para a contrarrevolução fascista de setores da classe média. De qualquer forma, essa não é uma perspectiva para o futuro imediato.

Spínola foi confrontado não apenas pelas massas, mas também pelo bloco governamental MFA-PC-PS. Esse bloco da pequena burguesia democrática se opôs às tentativas de Spínola de impedir a Assembleia Constituinte e a negociação da independência política das colônias. Mas, ao se opor ao pretenso ditador, cada um dos componentes desse bloco o fez em defesa de seus próprios interesses específicos e de diferentes pontos de vista:

O Partido Comunista, o principal oponente de Spínola, não tinha chance de continuar participando de um governo baseado na derrota do movimento dos trabalhadores. Além disso, a política de Spínola de negociações imediatas com o Mercado Comum Europeu dificultava ainda mais sua participação no gabinete. Mas havia também outro motivo subjacente, talvez mais importante do que a perda das pastas ministeriais. Se Spínola tivesse sido bem-sucedido, a saída de Cunhal do gabinete não teria sido tão tranquila quanto as saídas de Thorez e Togliattí dos gabinetes francês e italiano do pós-guerra. Cunhal não teria continuado a desempenhar o papel de “oponente de Sua Majestade” em um regime parlamentar tranquilo. Pelo contrário, a vitória de Spínola quase certamente teria sido o sinal para que a “maioria silenciosa” – ou seja, a pequena burguesia reacionária – iniciasse uma “caça às bruxas”, especialmente contra os comunistas, o que significaria um regime, no mínimo, com características fascistas.

O Partido Socialista, por sua vez, precisava – e precisa – do parlamento e das eleições da mesma forma que os pulmões precisam de ar para respirar. O PS não é nada sem um regime parlamentar. É por isso que, apesar de seu acordo com Spínola sobre a rápida entrada no MCE, ele tinha com ele um desacordo tático – o parlamento – que, para um partido reformista, é uma questão de princípio.

Por fim, embora o MFA, liderado por Vasco Gonçalves, estivesse principalmente de acordo com os partidos reformistas, tinha uma tendência spinolista de certa importância em seu seio. Mais uma vez, a semelhança com Kerensky é óbvia. É bem sabido como Kerensky, até certo ponto, fez o jogo de Kornilov. O mesmo aconteceu com o MFA e Spínola. Essas dúvidas e oscilações do MFA entre os partidos reformistas e Spínola seriam uma característica constante do MFA. São as hesitações – para deter e derrotar a revolução – entre as variantes democrático-burguesas e bonapartistas. Os “putschs” de Spínola e as mobilizações colossais do movimento de massas que foram desencadeadas contra eles empurraram o MFA para a frente unida com os partidos reformistas, mas sem abandonar seu fervor pelo projeto bonapartista de controlar definitivamente o movimento de massas.

Durante todo esse estágio de unidade do bloco pequeno-burguês MFA-PC-PS, o programa e a ideologia comuns eram democrático-burgueses. O objetivo era conseguir um sistema parlamentar, começando pela Assembleia Constituinte, que canalizaria o levante revolucionário para o beco sem saída da democracia burguesa. As instituições democráticas burguesas não são absolutamente progressistas. Elas são progressistas enquanto a mobilização não tiver alcançado um nível revolucionário ou criado órgãos de poder. Elas deixam de ser assim, tornam-se relativamente contrarrevolucionárias ou relativamente progressistas, quando a luta de classes avança além dos limites democrático-burgueses. Esse é o caso de Portugal hoje, com seus órgãos de duplo poder: as comissões de trabalhadores, soldados e trabalhadores em geral.

Esse plano parlamentar contrarrevolucionário tem o apoio, como Horowitz corretamente aponta, das seções mais lúcidas da burguesia, que o veem como a melhor possibilidade de congelar a luta de classes, sem recorrer a métodos sangrentos que, além disso, não estão agora em posição de aplicar e cujos resultados seriam imprevisíveis, uma aposta de tudo ou nada. É um plano semelhante ao que foi aplicado para deter a revolução na Europa Ocidental do pós-guerra. Mas ele é incomensuravelmente mais fraco, apesar do fato de que os partidos eleitoralmente mais fortes, o PS e o PPD, deram a ele seu apoio incondicional.

As debilidades desse plano residem em vários fatores. Um deles é que, ao contrário da Europa Ocidental do pós-guerra, a burguesia portuguesa não tem a garantia de que a presença das tropas aliadas de ocupação significava ali, especialmente o exército americano vitorioso, disciplinado e sem o menor indício de crise interna, exatamente o oposto do atual exército português. Portugal também não tem a forte tradição parlamentar da Europa Ocidental. Mas essas não são as únicas fraquezas do plano parlamentar. Há outros.

Em primeiro lugar, a força do ascenso revolucionário do movimento operário e de massas. Em segundo lugar, a falta de órgãos burocráticos fortes do movimento dos trabalhadores, como havia na França e na Itália, onde o stalinismo conseguiu controlá-lo rigidamente. Em terceiro lugar, o fato de os partidos dos trabalhadores serem a maioria significava que os PCs nesses países eram a favor do parlamentarismo; o oposto é o caso hoje em Portugal. Finalmente, há dois outros fatores que tornam o projeto da contrarrevolução parlamentar ainda mais fraco. São eles, por um lado, que qualquer regime democrático-burguês enfraqueceria ainda mais a já fraca burguesia portuguesa diante da investida das grandes potências imperialistas e, por outro lado, que a crise geral do imperialismo torna cada vez menos viável esse tipo de regime, que precisa de um mínimo de estabilidade econômica e social para se manter.

A contrarrevolução parlamentar pode trazer consigo, por causa de todos esses fatores, um sério perigo para a própria burguesia: que o movimento dos trabalhadores e das massas, impulsionado por um vertiginoso ascenso revolucionário, use a abertura democrático-parlamentar a seu serviço, escapando de todo controle eleitoral, precisamente por causa da fraqueza da burguesia e de seu próprio aparato burocrático,

3. O ascenso revolucionário faz com que o MFA adote uma política e uma ideologia contrarrevolucionárias.

Diante da fraqueza do projeto democrático burguês E da intensificação da revolução operária e colonial, o MFA tem se voltado para uma política bonapartista contrarrevolucionária. Está tentando impor um governo bonapartista cujos objetivos fundamentais são: eliminar todos os germes do duplo poder, arrancar das massas as liberdades democráticas conquistadas e impedir a conquista de novas liberdades; continuar a controlar o império de forma neocolonial (principalmente Angola); garantir uma marcha ascendente para a produção capitalista; e negociar, a partir de uma posição de força, sua parceria com os imperialismos maiores.

A razão fundamental para esta mudança no MFA reside nas contradições muito acentuadas em Portugal, que tornam ainda mais premente a necessidade de o MFA se transformar em um governo forte, de se “elevar” acima delas. O MFA no governo tem de enfrentar um aumento colossal do movimento de trabalhadores e soldados, cristalizado em formas embrionárias de duplo poder, e a revolução colonial angolana. Por outro lado, como Portugal é um imperialismo senil e atrasado, tem de enfrentar e negociar com as potências imperialistas mais fortes que tentam usar sua crise e decadência para se tornarem seus principais parceiros. Essas contradições: revolução operária e colonial em um polo, pressão das grandes potências imperialistas no outro, dividiram a burguesia portuguesa e seu agente pequeno-burguês, o MFA, em diferentes setores, chamados por diferentes problemas. Como deter a revolução operária e colonial? Como perder o mínimo possível nas negociações com as grandes potências imperialistas?

Essa mudança para a política bonapartista se manifesta em uma clara ideologia contrarrevolucionária. Ele vem abandonando todas as declarações a favor da democracia e do sistema multipartidário, característico do ano passado, quando confrontou Spínola, para começar a falar sobre “democracia direta” e os órgãos de poder resultantes do movimento de massa contra o parlamentarismo formal. Tudo isso é temperado com a “marcha para o socialismo”.

O objetivo é óbvio: não podendo se manifestar contra as liberdades democráticas do movimento de massa e dos trabalhadores, eles procuram contrapô-las à democracia dos trabalhadores, usando críticas à democracia burguesa extraídas do arsenal marxista. Eles não inventaram nada de novo: o bonapartismo e o fascismo sempre se opuseram à democracia burguesa e usaram demagogicamente nossas críticas a ela para justificar suas políticas contrarrevolucionárias e antidemocráticas. Parte dessa mesma manobra demagógica é o ataque ao Partido Socialista e aos partidos burgueses reacionários que exigem liberdades democráticas, acusando-os de uma verdade marxista: todos eles são agentes da contrarrevolução. Mas essa verdade separada de uma muito mais importante – o principal agente contrarrevolucionário do momento é o governo do MFA com seu projeto bonapartista – é transformada em uma mentira demagógica com o objetivo de restringir as liberdades democráticas.

A outra campanha é a chamada batalha pela produção. Trata-se, dizem os ideólogos do MFA, de aumentar a produção a fim de construir o socialismo, ou chegar mais perto dele, não em favor da burguesia, mas em favor da classe trabalhadora. Como parte dessa campanha demagógica, para melhor enganar as massas, elas são informadas de que as medidas progressivas tomadas sob a pressão das lutas do movimento operário e de massas – por exemplo, as nacionalizações – também são medidas na marcha para o socialismo.

Combinando as duas necessidades mais urgentes (enganar as massas trabalhadoras e coloniais para impedir a revolução e resistir ao MCE para fortalecer o imperialismo autóctone), a ala bonapartista do MFA ergue como sua ideologia dominante o “nacionalismo anti-imperialista”, tentando copiar as formas dos movimentos nacionalistas dos países coloniais e semicoloniais. Ao fazê-lo, o imperialismo português, através dos seus agentes pequeno-burgueses do MFA, dá continuidade a uma velha tradição imperialista: mascarar as suas pilhagens com uma ideologia apelativa, de modo a utilizar a opinião da classe trabalhadora e da pequena burguesia em seu benefício.

Desde o início de sua existência, o imperialismo ocultou o verdadeiro caráter bandido da colonização sob o pretexto de “civilizar” os países atrasados. Mais tarde, quando a Grã-Bretanha, a França e os EUA estavam em plena posse de suas colônias e poder, eles levantaram a “defesa da democracia” contra seus rivais que haviam chegado tarde à divisão. Esses rivais – Alemanha, Itália e Japão -, por sua vez, promoveram a ideologia da “raça superior” e outras bobagens do gênero para enganar as massas e levá-las ao massacre. Eram imperialismos em expansão, que queriam tirar as colônias dos impérios cruéis, que estavam cheios de países subjugados.

Mas Portugal não é nem uma sombra dos antigos imperialismos, assim como a Alemanha nazista ou o Japão. Não pode levantar a bandeira da democracia, porque sob ela trabalham parceiros-inimigos do Mercado Comum Europeu. Tampouco pode usar a bandeira da “raça superior”, porque não está em expansão, mas em declínio e crise, e seu poder econômico não lhe permitiria conquistar nem mesmo a República de Andorra. Ele precisa se contentar em salvar o que puder de seu antigo império da revolução colonial e do ataque dos grandes imperialismos. Para isso, teve de inventar uma nova ideologia: nada melhor do que se disfarçar de nacionalista, de anti-imperialista? Se as massas acreditassem nisso, descobririam que seu principal inimigo não é seu próprio imperialismo, mas os outros imperialismos mais fortes.

A ideologia do MFA é semelhante às ideologias nacionalistas contrarrevolucionárias de outros imperialismos menores ou em declínio. Quando o império czarista estava entrando em colapso, os socialistas revolucionários russos descobriram que a guerra imperialista tinha de ser travada para que a Rússia “revolucionária” não fosse subjugada pela barbárie imperialista prussiana. O mesmo se aplica ao nacionalismo antiamericano canadense e ao da seção da burguesia e da pequena burguesia britânica que votou contra a adesão ao MCE.

Assim como esses nacionalismos, não há nada de progressivo no nacionalismo do MFA, ele é reacionário sob quaisquer padrões. É essencial, para não nos confundirmos, que façamos a distinção rigorosa que o marxismo faz entre o nacionalismo dos países coloniais e semicoloniais e o dos países imperialistas. O nacionalismo dos primeiros é progressivo; ele enfraquece o imperialismo. O nacionalismo do segundo é contrarrevolucionário, é pró-imperialista precisamente porque é o nacionalismo de um país imperialista. É por isso que os trotskistas defendem os países atrasados do ataque de um país imperialista, mas defendem a derrota do próprio país imperialista quando ele entra em guerra com outro país imperialista ou não imperialista. Para um marxista coerente, o melhor é sempre “a derrota do próprio país imperialista”, não importa se ele é atrasado e senil ou jovem e cheio de riquezas e colônias.

Logicamente, como um imperialismo fraco, o MFA terá muito cuidado para não tocar nas propriedades de outros imperialismos. Ele se contentará em nacionalizar as empresas da oligarquia portuguesa e as propriedades ausentes, mas as colocará a serviço do Estado burguês imperialista, retirando-as do controle dos trabalhadores. Assim, ele poderá usá-las como a melhor moeda de troca com as colônias e outros imperialismos, a serviço do imperialismo português. Portanto, se uma guerra financeira e comercial for travada entre os bandidos imperialistas do MFA e o imperialismo europeu pelas colônias portuguesas, nossa missão não será falar a favor do imperialismo pobre contra o imperialismo rico. Teremos de lavar as mãos, “o mal menor é a derrota do próprio país”.

Para essa política contrarrevolucionária do MFA, seu melhor aliado, ou melhor, seu único aliado até as últimas consequências, acabou sendo o Partido Comunista.

4. O MFA-PC: uma nova frente contrarrevolucionária provocada pelo ascenso

Insistimos no papel relativamente progressista desempenhado pelo Partido Comunista e, em menor grau, pelo MFA e pelo PS ao conclamar os trabalhadores a se oporem à manifestação preparada por Spínola para tentar seu primeiro golpe frustrado. Ressaltamos que esse era um lado, o lado positivo, da política contraditória da democracia pequeno-burguesa: deter a contrarrevolução espinosista. Também dissemos que tanto o PC quanto o PS e o MFA realizaram conscientemente o outro lado, o negativo: colocar um freio na revolução dos trabalhadores desmobilizando as massas. Por fim, argumentamos que essa política de democracia pequeno-burguesa estava mudando e provocando uma divisão dentro dela à medida que o levante dos trabalhadores se intensificava e o perigo imediato de uma contrarrevolução burguesa recuava: o MFA e o PC se voltaram para a contrarrevolução bonapartista; o PS com seu aliado, o PPD, permaneceu no campo da democracia burguesa. Vejamos os motivos.

Mesmo antes do segundo golpe de Spínola, essa ala da democracia pequeno-burguesa, o MFA-PC, diante do aprofundamento da revolta dos trabalhadores, começou a se orientar para a contrarrevolução. Ele tentou conter e esmagar o movimento de massas, tirando os grandes ganhos já conquistados, especialmente a Assembleia Constituinte, por meio do famoso “Pacto”, e tentando impedir os ganhos que estavam se tornando a ordem do dia com as ocupações de fábricas e o desenvolvimento das comissões de trabalhadores. Foi então que o PC e o MFA se uniram e concordaram em impor às massas portuguesas em ascensão um governo bonapartista baseado na combinação MFA-PC-Intersindical.

O correspondente do “Le Monde Diplomatique” já citado atesta: “As sucessivas ondas do movimento social durante esse período só puderam ser contidas pelo Partido Comunista Português que, mudando sua estratégia no terreno, esforçou-se para enquadrar e controlar as ocupações no Alentejo, uma região tradicionalmente considerada comunista ou comunizante”.

A partir desse momento, o governo do MFA reforçou o acordo que havia firmado com o PC desde o início da revolta dos trabalhadores no começo do ano. O caráter mais avançado e profundo do levante desde o frustrado “putsch” explica por que, como o mesmo correspondente aponta, “o 11 de março permitiu uma melhora temporária nas relações entre o PC e o MFA”.

Em combinação com seções do MFA, o PC se torna, portanto, a correia de transmissão dentro do movimento dos trabalhadores de um novo projeto bonapartista; esse é o caráter do contra-ataque político da pequena burguesia que apontamos.

Esse projeto contrarrevolucionário não é o mesmo que o plano de Spínola de dar um golpe único e definitivo na revolução. A extraordinária força do movimento operário e de massas os obriga a agir com outros métodos: trata-se de amassar e esmagar o movimento pouco a pouco e por setores. Da mesma forma, em vez de confrontar abertamente seus ganhos, eles reconhecem alguns deles para transformá-los em armas contrarrevolucionárias que lhes permitem atacar outros ganhos. É um caso de dividir para reinar.

Se o bloco PS-PPD rompeu com a ala bonapartista do MFA-PC, ele não o fez, logicamente, por afeição às liberdades democráticas do movimento dos trabalhadores. Ele tem sido e continua sendo um bloco contrarrevolucionário, um inimigo mortal das ocupações de fábricas, dos germes do duplo poder, das nacionalizações e da revolução dos trabalhadores. Ele é o continuador do plano contrarrevolucionário anterior ao 11 de março do MFA-PC-PS, do plano da Constituinte e do parlamento para desviar a revolução. A atual oposição do PS-PPD ao MFA-PC tem a ver com o fato de que eles discordam sobre qual é a melhor tática contrarrevolucionária. Isso, por si só, não explica por que o rompimento da frente anterior foi tão violento. A primeira é que, como apontamos anteriormente, para o PS (e possivelmente também para o PPD) a existência do parlamento é uma questão de vida ou morte, já que sem ele ele deixa de existir como o que é, um partido eleitoral. A segunda razão tem a ver com seu papel como agente do imperialismo europeu e dos setores mais fortes do imperialismo português, que consideram que sua única saída é associar-se ao MCE.

5. O Partido Comunista: agente do Kremlin e do MFA

Vimos que o MFA está dividido e oscila entre dois projetos: o bonapartista e o parlamentarista. Seu grande aliado para o primeiro é o Partido Comunista Português.

Horowitz explica essa aliança do PC com o MFA pela necessidade que este último tem do primeiro para controlar o movimento operário. Ele se esquece de que o PC também é quase indispensável para a manobra neocolonial do MFA devido à influência do stalinismo mundial sobre os movimentos nacionalistas e, especialmente, sobre o das colônias portuguesas. Em outras palavras, o MFA precisa do PC para deter a revolução operária em Portugal e a revolução colonial no império. Mas, embora isso explique a política do MFA em relação ao PC, não explica por que o PC não aceita o jogo parlamentar e por que entra em conflito com o SP. Deve haver razões profundas para esse jogo stalinista.

Os jornalistas burgueses contrastam a política do stalinismo italiano e francês com a do stalinismo português. No entanto, embora formalmente diferentes, eles não são diferentes em seu conteúdo. Todo o stalinismo mundial, e mais particularmente o europeu, tem um caráter comum: eles são agentes da burocracia soviética. Ligados a ela não apenas ideologicamente, mas – e esse é o ponto essencial – como apêndices de um aparato poderosíssimo, eles atendem fielmente às necessidades diplomáticas do Kremlin, ou seja, adaptam sua política às circunstâncias concretas de cada país para melhor defender o aparato burocrático do qual fazem parte e cuja cabeça e coração estão em Moscou.

É aí que está a chave da questão. Atualmente, o stalinismo não segue a mesma política de frente popular em todo o mundo, como fez no período entre 1935 e 1947, de subserviência total e absoluta ao imperialismo “democrático” contra o fascismo. Atualmente, a União Soviética é a segunda potência mundial e defende essa situação com uma política de preservação do “status quo”. Essa política tem duas faces: uma é impedir a revolução mundial, e nisso ela coincide com o imperialismo; a outra é tentar impedir que o imperialismo se fortaleça, e para isso ela tenta conseguir países “neutros”, ou seja, relativamente independentes dos grandes imperialismos, dentro do mundo capitalista. Esse segundo aspecto da política do Kremlin se manifesta essencialmente nas manobras diplomáticas de apoio e no apoio dos partidos comunistas locais aos regimes dos países semicoloniais que assumiram posições relativamente independentes do imperialismo. Esse foi o caso da Índia, do Peru, do Egito, da Bolívia sob Torres e do Chile sob Allende. Esse neutralismo acaba beneficiando o imperialismo dos EUA ao impedir a revolução. Exemplos: Chile, Egito, Bolívia.

Portugal não é um país semicolonial, mas um país imperialista. Mas um imperialismo que, embora fraco, é momentaneamente autárquico, relativamente independente das grandes potências imperialistas. E o Kremlin quer mantê-lo assim pelo maior tempo possível, já que essa “neutralidade” de Portugal fortalece sua política de negociar com o imperialismo o freio à revolução mundial, mas a partir de posições de força, não de completa subordinação, como no período de 1935 a 1947. (Isso não exclui a hipótese de que, em última análise, o Kremlin e o PC português estejam jogando a carta dos EUA; as declarações de Álvaro Cunhal são extremamente educadas e suspeitas quando se referem ao imperialismo norte-americano; as de Kissinger, quando se referem ao imperialismo português, também o são).

Essas considerações básicas devem estruturar nossa interpretação das “diferenças” políticas entre o stalinismo português e o stalinismo francês ou italiano. Todos os três servem ao Kremlin, mas devem adaptar suas políticas às respectivas realidades nacionais. Os PCs da França e da Itália são os partidos reformistas mais votados em um regime parlamentar relativamente estável. O PC português se encontra em uma situação premente, revolucionária e de duplo poder, em que está eleitoralmente em minoria. Por meio da via eleitoral parlamentar, o stalinismo português não pode pressionar a burguesia para permitir seu acesso ao governo e, assim, servir à segurança do capitalismo e fortalecer a diplomacia do Kremlin.

Isso quer dizer que o PC não serve em grande medida a agenda da ala parlamentar, ligada ao MCE, do MFA. Mas, devido à sua centralização e aos seus quadros, o stalinismo português é o único que pode colaborar com o projeto contrarrevolucionário bonapartista do MFA. É, no momento, o único partido que pode controlar os sindicatos e talvez até, com o tempo, controlar os órgãos de duplo poder.

A estrutura e a técnica diferentes do PC, sua herança “bolchevique”, seu trabalho diário no movimento de massas (embora para uma política reformista ou contrarrevolucionária) de criar organizações específicas dentro dele, as células ou frações rigidamente centralizadas, tornam-no, ao contrário do PS, indispensável para o MFA. Este último, com uma organização exclusivamente eleitoral, sem uma estrutura e disciplina de base, constituído como um movimento eleitoral em vez de um partido centralizado, não é indispensável para o MFA no momento atual. É por isso que o PC, ao contrário do PS, é visto como uma parte necessária e indispensável de qualquer política contrarrevolucionária nesse estágio de poder duplo.

Em princípio, podemos assinalar que essa tendência do stalinismo de colaborar com o bonapartismo ou com projetos bonapartistas não é um fenômeno isolado, restrito a Portugal. Ela se repetiu em outros países onde os PCs eram eleitoralmente minoritários, como, por exemplo, no Peru. Mas, embora sua fraqueza eleitoral possa ser a explicação imediata para tais políticas, acreditamos que se trata de um fenômeno mais generalizado do que parece. No Uruguai, ele constantemente incitava os militares “peruanos” a tomar o poder por meio de um golpe de Estado, e não nos parece acidental que ele tenha liderado sua coalizão eleitoral, a Frente Ampla, com o General Seregni à frente.

Mesmo em países onde o stalinismo é um poder eleitoral real, foi revelada uma tendência ao bonapartismo. Na França do pós-guerra, ele foi o campeão da reorganização do exército burguês e, a princípio, apoiou fortemente De Gaulle. Na Itália, na mesma época, quando se deparou com o referendo para decidir entre o sistema monárquico e a república, Togliatti se manifestou a favor do primeiro, e somente o repúdio das bases stalinistas forçou a liderança a mudar sua posição.

Mas há dois exemplos históricos muito significativos para o caso de Portugal, porque eles podem mostrar a característica permanente da política stalinista em situações revolucionárias. No Chile, sob Allende, o PC foi um defensor da entrada dos militares no gabinete e de uma política burguesa de direita, contra o que o Partido Socialista estava propondo.

Na Espanha republicana, essa política de extrema direita foi aplicada até as últimas consequências. O PC stalinista importou os métodos policiais contrarrevolucionários da GPU para o próprio solo espanhol, a fim de ajudar a estabelecer o regime semibonapartista de Negrin, que entrou em conflito com o Partido Socialista. Negrin, que entrou em conflito não apenas com as correntes poumistas e anarquistas, mas também com o PS de Largo Caballero.

Deve haver alguma interpretação marxista desses fenômenos, uma lei que os explique. Nossa hipótese – insistimos: hipótese, linha de pesquisa, não opinião conclusiva – é que as tendências bonapartistas dos PCs se devem a uma razão fundamental: eles fazem parte do aparato da burocracia soviética. Esse fator tem uma influência dupla. Em primeiro lugar, os partidos comunistas não têm uma relação direta com o proletariado e as massas do país em que atuam, mas com o aparato do Kremlin, o que lhes permite – ao contrário dos partidos socialistas – agir de forma muito mais independente dos sentimentos e desejos das grandes massas.

Em segundo lugar, o aparato do qual eles dependem é bonapartista, é a ditadura bonapartista da burocracia soviética, que “infecta” esse caráter aos partidos comunistas como um todo.

Os PCs são, a seu modo, “bonapartistas”, totalitários no mais alto grau. A razão de sua disciplina e política vem da burocracia, de seu “aparato” internacional e nacional. Daí seu centralismo burocrático ou “bonapartista”. Portanto, eles são capazes de colaborar com o bonapartismo burguês de aparato em aparato

Um caso diferente é o dos partidos socialistas. Eles só podem existir em condições de democracia burguesa. A isso devemos acrescentar seus laços mais estreitos com o movimento de massas – o que os obriga a refletir mais diretamente as aspirações e necessidades das massas -, o menor peso do aparato burocrático do partido e, em nível internacional, o fato de que eles não fazem parte de um grande aparato mundial cujo eixo é a burocracia que domina o Estado operário russo, a segunda potência mundial.

Todos esses aspectos objetivos não devem nos fazer esquecer o conteúdo da política stalinista. O stalinismo, como uma corrente no movimento operário, é uma consequência do refluxo contrarrevolucionário da primeira revolução operária triunfante. Ele não é o mesmo que a social-democracia, que surgiu do levante dos trabalhadores sob a burguesia em circunstâncias de democracia burguesa altamente favorável. Isso faz com que o stalinismo seja muito mais sensível para responder como um todo às necessidades de uma contrarrevolução bonapartista, tendo-o como agente, do que os partidos socialistas, que estão um pouco mais ligados às necessidades de sua base e, acima de tudo, às liberdades democráticas burguesas.

6. O Partido Socialista e sua aliança com o PPD e Costa Gomes

Se o PC é o grande aliado do MFA em seu projeto contrarrevolucionário bonapartista, o PS é o aliado do PPI e de Costa Gomes no projeto semiparlamentar igualmente contrarrevolucionário.

De acordo com Lívio Maitan,

… uma grande parte, talvez a maioria, da classe trabalhadora tem visto no PSP o instrumento de sua luta. Isso pode ser visto – corretamente – como o resultado da experiência insuficiente dos trabalhadores portugueses com o reformismo social-democrata e a falta de clareza sobre os papéis atualmente desempenhados pelas diferentes formações do movimento dos trabalhadores. Mas, ao mesmo tempo, é preciso entender que o PSP conseguiu tirar proveito da rejeição de setores do proletariado aos métodos burocráticos do PC, de sua oposição aberta a várias lutas e de sua conquista de posições de liderança nos sindicatos por meio de manobras no topo. Além disso, o PS conseguiu tirar proveito da demanda geral pelo direito de expressão democrática que, afinal de contas, é natural em uma classe trabalhadora que vem de quase meio século de ditadura. Certamente, pelo menos alguns estratos do proletariado não viram com bons olhos o famoso pacto imposto pelo MFA [ . . .], que transformou a Assembleia Constituinte praticamente em letra morta. (Livio Maitan, “MFA ou democracia revolucionária dos trabalhadores? “, nesta edição da Revista de América).

Como uma explicação de como o PS se tornou a corrente majoritária – sem “talvez” – do movimento operário, ela está totalmente correta. Mas ela não esgota a análise do PS, uma vez que não leva em conta sua liderança ou seu programa.

Horowitz, por sua vez, comete outros erros: o primeiro é que em todo o seu artigo ele cita o nome desse partido apenas uma vez, apesar de ser o partido majoritário na classe trabalhadora. O segundo é que, como Maitan, ele não denuncia o PS como um agente do imperialismo europeu. Isso é surpreendente, já que esse caráter é proclamado abertamente por seu líder máximo. “Meu partido”, diz Soares no Le Monde Diplomatique, citado acima, “é democrático. É o maior partido português. Não nego que ele tinha um projeto de democracia parlamentar e reformista que teria possibilitado evitar os grandes transtornos da adesão de Portugal ao Mercado Comum Europeu”. O terceiro erro de Horowitz se destaca quando ele diz que “a política do Partido Comunista pode levar a classe trabalhadora portuguesa a uma terrível tragédia, porque pode desarmar os trabalhadores contra o perigo futuro de um grande ataque violento e repressivo da classe dominante” (grifo nosso). E o Partido Socialista não tem responsabilidade pelo “desarmamento dos trabalhadores” contra “a classe dominante”, sendo ele o partido majoritário dos trabalhadores?

Não denunciar a política do SP, não marcar sua “divisão de tarefas” com o PC no “desarmamento dos trabalhadores” é, inconscientemente, fazer o jogo do reformismo. Na ânsia justificada de defender os direitos democráticos do PS contra os ataques do MFA-PC, alguns destacam seu caráter de partido majoritário dos trabalhadores. Mas quando se trata de atribuir a responsabilidade pelo desarmamento da revolução, esse caráter majoritário parece desaparecer. No entanto, o PS tem sido um aliado permanente do MFA-PC na luta contra a revolução dos trabalhadores. Não é coincidência o fato de que ele continua intimamente ligado a Costa Gomes, assinou o “Pacto” antidemocrático e se opõe às nacionalizações e ocupações de fábricas.

Em resumo, há uma contradição aguda dentro do PS, que é agravada pelo fato de que, com exceção de seus quadros de liderança, educados pela social-democracia europeia, ele é um partido novo, em construção, sem quadros importantes. É mais um movimento do que um partido solidamente estruturado. Sua forte rivalidade com o MFA e o PC decorre de seu duplo caráter: expressão ambígua e pouco clara de sentimentos altamente positivos do movimento de trabalhadores e de massas em relação à conquista e à defesa das liberdades democráticas; correia de transmissão do MCÉ pelo grande setor popular que conhece o imperialismo europeu (deve-se estudar se esse último aspecto não é reforçado por uma certa simpatia em relação ao MCE por um grande setor popular que se beneficia do dinheiro enviado pelos trabalhadores emigrados para alguns países que são membros dele).

IX
O MFA-PC contra-ataca o movimento de massas e a revolução colonial

1. As fraquezas do ascenso revolucionário facilitam as manobras contra-revolucionárias do MFA

A revolução dos trabalhadores portugueses, com seu fabuloso impulso a partir da base do movimento operário e de massas, tem fraquezas trágicas em termos de organização e liderança política. A primeira delas é a atomização e a fraqueza do poder dual. Os comitês de base de trabalhadores, inquilinos e soldados, as ocupações de fábricas e as assembleias de soldados ainda mantêm totalmente seu caráter espontâneo, molecular e descentralizado. Não há sovietes em Portugal, nem qualquer outro órgão central do poder operário que, mesmo não correspondendo à estrutura dos sovietes russos, sirva de núcleo para os órgãos existentes do poder dual. Essa situação, que teve seu lado positivo na medida em que transformou as comissões de base em órgãos fora do controle dos partidos reformistas, justamente por não estarem integradas a uma organização centralizada, agora está mostrando cada vez mais seu lado negativo. Quanto mais a necessidade da tomada do poder pelo proletariado se torna a ordem do dia, mais fica claro que não há nenhuma instituição do movimento operário e de massas que o organize, seja reconhecida por ele e esteja em posição de assumir o governo do país.

É muito perigoso se enganar a esse respeito, a manifestação de fevereiro das comissões de trabalhadores foi muito menor do que a da Intersindical. Isso mostra a atual fraqueza do poder dual. Eles são germes poderosos e nada mais. Ela está longe de ser a organização revolucionária das massas portuguesas. No momento, é apenas a organização das seções mais avançadas. Devido à confusão do movimento operário e à política criminosa da ultraesquerda, esse caráter é acentuado.

A segunda fraqueza fundamental, que é tanto uma causa quanto um produto da primeira, é a divisão entre os partidos dos trabalhadores. O confronto entre as lideranças pequeno-burguesas e burocráticas dos dois grandes partidos reformistas, ao qual deve ser acrescentado o papel de terceiro partido dos grupos não menos pequeno-burgueses da ultraesquerda maoista, impediu a estruturação de organizações revolucionárias de frente única do movimento dos trabalhadores. Cada uma dessas três correntes procura prosperar no setor em que vê as maiores possibilidades de impor sua influência: os socialistas no nível parlamentar, os stalinistas no nível sindical, os maoístas no nível das comissões de trabalhadores. E combate por todos os meios os órgãos em que é fraco. Assim, os socialistas e maoístas atacam os intersindicalistas, os stalinistas atacam a Assembleia Constituinte, e os socialistas e stalinistas atacam as comissões de trabalhadores, as greves e as ocupações de fábricas.

Em relação aos germes do poder duplo, as comissões de trabalhadores e os comitês de soldados, a política do mapismo e do ultraesquerdismo é desastrosa. Eles estão repetindo a política não menos desastrosa do anarco-sindicalismo espanhol, mas sem sua generosidade, influência e aspectos positivos. A política ultraesquerdista dessas seitas, infelizmente influenciando as organizações de base, está transformando-as em apenas mais uma tendência no movimento dos trabalhadores, a sectária e ultraesquerdista, e não no que elas deveriam ser, a organização de massa por excelência. É assim que as organizações que eles controlam atuam em apoio às suas políticas sectárias e de ultraesquerda, sem levar em conta as necessidades do movimento de massa. Ao agir dessa forma, eles marginalizam essas organizações da vida política do país, quando deveriam estar no centro dela. Dessa forma, possibilitam que elas sejam os “idiotas úteis” do governo, sua melhor ferramenta de propaganda para enganar e dividir as massas.

Os setores que influenciam a ultraesquerda declamam a favor da revolução socialista, esquecendo-se de um detalhe: contra quem fazer essa revolução socialista. A maior confusão é sobre o “quem”. Para alguns, é a ala direita do MFA. Para outros, é o imperialismo.

Para aqueles que estão mais distantes, são as empresas capitalistas e é por isso que eles propõem o controle dos trabalhadores sobre elas. Todos eles sempre se esquecem de salientar que o principal inimigo contra o qual a revolução deve ser feita é o governo do MFA e que toda corrente operária ou popular que entra em conflito com o governo é relativamente progressista e deve ser tentada para incorporá-la a fim de unificar e ampliar a órbita das organizações de base. Mas, para que isso aconteça, elas devem ser as organizadoras das massas contra o governo do MFA.

Portanto, não há organizações de classe – nenhuma fração parlamentar dos trabalhadores, nenhum soviete, nenhum sindicato – que sejam verdadeiras organizações revolucionárias de frente única dos trabalhadores. A divisão nas fileiras do movimento operário, pela qual as lideranças pequeno-burguesas são responsáveis, é, portanto, o segundo ponto fraco da revolução portuguesa.

A terceira é a falta de um partido marxista revolucionário com influência de massa. Sua inexistência impede que os trabalhadores façam uma experiência completa com suas lideranças reformistas e com o governo. Não há ninguém que denuncie as manobras contrarrevolucionárias do governo do MFA, ninguém que explique a necessidade da virada do poder, ninguém que defenda os comitês de base e proponha sua centralização, ninguém que defenda a Intersindical e proponha sua democratização, ninguém que defenda a Assembleia Constituinte e as liberdades democráticas e proponha a soberania total da primeira e a extensão da segunda, ninguém que defenda as ocupações e proponha o controle dos trabalhadores. O trotskismo existe, mas ainda não foi ouvido por amplas seções do movimento de massa nem começou a ser visto como uma liderança alternativa.

Essas três fraquezas fundamentais se combinam para impedir que um processo cujas condições objetivas estão mais do que maduras leve ao que seria seu resultado lógico e necessário: a tomada do poder pela classe trabalhadora. E elas facilitam, neste momento, as manobras bonapartistas do MFA-PC para usar alguns setores ou organizações das massas contra outros a fim de se consolidar como árbitro e fortalecer seu governo.

2. O ataque ao movimento dos trabalhadores e as sementes do duplo poder. A batalha da produção

Um primeiro setor em que a contrarrevolução contra-atacou foi o da organização sindical e do direito de greve. Assim, ela começou a controlar, desde o início, as primeiras organizações nascidas da ascensão: os sindicatos por setor e a Intersindical. Assim, em 30 de abril, o governo anunciou que “de acordo com a futura lei sindical, não haveria eleições nos sindicatos cujas lideranças fossem eleitas após 25 de abril de 1947”. Os sindicatos industriais estavam, portanto, nas mãos do stalinismo contrarrevolucionário, eliminando qualquer tentativa possível de democratizá-los e transformá-los em sindicatos revolucionários, e até mesmo impedindo que o socialismo e o maoismo competissem por sua liderança. Ao mesmo tempo, a lei antigreve tentou liquidar a grande conquista do movimento operário de ter recuperado o direito de greve após 50 anos de ilegalidade. O stalinismo, por sua vez, grato pelo presente do governo da liderança perpétua dos Intersindicalistas, concordou com estes últimos ao declarar a “batalha da produção” como a tarefa final dos trabalhadores portugueses.

Dessa forma, o MFA e o PC, juntos, tentaram obter uma base econômica sólida para o Portugal capitalista por meio de uma maior exploração dos trabalhadores. Parte desse plano tem sido a campanha de “austeridade”. Juntos, eles são a base de um plano mil por cento burguês, ao qual a classe trabalhadora não se opõe com seu próprio plano econômico, e cujo objetivo é fortalecer o fraco imperialismo português contra o MCE. “Embora os projetos econômicos defendidos pelo PSP e pelo PPD – de acordo com o Le Monde Diplomatique, citado acima, essa é a opinião de altos funcionários do governo – possam eventualmente aumentar a expansão com a ajuda maciça do capital estrangeiro, eles corresponderiam a um modelo de consumo, que não seria adequado para um Portugal ansioso por reduzir as desigualdades sociais”. Embora seja verdade que, depois de 11 de março, a lei antigreve e a “batalha da produção” não tenham tido grandes consequências, elas pendem como uma espada de Dâmocles sobre a cabeça do proletariado.

Outra conquista que a contrarrevolução busca liquidar são os elementos de poder dual desenvolvidos dentro do exército. Mas aqui, o MFA age sem intermediários. Em sua assembleia de 7 de abril, ele emitiu uma declaração pública que indica claramente seus objetivos: “fortalecer a vontade e a disciplina revolucionárias”, ou seja, eliminar todos os elementos de controle dos soldados e suboficiais sobre os oficiais. Embora a neutralização dos comitês de soldados e marinheiros seja, juntamente com a batalha pela produção, seu objetivo prioritário, o MFA age aqui com o máximo de tato e cautela. Seu objetivo é controlar e liquidar os comitês de soldados, ou seja, arrancá-los do controle direto da base, a fim de reimpor a disciplina. Para conseguir isso, ele recorreu à manobra demagógica de trazer alguns suboficiais e soldados para a Assembleia do MFA, compreensivelmente em minoria. Outra manobra foi a promoção de comitês sob a disciplina dos oficiais. Nessa área, ela está totalmente em fase de concessão. Afinal de contas, é muito difícil reprimir pessoas armadas.

Mas é precisamente no terreno das relações de produção, no que tem acontecido com as ocupações de fábricas e as comissões de trabalhadores, que melhor se demonstra esta nova política contrarrevolucionária, pois são os avanços mais importantes do atual processo revolucionário português. O MFA e o stalinismo estão transformando – ou tentando transformar – as ocupações e comissões de trabalhadores, que têm um caráter profundamente anticapitalista e revolucionário, em seus opostos pró-capitalistas e contrarrevolucionários, nacionalizando as empresas e nomeando administradores estatais burgueses para dirigi-las. O movimento operário em ascensão expropriou de fato as empresas ao ocupá-las e administrou-as por meio das comissões de trabalhadores; o MFA-PC, aceitando o fato progressivo de expropriar a seção afetada da burguesia, por sua vez expropriou os trabalhadores, tirando deles o que já estava em suas mãos e impondo seus administradores burgueses.

O primeiro aspecto do plano começou com as nacionalizações. Em 14 de março, os bancos ocupados por seus funcionários foram nacionalizados; em 15 de março, as companhias de seguros; em 15 de abril, as indústrias de aço, eletricidade, petroquímica, petróleo e transporte foram nacionalizadas; em 7 de maio, foi anunciado que a indústria farmacêutica seria assumida. O fato de que a maioria das empresas que foram nacionalizadas já estava ocupada pelos trabalhadores demonstra a manobra do governo do MFA: aceitar um fato consumado, que os patrões não eram mais os verdadeiros proprietários das empresas ocupadas, e removê-las do controle direto da classe trabalhadora, passando-as para as mãos do Estado burguês. De qualquer forma, as nacionalizações têm sido um reconhecimento indireto do caráter de classe trabalhadora da revolução em curso, pois apontam para um Estado operário que expropria a classe capitalista. Mas, em si mesmas, elas estão longe de ter um caráter socialista, já que é o Estado burguês, e não um Estado operário, que controla as empresas nacionalizadas. No máximo, elas levam ao capitalismo de estado, ou a uma aproximação dele.

Ao mesmo tempo em que expropriava as empresas ocupadas dos trabalhadores, o governo também expropriava o controle delas das comissões de trabalhadores (uma tarefa facilitada pelo fato de as comissões de trabalhadores não serem centralizadas e pela influência do maoismo com sua ideologia populista sobre elas). O “Le Monde Diplomatique” descreve o procedimento do MFA e avalia seu possível objetivo:

Quando a iniciativa popular ou a ação dos trabalhadores desencadeia conflitos com os patrões, o MFA confia a uma comissão composta por tecnocratas de sua escolha e delegados dos trabalhadores a reestruturação do funcionamento da empresa. Em caso de abandono ou má administração por parte dos patrões, os trabalhadores assumem o controle da produção ou exigem a nacionalização. […] Somente o futuro mostrará se esse duplo poder, que atualmente permite que o MFA baseie sua ação em uma nova força “não partidária”, em face da estratégia eleitoralista dos partidos de esquerda, não será canalizado e neutralizado para a vantagem exclusiva do MFA, ou seja, de um novo Estado.

Esses funcionários do MFA, ocupando seus cargos de direção e trabalhando em contato direto com lideranças inexperientes, maoístas ou ultraesquerdistas dos trabalhadores, facilitam a manobra de incorporá-los de fato, na ausência de uma clara perspectiva de classe de poder, ao aparato das indústrias nacionalizadas do poder burguês.

Juntamente com esse procedimento de expropriar o movimento dos trabalhadores, setor por setor, as empresas ocupadas e as próprias comissões de trabalhadores, a contrarrevolução está planejando uma manobra mais ampla e de maior alcance.

Já no início do ano, o MFA e a burguesia perceberam que a dualidade de poder estava se generalizando e se depararam com um sério problema. Os partidos dos trabalhadores ainda eram muito úteis para castrar o movimento operário e de massas, mas não eram mais suficientes. O Partido Socialista é útil para eles se houver eleições e parlamentos; o stalinismo é útil para eles na arena sindical, mas não tanto nos comitês de base. O que fazer? Foi então que começou uma manobra demagógica de alto nível, usando os “idiotas úteis” da ultraesquerda, especialmente os maoístas. Nas forças armadas – como já vimos – os suboficiais e soldados em minoria são incorporados ao MFA, a formação de comitês é autorizada se os oficiais forem disciplinados, como uma concessão apaziguadora (e aqui está o toque engenhoso da burguesia portuguesa e o papel da ultraesquerda no movimento operário e de massas).

O que está em questão é a fundação e a institucionalização de “Assembléias Populares” controladas pelo MFA-PC.

O objetivo dessas Assembleias Populares é forçar os comitês de trabalhadores, inquilinos e soldados a se disciplinarem e, consequentemente, o MFA-PC, que seria capaz de controlá-los muito melhor. Essa é uma repetição da experiência espanhola, na qual os comitês ou juntas foram criados pelos partidos para controlar os comitês reais.

É por isso que estamos começando a ouvir frases com um toque “soviético”. Fala-se em superar os partidos dos trabalhadores, aceitando o fato consumado de que os comitês já os superaram e suas políticas. Fala-se em legalizar e institucionalizar os comitês de trabalhadores e incorporá-los ao governo por meio das Assembleias Populares nas quais eles seriam integrados. Fala-se em “democracia direta”. Os contra-revolucionários pequeno-burgueses do MFA e do PC não se irritam muito quando a imprensa mundial começa a mencionar a palavra “sovietes” ou “novo Estado”.

Essa não é a primeira ocasião em que a burguesia tentou a tática de institucionalizar os órgãos do poder dos trabalhadores. Em um estado alemão do início do pós-guerra, os sovietes foram incorporados à constituição. Se a manobra das Assembleias fosse bem-sucedida, os comitês seriam transformados de órgãos do poder dos trabalhadores em instituições do poder burguês. Mas, como qualquer manobra baseada em demagogia, em concessões, ela tem um lado muito agudo e perigoso para a burguesia em uma situação revolucionária como a que Portugal está passando: se ela encorajar o processo dos comitês de base, pode agir como um catalisador para sua maior extensão e centralização. Não devemos nos esquecer de que o primeiro soviete surgiu em 1905 por iniciativa negociadora do Czar de todas as Rússias.

Além disso, ele tem outro objetivo bonapartista: obter algum apoio de massa para seu ataque às liberdades democráticas e ao Partido Socialista, que tem uma grande maioria nas eleições.

Ele pode realizar essa manobra ousada sem correr grandes perigos, devido à atomização do movimento de massa em vários partidos de trabalhadores, inúmeras comissões de trabalhadores, comissões de inquilinos e comitês de soldados, o que lhe permite manobrar apoiando-se em um contra o outro.

3. O ataque às conquistas democráticas

Outro terreno fundamental no qual a contrarrevolução está contra-atacando por meio do bloco bonapartista MFA-PC é o dos grandes ganhos democráticos conquistados pelo movimento operário e de massas desde o 25 de abril. Como exemplo, basta mencionar o controle dos meios de comunicação de massa pelo aparato do PC e a criação do COPCON (Comando Operacional do Continente) para substituir a tarefa repressiva da polícia política do salazarismo, praticamente destruída.

Esse ataque às liberdades democráticas teve sua maior expressão na subjugação da maior conquista democrática das massas: a Assembleia Constituinte. Esse era o objetivo do famoso “Pacto” que o MFA forçou os partidos políticos a assinar. Assinado em 13 de abril, ele consiste em um compromisso dos partidos de deixar o governo nas mãos do MFA e do Conselho da Revolução por cinco anos, fazendo um juramento de não invadir essa prerrogativa militar durante esse período. Seu objetivo é conseguir um governo estável, sem qualquer garantia democrático-burguesa para o movimento operário e de massas; é um resseguro burguês de qualquer possibilidade de que o regime parlamentar possa ser usado pelo proletariado. Imediatamente, é uma concessão ao PC por serviços prestados e em vista de sua fraqueza eleitoral.Imediatamente, é uma concessão ao PC por serviços prestados e em vista de sua fraqueza eleitoral. Essa foi a fórmula engenhosa encontrada pelos contrarrevolucionários do MFA-PC para expropriar do movimento de massas sua maior conquista democrática.

Mas, mesmo dentro dessa estrutura, os resultados das eleições foram altamente significativos. Em primeiro lugar, porque o fato de que os votos combinados dos partidos dos trabalhadores somaram quase metade do eleitorado indicou a profundidade e a magnitude da ascensão pela qual Portugal está passando. Em segundo lugar, ficou evidente a enorme influência do PS sobre o povo em geral e também sobre a classe trabalhadora, uma vez que ele triunfou em grande parte nas favelas proletárias. Contraditoriamente, revelou sua falta de estrutura entre os trabalhadores, já que essa influência não se refletiu nos sindicatos e nos comitês de base. Em terceiro lugar, ele apontou a perda de prestígio que a política do PC de estreita colaboração e capitulação ao governo burguês está causando. Por fim, destacou a profunda consciência antitotalitária dos trabalhadores portugueses que, ao votarem no partido que formalmente mais defende as liberdades públicas e ao rejeitarem aquele que as ataca em cumplicidade com o MFA, ignoraram os apelos ao voto em branco formulados de forma dissimulada por este último. Evidentemente, com muito bom instinto de classe, os trabalhadores e setores da classe média sentem um medo saudável de medidas totalitárias e querem ampliar as liberdades democráticas.

Uma terceira linha de ataque às liberdades democráticas está diretamente relacionada ao movimento dos trabalhadores. Nessa área, o bloco bonapartista MFA-PC chegou ao ponto de impedir que o PS se expressasse por meio do “República”, em uma medida escandalosamente antidemocrática, já que não se trata de um partido fascista, mas do partido majoritário dos trabalhadores. A legalização do maoismo também faz parte desses ataques à democracia dos trabalhadores.

A questão das liberdades democráticas é um novo campo de luta entre a revolução e a contrarrevolução, aberto após o 11 de março. As medidas já tomadas serão seguidas por outras, porque o curso contrarrevolucionário do MFA-PC continuará sua marcha inexorável enquanto o movimento dos trabalhadores e das massas não o derrotar.

No império, o MFA-PC continua com a ocupação militar de Angola, em uma manobra neocolonial de usar os confrontos entre os movimentos guerrilheiros para continuar a dominar a antiga colônia. Esse é o outro lado da política antidemocrática interna.

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Para uma política leninista-trotskista consistente

1. O reformismo do PS e a demagogia das assembleias populares não devem esconder de nós que o MFA-PC é o principal inimigo

As manobras do MFA-PC para desviar a atenção de seu plano contrarrevolucionário chocaram setores da esquerda e até mesmo do nosso movimento. Por um lado, eles tentam esconder seu plano contrarrevolucionário dirigido contra o movimento operário e colonial, os soldados, o PS e os maoístas, denunciando os aspectos contrarrevolucionários do PS. Dessa forma, eles podem combater melhor as tendências democráticas altamente positivas dos trabalhadores que votam pelo socialismo e, assim, dividir as massas em torno de falsas escolhas.

No segundo caso, eles se esforçam para mostrar que, ao organizar “Assembleias Populares”, são a favor do desenvolvimento de uma espécie de “ditadura do proletariado ou do povo”, de um governo direto dos trabalhadores.

O caráter contrarrevolucionário histórico do PS não deve servir para nos distanciar da realidade atual, como é o caso de muitos companheiros.
Fazendo eco à demagogia contrarrevolucionária do MFA, que acusa justamente o PS de estar a serviço do imperialismo, de ser contra a democracia direta do movimento operário e dos soldados e de ter formado um bloco com o PDP, muitas correntes que se dizem trotskistas e do movimento operário consideram que o maior perigo para o movimento operário português hoje é a ideologia e as políticas reformistas pró-imperialistas do PS e seu bloco com o PDP. Alguns não o dizem tão claramente, mas, ao atacarem mais o PS do que o PC, partem do reconhecimento de que o PS, no braço dos católicos e do PPD, ajuda tanto ou mais do que a demagogia do MFA a provocar esta confusão.

Em primeiro lugar, é preciso enfatizar que o MFA-PC é tão pró-imperialista e contra a democracia direta quanto o PS. A única coisa que muda são os métodos e a demagogia para esconder seus objetivos.

São exatamente os diferentes métodos para atingir os mesmos objetivos contrarrevolucionários que fazem do MFA-PC o inimigo principal e imediato do movimento operário e colonial, com o PS ficando em segundo plano. E isso se deve ao fato de o plano do MFA-PC ser bonapartista, de supressão total das liberdades democráticas e dos trabalhadores. O PS tem a posição oposta: defesa da democracia burguesa e de suas liberdades, contra o MFA-PC e contra os órgãos de poder da revolução dos trabalhadores.

Essa última questão é fundamental. Neste momento, o PS e sua política de defesa das liberdades democráticas e do parlamento coincidem, em um aspecto limitado, com as necessidades do movimento operário e de massas, e ajudam a enfrentar o plano bonapartista do MFA-PC. Insistimos na expressão “limitado”, porque a necessidade mais urgente é desenvolver os órgãos do poder dos trabalhadores, a revolução dos trabalhadores, e não defender a democracia burguesa. Mas a defesa dos direitos do Partido Socialista não é apenas a defesa da democracia burguesa, mas também da democracia dos trabalhadores. E, diante da tentativa bonapartista do MFA-PC, até mesmo a defesa da democracia burguesa é progressiva. Não vemos uma contradição entre a defesa das liberdades democráticas e dos direitos do PS e o desenvolvimento dos órgãos do poder dos trabalhadores; pelo contrário, é uma combinação revolucionária, explosiva e indispensável.

Sem conquistar os trabalhadores socialistas e neutralizar ou conquistar as classes médias urbanas e rurais que votam no PS, não pode haver revolução das comissões de trabalhadores e comitês de soldados em Portugal. Abandonar o programa democrático-burguês, não defender o diário “República”, tem o mesmo significado que se os bolcheviques não tivessem lutado durante todo o ano de 1917 pela Assembleia Constituinte, o que significaria que os sovietes não tomariam o poder.

Essa discussão sobre quem desempenha o papel mais reacionário, neste momento em Portugal, é obscurecida pela formação de “Assembleias do Povo” pelo MFA. Muitos consideram, talvez com razão, que esse é o início de uma organização soviética. À distância, parece-nos precipitado considerá-las como tal. Mesmo supondo a melhor variante: que essas Assembleias Populares sejam transformadas em sovietes, isso não mudaria em nada o que estamos dizendo. A polícia czarista e o czar não mudaram seu caráter contrarrevolucionário pelo fato de terem incentivado, no início, o primeiro soviete, como uma manobra que supunham que enfraqueceria o movimento revolucionário legal. O imperialismo francês também não mudou sua natureza por ter incentivado, na Argélia, organizações comunitárias árabes que ele acreditava poder contrapor às guerrilhas nacionalistas.

Mas tanto na Rússia quanto na Argélia, os revolucionários reverteram a manobra contrarrevolucionária. Com base no fato de que as massas preencheram essas formas organizacionais com um conteúdo revolucionário, acompanhando essas massas e levando esse conteúdo adiante, os revolucionários transformaram a manobra em um “bumerangue” contra os governos contrarrevolucionários.

Todas essas circunstâncias nos levam a dizer que o grande perigo do momento atual para a revolução portuguesa é o governo do MFA com seu projeto bonapartista. Infelizmente, não encontramos a mesma definição indispensável em outros companheiros.

Lívio Maitan nos fala – em “MFA ou democracia revolucionária dos trabalhadores” – de “inevitáveis tentativas de golpe”. O que ele quer dizer com “inevitáveis tentativas de golpe”? Trata-se de um golpe do tipo Spínola ou de um “maio catalão” do MFA-PC? Quem está em condições de realizar um “golpe” em Portugal hoje? O camarada Maitan deveria especificar melhor qual é o verdadeiro perigo imediato, concreto e atual para os trabalhadores portugueses.

Horowitz, por sua vez, denuncia o MFA-PC. Ele nos diz, no entanto, que o maior pecado do PC é desarmar as massas diante da reação e compara a situação portuguesa com a do Chile antes de Pinochet. Achamos que isso é um erro. O Pinochet português, Spínola, já foi derrotado. No momento, ele não tem forças para tentar outro golpe. E o maior pecado do PC não é desarmar as massas diante do perigo – por enquanto inexistente – de um golpe de Estado da burguesia portuguesa, mas ser o executor direto, junto com o MFA, de um plano bonapartista contrarrevolucionário. O perigo imediato para a classe trabalhadora não é o golpe Spínola-Pinochet, que afogaria em sangue os trabalhadores e o próprio PC, mas a ofensiva bonapartista do MFA-PC que, em comum acordo, mais cedo ou mais tarde tentará reprimir os trabalhadores.

Lembremo-nos do exemplo histórico que já demos: o MFA está passando do estágio demagógico do período de Largo Caballero para o de Negrin-Stalin, embora sintetizando ambos.

A necessidade de uma análise teórica correta para que se tenha uma política correta nunca foi tão essencial como agora. Partir de uma caracterização precisa da natureza do atual regime português é a única maneira de chegar a uma política marxista revolucionária em Portugal.

Aqueles que sustentam que o inimigo principal é o Partido Socialista e silenciam o papel do MFA-PC, impressionados com a sua demagogia e com a formação das Assembleias Populares, só poderiam defender a sua política se caracterizassem o atual governo português como um governo bonapartista “sui generis” de “esquerda” num país semicolonial, ou como um governo operário e camponês, ou simplesmente como um governo democrático-burguês ou bonapartista cercado por um perigo maior: o fascismo. Nesse caso, o PS teria se tornado a organização da pequena burguesia ultrarreacionária e desesperada que, impulsionada pelo capital financeiro, se lançou em uma guerra civil contra o movimento operário, popular e democrático. Se esse fosse o caso, estaríamos testemunhando um verdadeiro milagre sociológico-político, que exigiria uma revisão da herança teórica do leninismo-trotskismo, já que, pela primeira vez na história, a fábula stalinista do “social-fascismo” teria se tornado uma realidade.

A posição de outros companheiros de defender apenas a democracia burguesa ou operária parte, consciente ou inconscientemente, de outras premissas teóricas: a saber, que o atual regime é puramente bonapartista, que, consequentemente, não estamos diante de uma revolução operária com importantes embriões de duplo poder nas fábricas e quartéis, que o movimento operário está em retrocesso e que, por isso, a única linha a ser adotada é uma política defensiva das liberdades democrático-burguesas diante da ofensiva bonapartista do atual governo.

Por fim, a partir da definição de kerenskismo que defendemos, surge uma política diametralmente diferente das duas anteriores: desenvolvimento da revolução operária em andamento para que ela possa tomar o poder derrotando o governo contrarrevolucionário do MFA-PC, que quer nos fazer voltar a um regime bonapartista; e, para isso, desenvolvimento e centralização de todas as sementes do poder dual, defesa e desenvolvimento de todas as conquistas, incluindo as conquistas democráticas operárias e burguesas, a fim de conquistar todos os trabalhadores para os órgãos do poder da classe trabalhadora.

2. Nem um programa democrático mínimo, nem um programa máximo de poder e democracia exclusivamente dos trabalhadores. Por um programa de transição para que as comissões de trabalhadores e os comitês de soldados assumam o poder.

Já vimos que as massas portuguesas enfrentam três perigos: o plano bonapartista contrarrevolucionário do MFA-PC; o plano democrático-burguês parlamentar do PS e seus aliados da burguesia imperialista portuguesa; o estrangulamento econômico provocado pela sabotagem imperialista. Desses três perigos, o mais imediato é o projeto antidemocrático-bonapartista do MFA e do PC, já que são eles que estão no governo e não há perigo imediato de um novo golpe de Estado bonapartista ou do surgimento de um movimento de massas fascista.

Esse aspecto da situação atual não deve nos fazer perder de vista a situação como um todo, que é caracterizada por um regime kerenskista com poderosos germes de poder dual, que infelizmente só mobilizam uma seção minoritária do movimento de massas. A existência desse regime, como já apontamos, significa que a situação está madura ou amadurecendo para a revolução dos trabalhadores ou para uma reversão a um regime contrarrevolucionário, seja parlamentar ou bonapartista (com o tempo, pode até ser fascista).

Na situação atual, dois polos estão se confrontando: a contrarrevolução bonapartista do MFA-PC contra os germes do poder dual e todas as outras expressões do movimento de massas relativamente independentes do governo: sindicatos não stalinistas, partidos socialistas, maoístas, etc. Há camaradas que levam em conta, esquematicamente, apenas um dos elementos da realidade: alguns vêem apenas a ofensiva do bloco bonapartista MFA-PC; outros ignoram o caráter contrarrevolucionário do governo e o principal inimigo da revolução e consideram apenas o duplo poder, esquecendo-se dos outros setores do movimento de massas, do Partido Socialista majoritário, das massas angolanas, dos trabalhadores e soldados que não estão nos comitês e que são a grande maioria. Dessa forma, posições antagônicas, todas elas unilaterais, foram delineadas em nosso movimento.

Alguns camaradas sugerem uma posição correta, mas parcial e insuficiente: a defesa das liberdades democráticas burguesas e operárias e da revolução colonial, atacadas pela reação do MFA-PC. Por isso, eles propõem essencialmente um programa democrático mínimo e a retirada das tropas de Angola para o atual estágio da revolução portuguesa, sem vincular essas tarefas democráticas defensivas às sementes do poder dos trabalhadores: as comissões de trabalhadores e os comitês de soldados. Parece que o governo português é um governo democrático-burguês ou bonapartista de uma situação burguesa normal que começou a atacar as liberdades democráticas e dos trabalhadores em um típico curso bonapartista reacionário. Na verdade, o caráter socialista da revolução é negado ao limitá-la ao democrático.

Esse erro de isolar a defesa das liberdades democráticas e a revolução colonial dos germes da dualidade de poder e dos outros graves problemas que as massas portuguesas enfrentam tem seu oposto pelo vértice na posição de outros companheiros. Para Livio Maitan, o eixo central de uma estratégia revolucionária é “estabelecer e ampliar” os “órgãos da democracia proletária” a fim de combater o “inevitável putsch” e “as manobras do capitalismo local e internacional”. “Ao mesmo tempo, os revolucionários devem lutar pela conquista de todas as demandas democráticas das massas mais amplas, o que ‘significa’ a luta pela democracia sindical”. (” MFA ou democracia revolucionária? ”)

Como vemos, Maitan dá aos “órgãos da democracia proletária” um objetivo defensivo relativamente distante e profundamente pessimista: lutar contra o “inevitável putsch”. No entanto, há uma maneira de não haver “putsch” ou, se houver, de ele ser derrotado imediatamente: os “órgãos da democracia proletária” tomarem o poder. Por que ele não diz isso? Por que ele não aponta que esses órgãos estão destinados a tomar o poder ou, se não o fizerem, a desaparecer porque são incompatíveis com a existência do regime capitalista? Por que ele não os define como organizações para a ofensiva revolucionária que, embora taticamente possam cumprir tarefas defensivas, não perdem assim seu caráter de organizações para a revolução socialista?

Mas há outros problemas imediatos que as massas enfrentam, de caráter mais urgente, que a estratégia do camarada Maitan não contempla, principalmente o plano contrarrevolucionário antidemocrático do MFA-PC. Os “órgãos” devem combatê-lo ou não? Não é uma questão, como diz Maitan, de não “fortalecer a autoridade e os órgãos do MFA”, como se fosse uma competição entre organizações de massa. Trata-se de algo mais concreto e decisivo: confrontar e esmagar, a partir dos “órgãos da democracia dos trabalhadores”, a “autoridade e os órgãos do MFA”, lutar e denunciar seus planos e preparar, por meio da luta e da propaganda, o inevitável confronto físico com o governo. E tem mais: a crise econômica e o desemprego, que se agravam a cada dia, são o problema mais grave que as massas enfrentam. Será que os “órgãos da democracia proletária” não têm nada a ver com isso? Em Angola, o exército imperialista português ainda está lá para servir às manobras colonialistas do MFA. Não há nada a propor aos “órgãos” sobre isso? Se as liberdades são suprimidas, o SP e os maoístas são perseguidos, exigimos que as comissões de trabalhadores os defendam?

Muitos camaradas cometem o mesmo erro de Maitan: fazer declarações gerais a favor dos órgãos de duplo poder sem relacioná-los às necessidades peremptórias que as massas enfrentam, sem estruturar em torno deles um programa que contemple e dê uma solução para todas as tarefas do movimento de massas, fundamentalmente para a mais urgente e imediata de todas nesta fase, a revolução socialista, a tomada do poder por esses órgãos, a denúncia e o confronto sistemático do MFA no governo até alcançar a insurreição contra ele.

Os “órgãos da democracia proletária” são a forma mais democrática de organização da classe trabalhadora. Como todas as formas de organização, eles são apenas isso, uma forma; eles precisam de um conteúdo, precisam saber para que servem, que problemas da classe trabalhadora devem resolver. Sem um programa de transição que aponte soluções para os problemas mais prementes da classe trabalhadora e do povo, sem a afirmação de que a tarefa central dessa forma de organização é a revolução socialista, contra o governo do MFA-PC, os “órgãos da democracia proletária” se tornam uma forma vazia, que pode ser preenchida com conteúdo reacionário – órgãos momentâneos do Estado burguês ou dos sindicatos – e depois desaparecer, porque a reação capitalista triunfa diretamente.

Isso é o que pode acontecer hoje em Portugal, pois a ultraesquerda tenta transformar os comitês em sua tendência política e permite que o governo manobre com eles.

Por fim, não podemos especificar os famosos “órgãos”? Eles existem ou ainda não? Se não existirem, devemos nomear os que serão fundados. Se existem, devemos chamá-los pelo nome. Não são as comissões de trabalhadores e os comitês de soldados, como pensamos? São as assembleias populares fundadas pelo MFA? Não são, mas podem se tornar? Precisamos nos manifestar, a situação revolucionária exige isso mais do que nunca.

Dizemos isso por causa da falta de precisão e clareza sobre o caráter, a força e a dinâmica desses órgãos. Maitan nos diz que eles devem ser ampliados, mas será que eles controlam apenas uma parte mínima do movimento de massa, como dizemos? Se sim, estamos diante de um problema de vida ou morte na ampliação desses órgãos: conquistar para eles o movimento de massa, principalmente a maioria do movimento operário e as pessoas que votaram nos socialistas, bem como os camponeses que votaram nos partidos burgueses e nos trabalhadores stalinistas. Como conquistá-los? Fazendo com que esses órgãos assumam a liderança na defesa de todos esses setores contra o ataque reacionário do governo do MFA, transformando os “órgãos” em organizações unitárias para a mobilização revolucionária contra o governo. Se não dermos esse caráter aos órgãos, não há como ampliá-los e, o que é pior, eles podem ser usados como ferramentas do plano bonapartista do MFA. Ao não denunciarmos o MFA como o principal inimigo dos trabalhadores no momento, essa manobra é facilitada.

Esse deve ser o eixo de nossa intervenção resoluta e ousada nas organizações que surgem com possibilidades de se desenvolverem como órgãos do poder dos trabalhadores. Enquanto os agentes do MFA irão, com seus “idiotas úteis” de ultraesquerda, a essas organizações para levantar problemas administrativos divisórios ou para atacar a social-democracia “contrarrevolucionária e agente do imperialismo”, nós devemos ir lá para denunciar o governo e defender as massas de seu ataque. A pauta das reuniões dos “órgãos” de base seria um único ponto, com muitos subpontos: como defender o povo angolano, o PS, os maoístas, a classe trabalhadora, os soldados, os camponeses, do ataque do governo contrarrevolucionário. Não devemos nos deixar desviar desse objetivo único, embora multifacetado, de denunciar o governo, de preparar as massas politicamente, por meio da propaganda, para o inevitável confronto físico e insurrecional contra ele. Se não conseguirmos estender os “órgãos” para abranger as massas como organizações de duplo poder para a luta frontal contra o governo contrarrevolucionário do MFA, até que ele seja derrotado, eles se tornarão, não órgãos de poder, mas mais uma manobra engenhosa da burguesia, que conseguiu enganar muitos elementos nas fileiras da ultraesquerda.

Mais uma vez, somente um programa de transição que una todas as seções do movimento de massas, começando pelos trabalhadores socialistas, por serem os mais numerosos, pode conseguir a extensão dos órgãos de poder, sejam eles comitês de trabalhadores e soldados ou assembleias populares. E enquanto não conseguirmos fazer com que esses comitês ou embriões de poder duplo deixem de ser manobrados pela ultraesquerda e usados pelo MFA, não conseguiremos elevá-los a organização para a mobilização revolucionária das massas. Hoje, infelizmente, esses órgãos são controlados pela ultra. É por isso que nosso movimento tem a obrigação de não esperar nem um minuto para que esses comitês mudem suas políticas e liderança de ultraesquerda antes de agir. Devemos lutar agora, neste exato momento, para impor o programa de transição que a realidade exige, com ou sem os órgãos de base.

Isso significa lutar hoje na linha de frente, ao lado dos trabalhadores socialistas, pela defesa das liberdades democráticas. Isso significa levantar agora, neste momento, a palavra de ordem da retirada imediata e incondicional das tropas portuguesas de Angola.

Por meio dessa luta, seremos capazes de dar nova vida e sacudir os órgãos ou embriões do poder dual.

3. Os exemplos da Espanha e da França

O que dissemos é perfeitamente conhecido pelo trotskismo. “The Militant”, ao comparar as revoluções russa e portuguesa, insiste na necessidade de formas soviéticas. De fato, o partido bolchevique manteve uma linha central durante todo o ano crucial de 1917: a de dar todo o poder aos sovietes. Todos os outros slogans – “Fora os ministros burgueses”, “Todos contra Kornilov”, “Boicote”, “Assembleia Constituinte”, “Paz” etc. – eram táticos, combinados com o fundamental e estratégico da revolução operária e socialista por meio da tomada do poder pelos sovietes.

Pode-se objetar que essa estratégia se justificava na Rússia, onde os sovietes existiam e eram centralizados em nível de todo o império, mas não em Portugal, onde não há nada parecido. Não é esse o caso. Sempre, em todos os países onde se iniciou um período pré-revolucionário ou revolucionário, o trotskismo tirou uma conclusão estratégica revolucionária: impulsionar os germes do duplo poder existente ou, onde ele não existia, ser seu iniciador, como forma de orientação para a revolução socialista e a tomada do poder pela classe trabalhadora. Foi assim que, em situações muito menos revolucionárias do que a atual situação portuguesa, os trotskistas levantaram como ponto fundamental de seu programa a criação ou o desenvolvimento de sovietes ou outros órgãos de poder dual. Esses foram os casos da Espanha, a partir de 1931, e da França, em meados da década de 1930.

A partir de 1931, abriu-se na Espanha uma situação pré-revolucionária muito menos aguda do que a existente hoje em Portugal, ou em 1917 na Rússia, entre outras razões, porque o exército espanhol não havia sofrido nenhuma crise e pôde se manter como o mais forte bastião da contrarrevolução. Apesar disso, Trotsky nunca se cansou de apontar que a única política correta era a luta por tarefas democráticas, mas tendo como eixo o desenvolvimento dos órgãos do poder operário.

“As massas da cidade e do campo”, disse Trotsky em 12 de janeiro de 1931, quando a revolução espanhola tinha acabado de começar, ”podem se unir no momento atual apenas com base em slogans democráticos […] Por outro lado, será obviamente possível construir sovietes no futuro imediato apenas mobilizando as massas com base em slogans democráticos. (Trotsky, “The Spanish Revolution”, idem, p. 66). Em uma de suas obras mais importantes daquele período, “A Revolução Espanhola”, de janeiro de 1931, apesar de um retrocesso circunstancial do movimento, Trotsky dedica um capítulo especial para explicar a necessidade de promover as “juntas revolucionárias”, o nome espanhol para os sovietes. Seu slogan é conclusivo: “O que está na ordem do dia hoje na Espanha são as juntas de trabalhadores”. Ele também insiste na necessidade de juntas de camponeses e soldados (Op. cit., p. 86).

Em abril do mesmo ano, nos “Dez mandamentos para os comunistas espanhóis”, Trotsky resume o programa revolucionário para a Espanha da seguinte forma: nos pontos sete e nove, ele apresenta o programa democrático e agrário, respectivamente, mas no ponto oito – que une, e não por acaso, os outros dois – ele ressalta que a “palavra de ordem central do proletariado é a dos sovietes de trabalhadores”. E, para esclarecer a confusão, ele diz, uma linha adiante, que “os sovietes dos trabalhadores não significam a luta imediata pelo poder”. (Op. cit., p. 104, sublinhado pelo autor).

No dia 20 do mesmo mês, ele sintetiza todo o programa leninista-trotskista para a Espanha da seguinte forma:

Em outras palavras, é necessário que os comunistas, no momento atual, se postulem como o partido que defende a democracia da maneira mais consistente, decisiva e intransigente. Por outro lado, é necessário proceder imediatamente à formação de sovietes de trabalhadores. A luta pela democracia é um excelente ponto de partida para isso. Eles têm seu próprio governo municipal; nós, trabalhadores, precisamos de nossos próprios conselhos municipais para proteger nossos direitos e interesses. (Op. cit., p. 107).

Trotsky insiste novamente na mesma linha, no final de maio, em um de seus artigos fundamentais, “A Revolução Espanhola e os perigos que a ameaçam”:

No entanto, a tarefa imediata dos comunistas espanhóis não é a luta pelo poder, mas a luta pelas massas e, além disso, essa luta se desenvolverá no próximo período com base na República burguesa e, em grande medida, sob a consiga da democracia. A formação de juntas de trabalhadores é, sem dúvida, a principal tarefa da atualidade. (Op. cit., p. 128).

Em setembro de 1931, em uma carta, Trotsky comenta que a palavra de ordem dos sovietes não foi adotada pela classe trabalhadora e chega à conclusão de que é necessário insistir que a principal tarefa é o desenvolvimento de um polo de poder dos trabalhadores:

De qualquer forma, se a palavra de ordem dos sovietes (juntas) não tem resposta, então devemos nos concentrar na palavra de ordem dos comitês de fábrica. (…) Sobre a base dos comitês de fábrica, podemos desenvolver a organização soviética sem nos referirmos a ela pelo nome. (Op. cit., p. 162).

Após o triunfo eleitoral da frente popular e antes da guerra civil, ele insiste novamente na mesma posição. Em abril de 1936, referindo-se às tarefas dos trotskistas naquela época, ele enfatiza nos pontos 8 e 9:

“Insistir sempre para que as massas em luta formem e ampliem constantemente seus comitês de ação (juntas, sovietes) eleitos ad hoc. […] Contrapor o programa da conquista do poder, a ditadura do proletariado e a revolução social a todos os programas híbridos (a la Caballero, ou a la Maurin). [Esse é o verdadeiro caminho da revolução proletária. Não há outro”.

Não queremos entrar novamente na discussão sobre a existência ou não de um paralelo tão grande entre a Espanha republicana e o Portugal atual, como acreditamos que exista. O que não pode haver dúvida é que, em condições muito menos revolucionárias do que em Portugal hoje, para Trotsky o slogan e o eixo essencial de nossa política era a criação de sovietes ou organismos do poder da classe trabalhadora.

Tampouco pode haver qualquer dúvida de que Trotsky também lutou contra as tendências que – como Maitan faz hoje – propuseram o programa dos sovietes ou da ditadura do proletariado não vinculado aos slogans democráticos e transitórios que as massas tinham em mente. Já citamos como ele apontou que a “luta das massas” se desenvolveria por um período “com base na República Democrática e, em grande parte, sob o slogan da democracia”. Por uma questão de brevidade, lembraremos apenas que, ao criticar a “plataforma da Federação Catalã”, que propunha que “as massas trabalhadoras deveriam se organizar em todas as províncias com base em juntas revolucionárias”, Trotsky respondeu com azedume:

Com que objetivo? Nenhum programa é indicado. Não apenas não há menção de que juntas desse tipo devam ser a garantia da passagem revolucionária do poder para as mãos dos trabalhadores e camponeses pobres, mas também não há nenhum programa de reivindicações transitórias…. Eles não mencionam que a junta é uma organização do proletariado e das massas exploradas contra a classe no poder, ou seja, contra a burguesia. A junta é considerada uma “organização revolucionária” no espírito da tradição da pequena burguesia espanhola. (Op. cit., p. 137, sublinhado pelo autor).

Vamos nos voltar agora para o exemplo francês. Em 1935, quando um governo bonapartista reacionário estava em ascensão e o fascismo estava se desenvolvendo junto com a crise econômica, Trotsky não apresentou um programa de liberdades democráticas – como fez o stalinismo – mas um programa muito diferente:

Explicando todos os dias às massas que o capitalismo burguês em decomposição não deixa espaço, não apenas para a melhoria de sua situação, mas até mesmo para a manutenção do nível usual de miséria; colocando abertamente diante das massas a tarefa da revolução socialista, como a tarefa imediata de nossos dias, mobilizando os trabalhadores para a tomada do poder; ao defender as organizações dos trabalhadores por meio da milícia; os comunistas (ou socialistas) não perdem, ao mesmo tempo, uma única oportunidade de arrancar do inimigo, no caminho, esta ou aquela concessão parcial, ou pelo menos impedi-lo de reduzir ainda mais os padrões de vida dos trabalhadores. (Leon Trotsky, ”Para onde vai a França? “Ed. Pluma, Buenos Aires, 1974, pp. 67-68)

Em junho de 1936, com base nas ocupações e na frente popular, Trotsky apresentou o seguinte programa:

No momento, os comitês de ação não podem ser nada além de comitês dos grevistas que ocupam as empresas. De oficina em oficina, de fábrica em fábrica, de bairro em bairro, de cidade em cidade, os comitês de ação devem estabelecer vínculos estreitos entre si, reunir-se em conferências por cidade, por ramo de produção, por distrito, para terminar em um congresso de todos os comitês de ação da França. Essa é a nova ordem que deve substituir a anarquia atual. “(Op. cit., p. 154).

Esse texto é de 5 de junho de 1936; alguns dias depois, em 9 de junho, ele insiste em uma posição semelhante à adotada em relação à Espanha:

A nova organização deve responder à natureza do próprio movimento, refletir as massas em luta, expressar sua vontade mais forte. É um governo direto da classe revolucionária. Não há necessidade de inventar novas formas aqui: há precedentes históricos. As oficinas e fábricas elegem seus representantes, que se reúnem para elaborar planos para a luta e para liderá-la. Não há nem mesmo necessidade de inventar o nome de tal organização: são os sovietes dos deputados dos trabalhadores. (Op. cit., p. 162, sublinhado pelo autor).

Estaria Trotsky errado ao colocar tanta ênfase e considerar a criação e o desenvolvimento dos sovietes ou de outros órgãos de poder como o pivô da política revolucionária, subordinando todas as outras palavras de ordem a essa tarefa? Ou estaria ele certo e, deixando de lado as diferenças táticas, é essa a linha correta no Portugal de hoje? A nossa opinião é a segunda: as comissões de trabalhadores e os comitês de soldados devem ser defendidos, desenvolvidos e centralizados, devem receber a perspectiva da revolução socialista, devem ser preparados para a inevitável luta armada contra o governo, devem ser combinados com todas as tarefas que as massas portuguesas enfrentam.

Qualquer outra política não é trotskismo, mas “poumismo” de diferentes tipos, que usam o programa bolchevique-leninista para esconder tanto a denúncia e o confronto com o governo contrarrevolucionário do MFA-PC, como a revolução socialista, que são as duas tarefas imediatas que as massas portuguesas enfrentam.

4. Por um programa de transição que leve à revolução das comissões de trabalhadores e dos comitês de soldados contra o governo do MFA-PC-PS

Devemos evitar qualquer tentação de elaborar um programa que seja uma coleção de consignas de todo tipo. O programa deve ser um conjunto de consignas para um estágio da luta inserido em uma estrutura programática, não uma coleção. O eixo deve ser o já indicado: desenvolver e centralizar os germes do poder dual para que eles tomem o poder. Só assim conseguiremos um programa compreensível para a revolução portuguesa. Em nossa opinião, ele deve ser, grosso modo, o seguinte:

A – Um plano econômico e de obras públicas das comissões e comitês para superar o problema número um: a crise econômica, o desemprego e os salários de fome dos soldados.

Não há problema mais urgente para as massas portuguesas do que superar o atual caos econômico, o desemprego e os salários de fome dos soldados. Para isso, é necessário que as comissões de trabalhadores e soldados discutam um plano econômico e de obras públicas que dê trabalho a todos os portugueses e um salário mínimo e móvel, extensivo também aos soldados. Nesse plano, defenderemos a necessidade de nacionalizar o comércio exterior, a terra e a indústria. Não é necessário esperar que o congresso nacional das comissões de trabalhadores se reúna para tomar medidas nesse sentido. Agora mesmo, em nível de cada bairro, ramo industrial ou grupo monopolista, devemos começar a adotar medidas concretas para dar trabalho aos desempregados e resolver seus problemas. Para terminar de desmascarar o MFA-PC-PS, teremos de propagandear nosso plano ou o de algumas comissões de trabalhadores para que todo o movimento de trabalhadores o discuta, exigindo que o governo o coloque em prática.

B – Abaixo as regulamentações do governo sobre o direito de greve e sindicalização. Pela democratização da Intersindical. Por sindicatos revolucionários do que a luta das comissões de trabalhadores pelo poder.

Os funcionários e burocratas do MFA têm o hábito de participar das assembleias dos sindicatos industriais, convidados e tolerados pela burocracia stalinista. Não satisfeitos com isso, eles promulgaram duas leis ultra-reacionárias: contra o direito de greve e pelo reconhecimento das atuais lideranças dos sindicatos industriais sem novas eleições. Não devemos descansar até expulsarmos as tropas ou os funcionários do MFA das assembleias. Devemos fazer isso taticamente, sem entrar em conflito com os soldados, afirmando que eles podem ficar se aceitarem a disciplina da assembleia de trabalhadores e devem sair se não aceitarem. Devemos denunciar a burocracia stalinista por sua cumplicidade com os oficiais do MFA dentro das assembleias. Nossa defesa intransigente da Intersindical e dos sindicatos industriais deve andar de mãos dadas com a denúncia de sua burocratização e falta de democracia. Devemos exigir eleições e representação proporcional para as diferentes tendências sindicais. Devemos formar, com os ativistas das comissões de trabalhadores que acreditam que os sindicatos devem ser a favor da revolução das comissões de trabalhadores, tendências sindicais revolucionárias. Devemos lutar incansavelmente para revogar as leis que permitem que o estado burguês intervenha na vida sindical. Os trabalhadores têm o direito de se associar ou fundar a organização sindical de sua escolha.

C – Pelo controle dos trabalhadores sobre as empresas nacionalizadas. Tirar os burocratas do MFA das empresas nacionalizadas ou ocupadas. Livrar-se dos gerentes do MFA dos bancos nacionalizados. Pelo controle de todos os bancos por um comitê das comissões das empresas nacionalizadas.

É preciso incutir nos trabalhadores que, onde entra um funcionário ou burocrata do MFA, entra seu inimigo de classe. Devemos insistir para que tudo fique sob o controle deles e não passe para as mãos de gerentes indicados por nossos pérfidos inimigos, os burocratas do MFA. Chegou a hora de ocupar as fábricas ociosas ou mal administradas para que comecem a trabalhar com seriedade, impondo, sempre que possível, a “administração direta pelos trabalhadores”. É necessário exigir que o Estado pague os salários. Mas o problema fundamental é o dos bancos nacionalizados. Seus fundos, que são substanciais, devem ser colocados a serviço dos trabalhadores e das comissões de trabalhadores: contra a sabotagem financeira, controle dos bancos. Assim, combinando o controle bancário e industrial, e até mesmo indo até a administração, combateremos as duas formas de sabotagem.

D – Avançar com as ocupações de fábricas, terras e casas.

O proletariado português ocupou várias fábricas, casas, estabelecimentos e algumas terras. Esse método revolucionário deve ser mais desenvolvido. Por meio das ocupações, será estabelecida a unidade da classe trabalhadora com os pobres das cidades e do campo. Que os camponeses pobres e os trabalhadores agrícolas não esperem nem mais um minuto: ocupem a terra, ela é sua.

E – Retirar os burocratas oficiais do MFA das comissões de trabalhadores.

Independência das comissões de trabalhadores em relação aos sindicatos stalinistas. Se forem úteis, vamos às assembleias populares para expulsar os funcionários do MFA. Não vamos descansar até conquistarmos as lideranças dos órgãos de base da ultraesquerda, o agente vociferante do MFA.

Sob o pretexto de apoiar as organizações de base, os funcionários do MFA e seus burocratas vão às assembleias e tentam manipular as comissões de trabalhadores. Habilmente, eles agora tentam criar “Assembleias do Povo” dirigidas por eles e seus funcionários stalinistas a fim de controlar melhor o poder dos trabalhadores e impedir a livre iniciativa revolucionária da classe. A todos os “forasteiros”, começando pelos oficiais, deve ser dito que, para permanecerem nas assembleias de base, eles devem romper publicamente com toda a disciplina do MFA, do governo e das forças armadas, aceitando apenas a dos órgãos de base. Se não fizerem isso, não descansaremos até que sejam expulsos. As comissões de trabalhadores devem denunciar os oficiais do MFA como seus inimigos declarados. Isso não significa que não sejamos táticos, especialmente em relação às assembléias populares. Também devemos agir contra os trabalhadores e soldados que vão até elas. Devemos até mesmo estar em alerta caso eles realmente comecem a adquirir algumas características soviéticas e, nesse caso, teremos de desenvolvê-las. Mas, mesmo assim, a política será a mesma: denunciar, marcar e expulsar os oficiais do MFA e seus agentes.

O outro lado dessa política deve ser a nossa luta dentro desses órgãos de base para conquistar a liderança e expulsar a ultraesquerda, o agente do MFA, apesar de suas frases e discursos ultrarrevolucionários. Para conseguir isso, devemos levantar sistematicamente a questão de que as comissões de trabalhadores e os comitês de soldados devem apoiar todas as lutas dos trabalhadores e do povo contra o governo. A ultra afogará essas demandas “mínimas” em um rio de frases revolucionárias. Devemos insistir repetidamente – sem nos cansarmos – até provarmos para as bases dos trabalhadores e dos soldados que a ultra só sabe fazer barulho e não sabe como enfrentar o governo. Hoje devemos ser os campeões da defesa dos direitos do Partido Socialista, dentro das comissões de trabalhadores e soldados. Todo camarada trotskista que, por medo de ataques da ultraesquerda, não defende apaixonadamente nos comitês os direitos do PS de ter sua imprensa e outros meios de comunicação de massa, está ajudando a prostituir e degenerar esses órgãos de base, permitindo que eles sejam transformados em armas da contrarrevolução bonapartista do MFA.

Devemos propor contra a ultra-esquerda, o servo vociferante da ala “esquerda” do MFA (ou seja, o MFA), que esses comitês vão com suas próprias palavras de ordem e cartazes às manifestações socialistas em favor da “República”. Dessa forma, frustraremos muito mais rapidamente as manobras contrarrevolucionárias do PS, que quer impor seu governo de frente popular e odeia as sementes do duplo poder tanto ou mais do que o governo.

Uma manobra mais sutil, mas não menos perigosa, é a tentativa da burocracia sindical stalinista de transformar as comissões de trabalhadores em órgãos normais dos sindicatos. Contra isso, nossa consigna é a total independência das comissões de trabalhadores em relação aos sindicatos stalinistas.

F – Apressemos a crise do exército imperialista. Pela extensão das assembleias e comitês de soldados e suboficiais. Derrotemos as manobras do MFA no exército, expulsando os oficiais dessas assembleias. Vamos armar o proletariado. Vamos começar a formar um exército de milícias de trabalhadores e soldados que elegem seus oficiais.

O setor onde o duplo poder é mais explosivo é o exército. É preciso dar a ele uma perspectiva e um objetivo claros: derrubar o governo imperialista para dar poder total às comissões. Sua crise deve ser acelerada com palavras de ordem ousadas e práticas, agora, imediatamente. As assembleias e comissões de soldados e suboficiais devem ser estendidas a todas as unidades das forças armadas.

Até que as milícias de trabalhadores e soldados sejam criadas, deve-se propor que os soldados elejam seus oficiais e que, nesse meio tempo, os oficiais não possam participar das assembleias de soldados nem ser eleitos para os comitês, a menos que rompam com a disciplina das forças armadas e do MFA. Dessa forma, derrotaremos as manobras do MFA para fazer certas concessões democráticas a fim de conquistar a vontade dos soldados em favor do exército imperialista.

Contra as manobras do MFA para discutir problemas administrativos ou dar cursos nas assembleias, devemos exigir que os problemas atuais e candentes da revolução portuguesa sejam discutidos, a começar pelo salário mínimo dos soldados. Neste momento, não há problema mais candente do que o das liberdades democráticas e da defesa do Partido Socialista. Devemos exigir que esse seja o primeiro item da agenda de todas as reuniões e que os representantes do PS sejam convidados a comparecer para explicar sua política. Todos os soldados socialistas devem ser convidados a participar das assembleias para defender seu partido, garantindo-lhes os mais amplos direitos democráticos. Vamos nos opor aos ultraesquerdistas e seus chefes no MFA, se eles quiserem impedir que os socialistas e trotskistas, que exigem e praticam a mais ampla democracia, falem nas assembleias por meio de terrorismo físico e ideológico. Que os socialistas e trotskistas falem, exigindo e praticando a mais ampla democracia. Os soldados devem se voltar contra o governo do MFA e para a defesa dos direitos de todos os partidos, principalmente do Partido Socialista.

As comissões e assembleias de trabalhadores conscientes da necessidade de destruir o exército burguês devem estabelecer contatos estreitos com as assembleias e comitês de soldados dos bairros e atacá-los com essas palavras de ordem. Elas devem considerar imediatamente a ajuda econômica aos soldados, dando-lhes trabalho e estudando junto com eles o que pode ser feito para melhorar sua condição de párias armados. Ao mesmo tempo, deve-se pedir a eles que forneçam armas aos trabalhadores para que eles possam praticar. Quando houver muita confiança, deve-se pedir a eles que coloquem as armas sob o controle de comissões mistas de trabalhadores e soldados. Milícias de trabalhadores e soldados devem ser formadas e devem eleger seus próprios oficiais.

G – Por uma nova Assembleia Constituinte Revolucionária: Pela defesa das liberdades de todos os portugueses. Pela defesa dos direitos democráticos do Partido Socialista e dos maoístas.

A Assembleia Constituinte nasceu morta. Só o governo das comissões de trabalhadores poderá convocar uma nova Assembleia Constituinte, absolutamente livre, soberana e revolucionária, palavra de ordem que nos permitirá denunciar o caráter contrarrevolucionário e antidemocrático do atual governo e desenvolver as verdadeiras liberdades democráticas para todos os portugueses, que só o governo dos trabalhadores poderá garantir. Entretanto, temos de lutar contra todas as medidas antidemocráticas do governo.Temos de dar especial atenção aos direitos democráticos dos maoístas e, fundamentalmente, do partido maioritário dos trabalhadores, o Partido Socialista.

A única maneira de desmascarar o plano contrarrevolucionário do Partido Socialista de afogar a revolução em um regime parlamentar burguês antiproletário é justamente defendendo e até mesmo ampliando seus direitos democráticos. Devemos e podemos convencer a base socialista de que as comissões de trabalhadores e o trotskismo no governo garantirão os direitos democráticos de todos os portugueses. Somente os nossos atos podem convencer os trabalhadores socialistas de que não nos limitamos a falar, mas que fazemos o que dizemos. Nossa propaganda e nossa luta em defesa dos direitos democráticos do Partido Socialista devem ser levadas às comissões de trabalhadores e aos comitês de soldados.

Não devemos temer os ataques dos ultraesquerdistas, do PC e dos funcionários do MFA, que vociferarão que não vale a pena defender o PS porque ele é um agente do imperialismo europeu. Eles são agentes de nosso principal inimigo: o imperialismo português.

Sem convencer os operários socialistas da correção de nossas posições, não poderá haver revolução socialista em Portugal. É por isso que a defesa do Partido Socialista, e do seu direito de continuar a publicar o diário “República” sem censura, é um problema tático de importância fundamental. É aqui que reside, neste momento, uma grande parte da nossa estratégia para fazer a revolução das comissões de trabalhadores.

H – Pela retirada imediata das tropas e armamentos portugueses de Angola. Abaixo as manobras neocoloniais. Pela total autodeterminação nacional, política e econômica das antigas colônias portuguesas.

O exército e o governo portugueses continuam imperialistas. Não há confiança em suas manobras ou supostas boas intenções. Que as nações africanas tomem seus destinos em suas próprias mãos. A única, e não a melhor, ajuda para suas lutas é forçar o governo a retirar imediatamente as tropas e os armamentos de Angola. Qualquer povo que esteja lutando pela libertação nacional ou social sabe onde e como se armar. Os angolanos devem ser os únicos a resolver seus problemas, inclusive a guerra civil. Os portugueses, a única coisa que devem fazer é deixar essa e todas as ex-colônias, forçando o governo a retirar não apenas os soldados, mas também as armas, romper todos os pactos e abandonar todas as manobras neoimperialistas.

I – Pela ruptura com a OTAN e o Pacto Ibérico. Pela Federação Ibérica das Repúblicas Socialistas dos Comitês.

Não basta romper os pactos que ligam Portugal ao imperialismo mundial e à Espanha fascista (OTAN e Pacto Ibérico). Essas medidas devem fazer parte de um processo de revolução na península ibérica, como parte da revolução europeia. A Espanha está começando a se aproximar de uma situação pré-revolucionária; vamos dar uma perspectiva revolucionária, operária e socialista à solidariedade e à irmandade de ambas as revoluções. Pela Federação Ibérica de Repúblicas Socialistas; essa é a palavra de ordem que, ao mesmo tempo em que aponta para essa perspectiva, prevê o direito à autodeterminação dos bascos, catalães, galegos e andaluzes.

J – Por um Congresso Nacional das Comissões de Trabalhadores e Comitês de Soldados para derrubar o governo contrarrevolucionário do MFA e tomar o poder. Pela Revolução Socialista.

Não se trata apenas de convocar o congresso nacional das organizações de base. É necessário dar a ele uma perspectiva e um objetivo claros: derrubar o governo imperialista para dar todo o poder às comissões de trabalhadores e soldados. Se alguém quiser propor hoje a derrubada do governo, ele é um aventureiro: o movimento operário e de massas ainda não está pronto para isso e ainda não construiu o organismo para substituí-lo. Mas quem não apresentar em sua propaganda e ação esse objetivo imediato, o poder para as comissões e comitês, é um oportunista, pois essa é a necessidade e possibilidade objetiva mais imediata e urgente para as massas portuguesas. A grande tarefa é conquistar a classe operária, os soldados e os camponeses para o cumprimento dessa palavra de ordem e para a construção do organismo que a tornará efetiva: o congresso nacional das comissões e comitês.
Educar pacientemente para a tomada do poder é novamente a tarefa dos trotskistas.

5. Não à frente única com o PC e os outros partidos reformistas! Sim ao trabalho na Intersindical e, fundamentalmente, nos Comitês de Trabalhadores e Soldados!

Aparentemente, a principal tarefa de Trotsky na Espanha e na França era organizacional: fundar, desenvolver e centralizar os órgãos do poder dos trabalhadores. Em certos momentos da vida de um partido ou de um país, a orientação do trabalho, a localização dos militantes ou as formas de organização vêm à tona. O trotskismo tem considerado uma questão de princípio que seus militantes e partidos trabalhem nos sindicatos, por mais reacionária que seja sua liderança. Nos Estados Unidos, durante décadas, o foco programático foi ostensivamente organizacional: fundar um partido de trabalhadores. Para o movimento negro, foi a favor da organização de um partido negro contra os outros dois partidos burgueses. Mas essas diferentes formas não devem nos fazer esquecer o conteúdo revolucionário de suas fórmulas. Trotsky propôs juntas ou sovietes na Espanha porque essa era a melhor forma de organização para levar a revolução socialista a uma conclusão bem-sucedida. Eram sovietes para fazer a revolução socialista.

Quando dizemos que você não pode ser um trotskista se não for um militante nos sindicatos, estamos dizendo que você não pode ser um discípulo de Trotsky se não acompanhar a classe trabalhadora, a nossa classe, em suas lutas defensivas, primárias e econômicas contra a classe capitalista, e você tem que lutar nas organizações que a classe criou para realizá-las: os sindicatos. O SWP luta incansavelmente por um partido dos trabalhadores como a expressão organizacional da libertação política da classe trabalhadora americana dos partidos burgueses que a exploram, não apenas econômica, mas politicamente.

A conquista de tais organizações, por si só, é um imenso progresso histórico. O surgimento de sindicatos em um país é um marco fundamental no desenvolvimento da consciência da classe trabalhadora. Em princípio, o programa ou a liderança dessa forma de organização é de pouca importância. Por si só, é um avanço colossal. O mesmo acontece com os sovietes ou o partido dos trabalhadores. Não importa que eles tivessem uma liderança e uma política reformista quando foram fundados. Na Rússia, os sovietes foram inicialmente liderados por reformistas, o que não os impediu de serem considerados a maior conquista revolucionária das massas russas. O mesmo ocorreu quando o Partido Trabalhista Britânico foi fundado no início do século.

Entre a forma e o conteúdo há uma relação dialética e contraditória; raramente as direções ou políticas coincidem com o significado profundo de uma forma. Os sovietes, uma forma de estado operário e de revolução socialista, foram inicialmente liderados por aqueles que os usaram para sustentar o capitalismo russo.

Algo semelhante acontece com os métodos de luta, eles têm certa autonomia, são progressivos, úteis em si mesmos, muitas vezes. As greves, as greves gerais, as manifestações, os boicotes, as ações, as ocupações, a insurreição, são todos métodos adequados a diferentes objetivos. Uma greve geral, por qualquer motivo, levanta o problema do poder. O objetivo pode ser um aumento geral de 2% nos salários, mas sua consequência política é o questionamento do poder burguês.

Fazemos essas considerações porque não foi suficientemente enfatizado que a tarefa número um em Portugal é sermos os melhores militantes da Intersindical e, principalmente, das comissões de trabalhadores e comitês de soldados. Mesmo que nossos simpatizantes ou militantes se filiem a outros partidos, isso seria tático: o objetivo deve ser fortalecer o trabalho revolucionário na Intersindical e, essencialmente, nos comitês de diferentes tipos.

Não apontar esse local de trabalho obrigatório, como a tarefa fundamental ou a localização do nosso movimento em Portugal, é fazer propaganda em geral das nossas posições, mas não do que deveríamos estar fazendo, uma organização de luta para impulsionar as lutas de massa em direção à tomada do poder. A realização de um programa de transição no Portugal revolucionário começa com essa primeira abordagem programática. A segunda é irmos até essas organizações para confrontar suas lideranças, agentes do imperialismo e o governo do MFA dentro delas, sejam elas stalinistas, maoístas ou socialistas, para conquistá-las para o nosso programa de transição da revolução operária.

A nova realidade que exige que concentremos nossa militância nas comissões e nos comitês mudou a aplicação tradicional da tática da frente única. Essa é uma tática que precisa de condições concretas para ser aplicada. Ou seja, deve ser uma política que reflita as necessidades mais profundas e as aspirações mais profundas da classe trabalhadora como um todo, não mais uma mera expressão de nossos desejos. Nossa expressão de desejos, ao contrário da realidade, serve, por mais bem-intencionada que seja, apenas para encobrir a política contrarrevolucionária do governo burguês da época. Foi isso que o POUM fez sistematicamente durante a revolução espanhola: com declarações a favor da ditadura do proletariado, da frente única e de outras variantes semelhantes – sem dúvida honestas e bem-intencionadas – ele escondeu os problemas reais enfrentados pela classe trabalhadora e as soluções revolucionárias correspondentes.

O POUM, quando o stalinismo era o principal fator contrarrevolucionário dentro do campo republicano, levantou a palavra de ordem de um “governo formado por representantes de todas as organizações políticas e sindicais da classe trabalhadora, que proporá como suas tarefas imediatas a realização do seguinte programa”; e aqui estava um programa geralmente correto. Para levar a cabo essa política, o POUM propôs que o governo convocasse um “congresso de delegados de sindicatos, camponeses e lutadores, que, no devido tempo, elegerão um governo permanente de trabalhadores e camponeses”.

A frente única não é uma abstração, mas uma ferramenta para o desenvolvimento da luta de classes. Nós, marxistas, somos a favor da frente única das organizações operárias, desde que haja tarefas que os militantes e os partidos considerem comuns. É por isso que o trotskismo sempre considerou que a política do POUM era diretamente uma traição à revolução espanhola, uma vez que se declarava a favor da realização de uma frente única com os partidos traidores, agentes diretos, naquela época, da contrarrevolução.

Isso estava escondendo a verdade do movimento dos trabalhadores: o principal inimigo dos trabalhadores no campo republicano era o governo socialista-stalinista, principalmente o stalinismo. Eles eram os agentes da contrarrevolução burguesa; tinham de ser denunciados politicamente imediatamente, a fim de preparar o confronto físico para mais tarde, quando o movimento de massas estivesse convencido. Concretamente, o trotskismo, que antes do golpe de Franco era a favor da aplicação da política de frente única em suas diferentes variantes, abandona essa política após o golpe, ou melhor, dá a ela uma forma diretamente oposta: desenvolvimento dos comitês de trabalhadores; das ocupações e dos comitês de soldados, sem levantar a frente única entre os partidos dos trabalhadores, agentes diretos da contrarrevolução.

A única área em que ainda há algo parecido com uma ação comum com os partidos reformistas é na luta militar contra Franco. Algo semelhante ao que aconteceria em Portugal se o golpe de Spínola, em vez de ser derrotado, tivesse dividido o país em dois campos opostos na guerra civil, ou ao que acontecerá se, com o passar do tempo, o spinolismo de Spínola for refeito e ameaçar um novo golpe.

Diante do perigo de Spínola, a fórmula da frente única foi apropriada, porque respondeu a uma profunda necessidade e aspiração das massas e dos partidos que as representavam: enfrentá-lo e derrotá-lo. Mas, uma vez que Espínola seja derrubado, essa política deve ser transformada em outra: a denúncia sistemática do Partido Comunista e do MFA, bem como de seu governo, como o perigo mais imediato para os trabalhadores e para as conquistas do movimento operário português e das massas. Não há, não pode haver, por enquanto, nenhum ponto em comum entre a política do PC e a nossa, assim como não havia, dentro do campo republicano, entre a política do stalinismo e a do trotskismo espanhol. O PC é o inimigo frontal da classe trabalhadora, sendo o agente do MFA; o MFA-PC é o inimigo imediato, portanto, nosso e da classe trabalhadora.

Isso não significa que não devemos aplicar a frente unida. Devemos fazê-lo, mas no único nível em que a realidade nos permite fazê-lo. Estrategicamente, abandonamos a forma tradicional de praticar a frente única, o chamado aos partidos. Mas defendemos uma forma primária de frente única: a Intersindical, e uma muito mais elevada: o desenvolvimento em todos os lugares das comissões de trabalhadores, inquilinos e camponeses e dos comitês de soldados. Aos partidos reformistas, propomos que reconheçam e se juntem às comissões, onde todos os seus direitos democráticos serão reconhecidos, mas eles serão obrigados a cumprir suas resoluções.

Justamente por defendermos essa forma mais elevada de frente única, a da democracia direta do movimento de massas, não queremos ser desviados dela com fórmulas de outro estágio, muito mais atrasado, da luta de classes, quando o maior perigo é a ofensiva direta da burguesia, o apelo aos partidos reformistas. Taticamente, devemos e podemos usar as diferenças entre eles, defendendo os direitos democráticos em geral e os do Partido Socialista em particular. Mas essa será uma variante tática, de grande importância, sem dúvida, de nossa política essencial de frente única: desenvolver as comissões de trabalhadores e os comitês de soldados contra a vontade e entrar em conflito com os planos bonapartistas e parlamentares que se opõem a eles, e com os partidos pequeno-burgueses contrarrevolucionários que defendem esses planos: os grupos comunistas, socialistas e maoístas.

6. O acordo com o Partido Socialista para defender as liberdades democráticas

Tudo o que temos dito tem o mesmo perigo em que vários companheiros têm caído: dissolver os problemas políticos concretos em fórmulas abstratas mais ou menos corretas. O programa geral que apresentamos, a necessidade dos militares e de sermos os maiores defensores da Intersindical, das comissões de trabalhadores e dos comitês de soldados, não deve ser usado para fugir das questões do momento e da resposta trotskista a elas. Como parte desse perigo, há outro semelhante: capitular ao fetichismo das organizações nas quais militamos. Se a Intersindical ou as comissões não se manifestarem, fazendo o jogo do governo, ou pior, se manifestarem a favor do governo, abandonamos nossa luta justa pelos problemas concretos.

Dizemos isso porque tem a ver com o acordo que devemos e precisamos fazer com o Partido Socialista para defender seus direitos democráticos. Em Portugal, nestas semanas, estão ocorrendo manifestações a favor do jornal “República” e para arrancar do MFA-PC o quase monopólio do rádio e da televisão. Essa é uma luta extremamente progressista e, como tal, devemos assumi-la e participar plenamente.

A LCR da França, em uma declaração pública que apareceu no “Rouge” em 6 de junho, deu a seguinte posição:

Em Portugal, como na França, exigimos a nacionalização sem indenização ou compensação das fábricas de papel, empresas de imprensa e de radiodifusão, a constituição de um serviço público de imprensa, garantindo as condições de vida e de trabalho dos trabalhadores neste ramo de produção.

E com relação ao conflito específico na “Republica”, eles deram esta outra posição:

Portanto, apoiamos a luta dos trabalhadores da ‘Republica’ pela defesa de suas condições de trabalho; condenamos qualquer tentativa de limitar seu direito de greve. Não aprovamos a forma como esses trabalhadores tiveram, em nome dessa luta, de exercer um direito de censura e não de controle sobre o conteúdo do jornal.

Em primeiro lugar, qual é o significado de uma posição concreta que pode ser aplicada, de acordo com a Liga, tanto em Portugal quanto na França, a “nacionalização da imprensa” para a “constituição de um serviço público de imprensa”?

A LCR copia a posição de Lênin para quando os sovietes e o partido bolchevique assumirem o poder, porque é quase uma duplicata do decreto do governo bolchevique e do projeto de Lênin. Ele vai muito adiante, quando o poder dos trabalhadores já estiver dominando o país. Porque a questão básica é qual poder vai controlar a imprensa nacionalizada – Giscard d’Estaign na França e os contrarrevolucionários do MFA-PC em Portugal? A Liga nem mesmo se coloca à altura das propostas dos poumistas para o controle operário.

Não é por acaso que a Liga sobrevoa os países e as etapas revolucionárias para dar sua política em relação ao “República”. Em Portugal temos um projeto totalitário e contrarrevolucionário do MFA-PC para controlar a imprensa, a televisão e o rádio. A Liga nem sequer se dá ao trabalho de apontar esse projeto e essa política contrarrevolucionária, nem toma uma posição a respeito. Parece que o caso “República” está acontecendo em qualquer país do mundo ou em nenhum país. Mas o caso “República” faz parte desse projeto, não se limita à luta entre um comitê de trabalhadores isolado e uma empresa privada isolada em qualquer país do mundo. Ele está imerso em Portugal.

O que fazem os revolucionários portugueses diante dos militares que estão estacionados nos portões do “República”, o que dizem aos trabalhadores gráficos que querem ocupá-la e controlá-la, e aos trabalhadores socialistas que querem que seu jornal saia sem censura? Dizer-nos que somos pela “nacionalização sem pagamento” e “por um serviço público de imprensa”? Isso não é lavar as mãos, não é fazer o jogo da política contrarrevolucionária do MFA simbolizada pelos soldados nos portões? Não há uma política concreta de uma frente única entre os trabalhadores gráficos dentro do “República” e os trabalhadores socialistas fora, ambos com desejos e posições profundamente positivos, contra o inimigo comum que está à porta?

Mas o que demonstra melhor a abstração da posição é o fato de não levar em conta apenas um elemento da realidade, as ocupações de fábricas e, mais concretamente, uma ocupação, a ocupação do jornal “República”. A outra realidade são os trabalhadores socialistas e operários que estão se manifestando pelas liberdades democráticas e pelo retorno do jornal “República”, o que fazemos?

Vamos convidá-los para um “cafezinho” para explicar-lhes as vantagens do decreto bolchevique sobre a imprensa? Se eles aceitarem os convites, encontraremos cafés para tantos milhares de manifestantes? Se as manifestações são reacionárias, o BP da Liga deve dizer isso e tirar conclusões, convocar contra-manifestações junto com o PC e o MFA, mas não pedir silêncio, ignorá-las.

Acreditamos que, entre apoiar a ocupação parcial de um jornal e as manifestações e a luta dos socialistas pelas liberdades, incluindo a “República”, devemos nos voltar, com nossa própria política, para a concordância e o apoio às demandas socialistas. Para nós, o caso do”República” é uma provocação do stalinismo, que usa métodos revolucionários, ocupações, a serviço do MFA. O que é historicamente progressivo neste momento é a defesa e a extensão das liberdades democráticas e a derrota dos planos contrarrevolucionários do governo do MFA-PC. Toda a nossa tática deve começar com o apoio às manifestações e à luta atual do PS pelas liberdades democráticas e pelo “República”. Temos que ir com nossos panfletos, cartazes e, acima de tudo, com nossa política de classe a essas manifestações ou eventos socialistas. Nossa política deve ser contra os agentes do MFA nos portões do “República” e de qualquer outro órgão de imprensa ou de comunicação de massa, inclusive o do PC, pela liberdade de imprensa. É a partir daí que temos de lutar pela unidade ou frente única entre os trabalhadores que ocupam a empresa e as manifestações socialistas.

Essa tática de usar a luta entre os dois partidos reformistas contrarrevolucionários não deve nos fazer esquecer nosso objetivo estratégico: fortalecer a Intersindical, as comissões de trabalhadores e soldados. O PS tem exatamente a política oposta, pois é um membro do próprio governo e sua política é pressionar os militares para que formem um novo governo de frente popular em uma base democrático-burguesa. A melhor maneira de combater essa política da liderança do PS é defender seus direitos e unir-se estreitamente em uma luta comum com sua classe trabalhadora e sua base popular. Nas mesmas manifestações e ações em favor dos direitos do PS, podemos e devemos nos distinguir da política contrarrevolucionária da liderança do PS, levantando as ocupações pelo PS das estações de rádio e da imprensa burguesas ou do MFA, que lhe corresponde de acordo com o número de seus votos. Podemos levantar palavras de ordem para que o PS rompa com o governo e exigir que ele assuma o poder para governar sozinho: com as organizações de trabalhadores para levar adiante um programa socialista e as liberdades democráticas.

Mas a tarefa mais importante será convencer os trabalhadores socialistas, assim como suas manifestações, a se voltarem contra a Intersindical e as comissões de trabalhadores e soldados, para convencê-los da razão de suas demandas. Devemos desviar o ódio dos manifestantes contra os trabalhadores do “República” para o governo, que se beneficia dessa divisão e é o único que se beneficia dela para levar a cabo seu plano contrarrevolucionário.

Devemos exigir que o caso do “República” e o controle do MFA-PC de quase toda a mídia oral e escrita sejam discutidos em todas as organizações de trabalhadores. Devemos exigir uma assembleia de trabalhadores em um estádio em Lisboa, convocada pelo Partido Socialista, mas convidando especialmente a Intersindical, o PC, as comissões de trabalhadores e comitês de soldados e os trabalhadores do “República”, para discutir essas questões. Deve-se garantir que os dois principais oradores sejam os do Partido Socialista e o representante dos trabalhadores do “República”. A assembleia deve votar e todos devem obedecê-la.

Com essas variantes ou outras semelhantes, podemos usar a magnífica oportunidade aberta pelo curso bonapartista contrarrevolucionário do MFA-PC para derrotá-lo, unindo todos os trabalhadores contra o governo. Dessa forma, seríamos a correia de transmissão entre as massas socialistas e seus irmãos e irmãs de classe, organizados nos comitês de trabalhadores e soldados, como a Intersindical. Em outras palavras, começaríamos a ser a ponte entre as massas socialistas e a revolução socialista.

7. Somente o trotskismo é e pode ser a vanguarda revolucionária

Alguns companheiros, ao analisar a revolução portuguesa, definem duas seções do movimento operário: os oportunistas e uma misteriosa “vanguarda revolucionária”. Se isso fosse uma frase dita de passagem, não teria importância. O grave é que ela é repetida sistematicamente: “fortalecimento da vanguarda revolucionária”, “propaganda da extrema esquerda”, “os revolucionários”, “a esquerda revolucionária é tal que só ela tem peso suficiente para iniciar movimentos que efetivamente conquistem o apoio de setores significativos das massas”, etc., etc., etc., etc. Todas essas denominações não são usadas como sinônimo de trotskismo, mas como uma nova categoria política, sem nome ou sobrenome.

O perigo dessa definição ambígua reside no fato de que esses camaradas geralmente não denunciam com suficiente energia, às vezes nem sequer os mencionam, a ultra-esquerda e os maoístas como agentes (inconscientes ou não) das manobras bonapartistas do MFA, tanto nas comissões de trabalhadores e comitês de soldados como nas projetadas Assembleias Populares.

É nossa firme convicção que em Portugal, como em qualquer outro país do mundo, existe apenas uma vanguarda revolucionária, e ela tem um nome: trotskismo.
Assim como a vanguarda operária, estudantil, camponesa ou armada tem muitos outros nomes: comunista-stalinista, socialista, maoista, sem partido.

Só o trotskismo tem tido uma política revolucionária em Portugal. É o único que tem sido capaz de combinar uma política de denúncia sistemática do governo do MFA-PC-PS e dos partidos burgueses com uma política de frente única, primeiro contra Spínola e depois contra o MFA-PC, de defesa dos direitos democráticos do PS e dos maoístas. E, o mais importante de tudo, tem sido o único capaz de se orientar para a revolução socialista.

Isso não quer dizer que o reflexo da situação revolucionária objetiva não leve ao surgimento de frações, grupos ou tendências centristas-revolucionárias em todas as organizações de trabalhadores. De fato, devido à fraqueza do nosso movimento, é normal que os setores anarcoides maoístas se fortaleçam e capturem elementos de vanguarda dentro das comissões de trabalhadores. Mas para considerar todas ou algumas dessas tendências ou frações como positivas, devemos avaliá-las em relação ao programa e à organização trotskista. Quanto mais próximas estiverem de nosso programa, mais positivas serão. E vice-versa.

A essência do nosso programa é a revolução das comissões de trabalhadores e dos comitês de soldados contra o governo contrarrevolucionário do MFA-PC-PS e seus “idiotas úteis”, os maoístas e ultras. Sem qualquer sectarismo, devemos convocar para uma frente revolucionária, como um prelúdio para a construção do partido trotskista de massas que liderará a tomada do poder, todos os militantes, frações ou tendências que concordem com este ponto, e apenas este ponto: devemos organizar e preparar a revolução dos comitês de trabalhadores contra o governo do MFA. Como parte dessa frente, e para ajudar a construí-la, os partidos reformistas, centristas ou de ultraesquerda que são contra ou semeiam confusão em torno dessa simples tarefa devem ser impiedosamente expostos. Não há confusão; há uma linha divisória nítida.

De um lado, todos os que estão junto ao trotskismo pela revolução socialista das comissões de trabalhadores, contra o inimigo dos trabalhadores, o governo do MFA. Do outro lado, todos aqueles que são agentes diretos da contrarrevolução imperialista, como o PS, ou do governo contrarrevolucionário imperialista do MFA, como o PC. O maoismo, semeador de confusão, herdeiro da teoria contrarrevolucionária stalinista dos estágios, tem desempenhado um papel contrarrevolucionário em todo o mundo. Não vemos por que ele deixará de fazê-lo em Portugal. Na melhor das hipóteses, alguns de seus grupos poderão se orientar para o programa da revolução socialista. Mas essa abordagem terá um sinal: a ruptura com o maoismo; será trotskista ou não será nada.

O progresso do nosso movimento seguirá como uma sombra o desenvolvimento das comissões de trabalhadores e dos comitês de soldados, desde que o trotskismo português levante um programa transitório de revolução dos trabalhadores, a ser realizado pelas comissões. Nossos camaradas em Portugal têm a palavra para mostrar como construir um grande partido com o único método e programa justos: o do nosso movimento mundial.

[Tradução de Bruno Magalhães]


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