Cavalo caramelo: o capitalismo não tem espaço para todos no telhado
Tragédias como essas irão se repetir, infelizmente, e é necessário politizar cada vez mais esse debate
Um cavalo ilhado em cima de um telhado em Canoas, no Rio Grande do Sul, em meio a um rio de tragédia, comoveu as pessoas nos últimos dias. Rapidamente adotado pela internet, o animal passou a ser chamado de caramelo. O nome foi provocado por sua pelagem em uma amável referência ao cachorro raiz do brasileiro, aquele sem raça definida, encontrado em todos os becos do país, o cusco, como chamamos por aqui.
A comoção com o caramelo versão equina não se deu pura e simplesmente por ele, embora seja mesmo brutal a cena e a preocupação mais que legítima, mas ela está para além disso: aquela era a imagem da desolação. Naquele enquadramento, se via a solidão, o medo, a angústia de todos nós. Foi fácil transferir todos os sentimentos – que sequer conseguíamos compreender – para aquela imagem e se permitir chorar um pouco, torcer pelo resgate, vibrar com o sucesso.
Aquela vida, tão vulnerável, cercada por água, partia nosso coração e simbolizava, de alguma forma, o povo brasileiro, que vive afundado, cercado, tentando sobreviver, apertado de todos os lados por um sistema cruel e mesquinho que garante privilégios aos que têm poder e nos mantêm naufragados, jogados a própria sorte. E, pior, convence a muitos que se nadarmos, mesmo sem saber, sem boias e sem pés de pato, mas com muita força de vontade, alcançaremos a mesma ilha paradisíaca de quem faz essa travessia com uma lancha.
Esse sistema é o mesmo que permite catástrofes que deixam um rastro de morte e isolam o cavalo caramelo no telhado. Ele se chama capitalismo e é um velho conhecido de nossas sociedades, divididas entre os que estão em cima, se equilibrando sobre as telhas, e os donos dos barcos. Estes colocam o lucro acima da preservação ambiental e contam com políticos que passam boiadas, aprovam flexibilizações de leis colocando a natureza em risco, incluem jabutis em projetos que permitem o avanço de mineração em terra indígena, o corte de mata ciliar, devastação na Amazônia, deserto verde e muitos outros ataques que provocam hecatombes climáticas.
O que acontece no Rio Grande do Sul foi totalmente previsto. Os ambientalistas alertam sobre o aquecimento global, o derretimento das geleiras, a destruição da camada de ozônio, a degradação do solo, há décadas. O meio ambiente deu sinais de que eles estavam certos ano a ano, havia tempo de agir, mas o capitalismo nunca quis saber. Ah, é um exagero! A gente te vende isso aqui, dizendo que compensamos isso e aquilo porque amamos a natureza e está tudo bem. Tão confortável, né? Só que o buraco é muito mais em baixo!
A crise climática estava escrita, mas não era na bíblia e sim nas leis. Naquelas que permitem desmatamento, avanço sobre áreas de reserva, desmonte dos órgãos de fiscalização, abono a grandes empresas que geram impactos ambientas profundos, o consumo desenfreado de energia elétrica da indústria, apoio a linhas de produção que impactam em uso de combustíveis fósseis, entre tantas outras ações políticas.
Sim, eu estou falando de política e de culpados, porque o desastre do Rio Grande do Sul é político e tem culpados. É claro que não se controla eventos climáticos, mas a prevenção e a resposta sim, e foi uma escolha política não prevenir. O governo do estado escolheu minguar a defesa civil, não garantiu o dinheiro para uma pasta tão importante, flexibilizou quase 500 normas ambientais, autorizou a construção de barragens em áreas de preservação, afrouxou regras de proteção ambiental dos biomas Pampa e Mata Atlântica, permitiu o autolicenciamento privado, deixando que quase 50 atividades econômicas de alto e médio efeitos poluidores pudessem ser autorizadas independente do seu porte. Só para citar algumas…
A prefeitura de Porto Alegre também não investiu em prevenção, também apresentou uma reposta pífia ao desastre. Os acontecimentos na capital demonstraram o tamanho do desmonte do aparato público da cidade. Estações de bombeamento de água que não funcionam, sistema de contenção de cheias que falharam e total despreparo para lidar com o acolhimento das pessoas. Um quadro de horror!
O prefeito Sebastião Melo derruba árvores cidade a fora desde o início de seu mandato. Já foi até agraciado com o troféu “Motosserra de Ouro”, uma forma de protesto de ambientalistas contra a concessão à iniciativa privada de parques e praças da cidade. Para ele, o espaço público é mercadoria, por isso se desdobrou tentando alterar o Plano Diretor para facilitar sua gana privatista e concessionária. Não conseguiu. A própria orla do Guaíba, tão mostrada ultimamente, é um exemplo. Antes, muito mais arborizada, agora tem algum tipo de edificação em quase toda a sua extensão, e a ideia do amigo do Salles é conseguir “passar a patrola” no resto todo da capital. Não se espantem se eu lhes disser que os donos dessas patrolas são as maiores construtoras da região. Imagino que também não ficarão surpresos ao saber que a prevenção de desastres e melhoria no sistema de proteção contra cheias não consta no orçamento da Prefeitura.
Há política até na forma como chamar o Guaíba. Acostumar as pessoas a se referirem a ele como “lago” facilita para a patrola, afinal a legislação é mais permissiva com construções à beira desses do que de rios. A especulação imobiliária precisa que ele seja considerado como lago e é assim que a Prefeitura o classifica, aproveitando a falta de nomenclatura para um corpo hídrico misto com características de lago nas margens e de rio no meio, como é o Guaíba.
Tragédias como essas irão se repetir, infelizmente, e é necessário politizar cada vez mais esse debate. Não há mais espaço para eleição de políticos entreguistas, escravos ou amigos do capitalismo. Votar em quem se preocupa com o meio ambiente, com ação e reação aos efeitos climáticos, é uma questão de sobrevivência. Lembre-se, não há espaço para todos nós no telhado do cavalo caramelo.