Coletivo Vozes Judaicas pede que Lula suspenda comércio militar com Israel
Em março, Brasil gastou mais de R$ 86 milhões na compra de drones israelenses sem licitação. Recurso pode financiar genocídio em Gaza
Foto: Ricardo Stuckert/PR
No final de março, os deputados federais do PSOL Fernanda Melchionna (RS), Sâmia Bomfim (SP) e Glauber Braga (RJ) enviaram aos ministérios da Defesa e das Relações Exteriores pedidos de informações sobre negócios milionários firmados entre o Brasil e empresas israelenses. Entre eles, um acordo de compra de e dois drones Heron I RQ – 1150 firmado entre a Força Aérea Brasileira (FAB) e a Israel Aerospace Industries LTD. O negócio, feito sem licitação, foi firmado no valor de R$ 86,1 milhões.
Os documentos questionavam a natureza dos contratos, uma vez que o dinheiro brasileiro pode ser usado para “financiar a continuidade do massacre histórico do povo palestino”, contrariando a postura pública do governo federal que reconheceu “o genocídio na Faixa de Gaza realizado por Israel”. Recentemente, uma carta de teor semelhante foi enviada ao próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), dessa vez, remetida pelo Vozes Judaicas por Libertação, coletivo que atua em defesa dos direitos dos palestinos ao seu território e diz não se sentir representado pelas entidades israelitas brasileiras.
A mensagem do grupo, subscrita também por organizações sociais e brasileiros notáveis das áreas da política, da academia e das artes foi além: solicitou que o governo interrompa a importação e exportação de armas e demais equipamentos militares com Israel. Entre os nomes que assinam a carta há Chico Buarque, Vladimir Safatle, Milton Hatoum e Erika Hilton (PSOL-SP), além de organizações como Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), e Movimento Negro Unificado (MNU), somados ainda a quatro partidos políticos: UP, PSOL, PC do B e PSTU.
Justificativas
A mensagem, elaborada em conjunto com a organização Anistia Internacional, faz uma digressão importante sobre o histórico e a escalada do conflito, que já dura sete meses, destacando os mais de 33 mil palestinos mortos na ofensiva militar de Israel na Faixa de Gaza e o bloqueio do governo Benjamin Netanyahu à entrada de ajuda humanitária para a população, o que acelera o avanço de fome e doenças. Além de violações dos Direitos Humanos, a carta destaca que Israel descumpre recomendações da ONU e da Corte Internacional de Justiça (CIJ) por um cessar-fogo e para o fim de ações de promoção de apartheid e genocídio (anteriores mesmo ao conflito atual). Esses pontos, em conjunto, justificam o pedido do coletivo para a interrupção das relações comerciais entre Brasil e Israel.
“A este respeito, cremos que o governo brasileiro deve tomar medidas concretas e imediatas no sentido de evitar a perpetuação das violações às normas imperativas de Direito Internacional por Israel, afastando-se de qualquer cooperação com tais violações (…). Diante do exposto, apelamos ao Estado brasileiro a suspensão imediata de todos os acordos no âmbito da Defesa com Israel e das licenças de exportação e importação de equipamento militar mantidos com Israel, dado o risco de que possam ser utilizadas na prática ou facilitação de violações graves do Direito Internacional Humanitário, incluindo crimes de guerra, na Faixa de Gaza. E que sejam expedidas sanções para brasileiros envolvidos diretamente em crimes de guerra em Gaza”, diz trecho da carta.
Na prática, o que a carta do Vozes Judaicas por Libertação propõe é o mesmo que Fernanda, Sâmia e Glauber cobraram: que o governo Lula alinhe seu discurso de solidariedade à Palestina com ações efetivas, de “acordo com o Direito Internacional e com a promoção dos direitos humanos”.
Leia a íntegra da mensagem.
Excelentíssimo Senhor Presidente,
No 8 de abril de 2024, data que marcou seis meses do início da mais recente ofensiva militar de Israel na Faixa de Gaza, reportagem da Reuters afirmou que “o então vibrante enclave palestino foi transformado numa vasta terra devastada com escombros e aço retorcido pelos bombardeios israelenses. Estes bombardeios já provocaram mais de 33 mil mortes, dos quais mais de 13 mil são crianças, e 8,4 mil são mulheres; além de haver mais 8 mil desaparecidos e mais de 75 mil feridos. A Human Rights Watch destaca o uso da fome como instrumento de guerra, o que é um crime de guerra segundo o Direito Internacional. As forças israelenses estão deliberadamente bloqueando a entrada de água, alimentos e combustível, enquanto impedem intencionalmente a assistência humanitária e privam a população civil de insumos indispensáveis à sua sobrevivência, que tem sido letal principalmente às crianças. Antes das hostilidades atuais, estima-se que 1,2 milhão de pessoas em Gaza já enfrentavam insegurança alimentar aguda, e mais de 80% dependiam de ajuda humanitária. Também na Cisjordânia, território ocupado por Israel desde 1967, houve um aumento no número de assassinatos e uma repressão sem precedentes.
Como já destacado por diversas organizações internacionais de direitos humanos, Israel exerce um regime de apartheid contra os palestinos. Este cenário urge uma ação efetiva do governo brasileiro para interromper a ofensiva em curso e mobilizar o sistema internacional tomar medidas coletivas condizentes com o Direito Internacional e com a promoção dos direitos humanos.
Em janeiro de 2024, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiu medidas provisórias a respeito do caso submetido pela África do Sul contra Israel por atos na Faixa de Gaza que violam a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. A Corte concluiu que “pelo menos alguns dos atos e omissões alegados pela África do Sul de serem cometidos por Israel em Gaza parecem capazes de serem abrangidos pelas disposições da Convenção”, confirmando sua jurisdição. Nesse sentido, a Corte concluiu pela necessidade de adoção de medidas provisórias para “o direito dos palestinos em Gaza de serem protegidos de atos de genocídio”. Em vista disso, determinou a obrigação de Israel tomar medidas para evitar os atos tipificados pelo Artigo II da Convenção, além de tomar medidas efetivas para impedir o cometimento de tais atos por suas forças militares. Dentre as medidas adicionais determinadas pela CIJ, está o dever de Israel prevenir e punir incitações ao genocídio do povo palestino e o dever de viabilizar a prestação de serviços básicos e ajuda humanitária aos palestinos em Gaza.
O Ministério de Relações Exteriores do Brasil (MRE) declarou apoio ao caso da África do Sul contra Israel na CIJ e às determinações adicionais. Como signatário da Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio, que tem status de norma supralegal em seu ordenamento jurídico, o Brasil tem a obrigação de prevenir o genocídio, conforme Artigo I desta Convenção, e a obrigação, erga omnes, de cooperar para pôr fim, através de meios legais, às violações de normas imperativas do Direito Internacional, incluindo crimes contra a humanidade e crimes de guerra.
Contudo, Israel não tem acatado as obrigações impostas pela CIJ nem aquelas determinadas pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (CSONU). No dia 25 de março, o CSONU aprovou a Resolução 2728, que exige de Israel um cessar-fogo imediato, além de levantar todas as barreiras impostas e garantir o acesso de ajuda humanitária, como já previsto nas resoluções 2712 e 2720. Importante ressaltar que a violação de direitos humanitários por Israel são consistentes e antecedem faz muito a incursão militar atual na Faixa de Gaza. Israel desrespeita diversas resoluções do CSONU, como a Resolução 452, que determina que Israel interrompa imediatamente a construção de colônias na Cisjordânia e em Jerusalém. Israel também rejeitou o parecer consultivo da CIJ, de 2004, que determinou a interrupção da construção do Muro na Cisjordânia, que a Corte concluiu ser contrário ao Direito Internacional.
Em resposta à resolução 2728 do CSONU, a Anistia Internacional afirma que esta deve ser uma via para exigir de Israel um cessar-fogo duradouro. “Esta resolução deve ser acompanhada de uma mudança na pressão política, incluindo um imediato e compreensivo embargo de armas, para levar a uma permanente paralisação do ataque e mudar a assustadora situação no território de Gaza em longo prazo”. No dia 05 de abril de 2024, o Brasil apoiou a resolução A/HRC/55/L.30, do Conselho de Direitos Humanos da ONU, que determina o embargo à “venda, transferência e desvio de armas, munições e outros equipamentos militares para Israel”.
A este respeito, cremos que o governo brasileiro deve tomar medidas concretas e imediatas no sentido de evitar a perpetuação das violações às normas imperativas de Direito Internacional por Israel, afastando-se de qualquer cooperação com tais violações. O Brasil mantém diversos acordos de cooperação política, comercial, cultural e militar com Israel. Por exemplo, o Acordo de Cooperação em Questões Relacionadas à Defesa, assinado em Jerusalém, em 31 de março de 2019, determina no Artigo 1: visitas mútuas de alto nível de delegações a entidades civis e militares; encontro entre representantes de defesa; intercâmbio de pessoal; participação em cursos de treinamento, estágios, seminários, conferências, mesas redondas e simpósios oferecidos em entidades militares e civis de interesse para a defesa, de comum acordo entre as Partes.
Diante do exposto, apelamos ao Estado brasileiro a suspensão imediata de todos os acordos no âmbito da Defesa com Israel e das licenças de exportação e importação de equipamento militar mantidos com Israel, dado o risco de que possam ser utilizadas na prática ou facilitação de violações graves do Direito Internacional Humanitário, incluindo crimes de guerra, na Faixa de Gaza. E que sejam expedidas sanções para brasileiros envolvidos diretamente em crimes de guerra em Gaza.
Neste sentido, a partir das recomendações dos relatórios publicados pelas organizações citadas, e baseado nos diferentes dispositivos do Direito Internacional aqui apresentados, vimos solicitar ao governo brasileiro que:
Use todas as formas de influência para pressionar o governo israelense a cumprir as medidas provisórias da Corte no caso.
Encerre imediatamente todas as transações comerciais com empresas israelenses para a compra ou venda de armas, munições e outros equipamentos militares; além de softwares e tecnologias ligadas ao setor de segurança; para colocar em prática um embargo de armamentos a Israel;
Investigue-se toda pessoa suspeita de responsabilidade penal por crimes de direito internacional cometido no conflito armado que estejam em qualquer território submetido à jurisdição do Brasil, sem importar sua nacionalidade;
Ressalte a gravidade da situação vivida pela população de Gaza. Denuncie a morte de crianças devido à fome/desnutrição; os ataques aéreos ilegalmente indiscriminados que culminou na destruição da maioria das casas, hospitais, universidades, e infraestrutura em geral; o deslocamento forçado da maioria da população; e o descumprimento de Israel à ordem da CIJ;
Dê também destaque para as violações de direitos humanos que tem aumentado na Cisjordânia
Pressione o governo israelense para que (1) garanta a entrada de ajuda e prestação de serviços básicos à população de Gaza; (2) acabe com os ataques ilegais; (3) não invada Rafah; e (4) facilite o retorno dos palestinos deslocados às suas casas.
Considere a adoção de medidas mais efetivas, e mobilize governos de outros países para a aplicação do Direito Internacional, com vistas prestar solidariedade ao povo palestino. A exemplo, ajudar a desenvolver uma posição comum dos países latino-americanos sobre o apartheid e outros crimes.
Compreendemos que estas medidas são indispensáveis para que se instaure uma pausa humanitária capaz de criar um ambiente no qual negociações para a instauração da paz sejam possíveis. Como observa-se na história, as sistemáticas violações de direitos humanos provocadas pelo regime de Apartheid da África do Sul só cessaram mediante sanções impostas pelos países da comunidade internacional. Por isso, pedimos ao Senhor Presidente que adote essas medidas como forma não violenta de exigir o cumprimento do Direito Internacional. Sem o comprometimento dos países do mundo com o Direito Internacional, não é possível a manutenção deste sistema em pleno funcionamento. Sem a pressão internacional a Israel para que cesse imediatamente a sistemática violação de direitos humanos, será impossível transformar o atual cenário num contexto de promoção de paz e estabilidade para a região e o mundo.
Atenciosamente,
Vozes Judaicas por Libertação
Anistia Internacional