O colapso do sionismo
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O colapso do sionismo

A profunda crise interna do Estado de Israel pode colocar em cheque seu projeto colonialista

Ilan Pappé 24 jun 2024, 18:45

Foto: CJPME

Via Sidecar

O ataque do Hamas em 7 de outubro pode ser comparado a um terremoto que atinge um prédio antigo. As rachaduras já estavam começando a aparecer, mas agora são visíveis em suas próprias fundações. Mais de 120 anos desde sua criação, o projeto sionista na Palestina – a ideia de impor um Estado judeu em um país árabe, muçulmano e do Oriente Médio – poderia estar enfrentando a perspectiva de colapso? Historicamente, uma infinidade de fatores pode causar o colapso de um Estado. Pode ser resultado de ataques constantes de países vizinhos ou de uma guerra civil crônica. Pode ocorrer após o colapso das instituições públicas, que se tornam incapazes de prestar serviços aos cidadãos. Muitas vezes, começa como um processo lento de desintegração que ganha impulso e, em um curto período de tempo, derruba estruturas que antes pareciam sólidas e inabaláveis.

A dificuldade está em identificar os primeiros indicadores. Aqui, argumentarei que eles estão mais claros do que nunca no caso de Israel. Estamos testemunhando um processo histórico – ou, mais precisamente, o início de um – que provavelmente culminará na queda do sionismo. E, se meu diagnóstico estiver correto, também estamos entrando em uma conjuntura particularmente perigosa. Pois, assim que Israel perceber a magnitude da crise, ele liberará uma força feroz e desinibida para tentar contê-la, como fez o regime do apartheid sul-africano em seus últimos dias.

1.
Um primeiro indicador é a fragmentação da sociedade judaica israelense. Atualmente, ela é composta por dois campos rivais que não conseguem encontrar um terreno comum. A divisão decorre das anomalias da definição do judaísmo como nacionalismo. Embora a identidade judaica em Israel às vezes pareça pouco mais do que um assunto de debate teórico entre facções religiosas e seculares, agora ela se tornou uma luta sobre o caráter da esfera pública e do próprio Estado. Essa luta está sendo travada não apenas na mídia, mas também nas ruas.

Um campo pode ser chamado de “Estado de Israel”. Ele é composto por judeus europeus mais seculares, liberais e, em sua maioria, mas não exclusivamente, de classe média e seus descendentes, que foram fundamentais para o estabelecimento do Estado em 1948 e permaneceram hegemônicos nele até o final do século passado. Não se engane, sua defesa de “valores democráticos liberais” não afeta seu compromisso com o sistema de apartheid que é imposto, de várias maneiras, a todos os palestinos que vivem entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo. Seu desejo básico é que os cidadãos judeus vivam em uma sociedade democrática e pluralista da qual os árabes sejam excluídos.

O outro campo é o “Estado da Judeia”, que se desenvolveu entre os colonos da Cisjordânia ocupada. Ele conta com níveis crescentes de apoio no país e constitui a base eleitoral que garantiu a vitória de Netanyahu nas eleições de novembro de 2022. Sua influência nos escalões superiores do exército e dos serviços de segurança israelenses está crescendo exponencialmente. O Estado da Judeia quer que Israel se torne uma teocracia que se estenda por toda a Palestina histórica. Para conseguir isso, ele está determinado a reduzir o número de palestinos ao mínimo possível e está contemplando a construção de um Terceiro Templo no lugar de al-Aqsa. Seus membros acreditam que isso lhes permitirá renovar a era de ouro dos reinos bíblicos. Para eles, os judeus seculares são tão heréticos quanto os palestinos se se recusarem a participar desse esforço.

Os dois campos começaram a se confrontar violentamente antes de 7 de outubro. Nas primeiras semanas após o ataque, eles pareciam ter deixado de lado suas diferenças diante de um inimigo comum. Mas isso foi uma ilusão. As brigas de rua recomeçaram, e é difícil ver o que poderia levar a uma reconciliação. O resultado mais provável já está se desenrolando diante de nossos olhos. Mais de meio milhão de israelenses, representando o Estado de Israel, deixaram o país desde outubro, uma indicação de que o país está sendo engolido pelo Estado da Judeia. Esse é um projeto político que o mundo árabe, e talvez até mesmo o mundo em geral, não tolerará a longo prazo.

2.
O segundo indicador é a crise econômica de Israel. A classe política não parece ter nenhum plano para equilibrar as finanças públicas em meio a conflitos armados perpétuos, além de se tornar cada vez mais dependente da ajuda financeira americana. No último trimestre do ano passado, a economia sofreu uma queda de quase 20%; desde então, a recuperação tem sido frágil. É improvável que a promessa de Washington de US$ 14 bilhões reverta essa situação. Pelo contrário, o ônus econômico só piorará se Israel levar adiante sua intenção de entrar em guerra com o Hezbollah e, ao mesmo tempo, aumentar a atividade militar na Cisjordânia, em um momento em que alguns países, inclusive a Turquia e a Colômbia, começaram a aplicar sanções econômicas.

A crise é agravada ainda mais pela incompetência do Ministro das Finanças Bezalel Smotrich, que constantemente canaliza dinheiro para os assentamentos judaicos na Cisjordânia, mas parece incapaz de administrar seu departamento. O conflito entre o Estado de Israel e o Estado da Judeia, juntamente com os eventos de 7 de outubro, está fazendo com que parte da elite econômica e financeira transfira seu capital para fora do Estado. Aqueles que estão considerando transferir seus investimentos constituem uma parte significativa dos 20% de israelenses que pagam 80% dos impostos.

3.
O terceiro indicador é o crescente isolamento internacional de Israel, que gradualmente se torna um Estado pária. Esse processo começou antes de 7 de outubro, mas se intensificou desde o início do genocídio. Ele se reflete nas posições sem precedentes adotadas pela Corte Internacional de Justiça e pelo Tribunal Penal Internacional. Anteriormente, o movimento global de solidariedade à Palestina conseguiu galvanizar as pessoas para que participassem de iniciativas de boicote, mas não conseguiu avançar a perspectiva de sanções internacionais. Na maioria dos países, o apoio a Israel permaneceu inabalável entre o establishment político e econômico.

Nesse contexto, as recentes decisões da CIJ e do TPI – de que Israel pode estar cometendo genocídio, de que deve interromper sua ofensiva em Rafah, de que seus líderes devem ser presos por crimes de guerra – devem ser vistas como uma tentativa de atender às opiniões da sociedade civil global, em vez de apenas refletir a opinião da elite. Os tribunais não aliviaram os ataques brutais contra a população de Gaza e da Cisjordânia. Mas eles contribuíram para o crescente coro de críticas feitas ao Estado israelense, que cada vez mais vem de cima e de baixo.

4.
O quarto indicador interconectado é a mudança radical entre os jovens judeus de todo o mundo. Após os eventos dos últimos nove meses, muitos agora parecem dispostos a abandonar sua conexão com Israel e o sionismo e a participar ativamente do movimento de solidariedade aos palestinos. As comunidades judaicas, principalmente nos EUA, já proporcionaram a Israel uma imunidade eficaz contra críticas. A perda, ou pelo menos a perda parcial, desse apoio tem implicações importantes para a posição global do país. A AIPAC ainda pode contar com os sionistas cristãos para prestar assistência e reforçar seus membros, mas não será a mesma organização formidável sem um eleitorado judeu significativo. O poder do lobby está diminuindo.

5.
O quinto indicador é a fraqueza do exército israelense. Não há dúvida de que as Forças de Defesa de Israel [IDF, na sigla em inglês] continua sendo uma força poderosa com armamento de última geração à sua disposição. No entanto, suas limitações foram expostas em 7 de outubro. Muitos israelenses acham que os militares tiveram muita sorte, pois a situação poderia ter sido muito pior se o Hezbollah tivesse participado de um ataque coordenado. Desde então, Israel tem demonstrado que depende desesperadamente de uma coalizão regional, liderada pelos EUA, para se defender do Irã, cujo ataque de advertência em abril viu a utilização de cerca de 170 drones, além de mísseis balísticos e guiados. Mais do que nunca, o projeto sionista depende da entrega rápida de grandes quantidades de suprimentos dos americanos, sem os quais não poderia nem mesmo combater um pequeno exército guerrilheiro no sul.

Atualmente, há uma percepção generalizada do despreparo e da incapacidade de Israel de se defender entre a população judaica do país. Isso levou a uma grande pressão para remover a isenção militar para os judeus ultraortodoxos – em vigor desde 1948 – e começar a recrutá-los aos milhares. Isso dificilmente fará muita diferença no campo de batalha, mas reflete a escala do pessimismo em relação ao exército, o que, por sua vez, aprofundou as divisões políticas em Israel.

6.
O último indicador é a renovação da energia entre a geração mais jovem de palestinos. Ela é muito mais unida, organicamente conectada e clara sobre suas perspectivas do que a elite política palestina. Como a população de Gaza e da Cisjordânia está entre as mais jovens do mundo, esse novo grupo terá uma imensa influência no curso da luta pela libertação. As discussões que estão ocorrendo entre os grupos de jovens palestinos mostram que eles estão preocupados com o estabelecimento de uma organização genuinamente democrática – uma OLP renovada ou uma nova organização – que busque uma visão de emancipação que seja contrária à campanha da Autoridade Palestina para ser reconhecida como um Estado. Eles parecem favorecer uma solução de um Estado em vez de um modelo desacreditado de dois Estados.

Eles serão capazes de montar uma resposta eficaz ao declínio do sionismo? Essa é uma pergunta difícil de responder. O colapso de um projeto de Estado nem sempre é seguido por uma alternativa mais promissora. Em outros lugares do Oriente Médio – na Síria, no Iêmen e na Líbia – vimos como os resultados podem ser sangrentos e prolongados. Nesse caso, seria uma questão de descolonização, e o século passado mostrou que as realidades pós-coloniais nem sempre melhoram a condição colonial. Somente a ação dos palestinos pode nos levar na direção certa. Acredito que, mais cedo ou mais tarde, uma fusão explosiva desses indicadores resultará na destruição do projeto sionista na Palestina. Quando isso acontecer, devemos esperar que um movimento de libertação robusto esteja presente para preencher o vazio.

Por mais de 56 anos, o que foi chamado de “processo de paz” – um processo que não levou a lugar algum – foi, na verdade, uma série de iniciativas americano-israelenses às quais os palestinos foram solicitados a reagir. Hoje, “paz” deve ser substituída por descolonização, e os palestinos devem ser capazes de articular sua visão para a região, e os israelenses devem reagir. Essa seria a primeira vez, pelo menos por muitas décadas, que o movimento palestino assumiria a liderança na apresentação de suas propostas para uma Palestina pós-colonial e não sionista (ou qualquer que seja o nome da nova entidade). Ao fazer isso, ele provavelmente se voltará para a Europa (talvez para os cantões suíços e o modelo belga) ou, mais apropriadamente, para as antigas estruturas do Mediterrâneo oriental, onde grupos religiosos secularizados se transformaram gradualmente em grupos etnoculturais que viviam lado a lado no mesmo território.

Quer as pessoas aceitem a ideia ou a temam, o colapso de Israel tornou-se previsível. Essa possibilidade deve fundamentar a conversa de longo prazo sobre o futuro da região. Ela será forçada a entrar na agenda à medida que as pessoas perceberem que a tentativa de um século, liderada pela Grã-Bretanha e depois pelos EUA, de impor um Estado judeu em um país árabe está lentamente chegando ao fim. Ela foi bem-sucedida o suficiente para criar uma sociedade de milhões de colonos, muitos deles agora de segunda e terceira gerações. Mas a presença deles ainda depende, como aconteceu quando chegaram, da capacidade de impor violentamente sua vontade a milhões de pessoas nativas, que nunca desistiram de sua luta pela autodeterminação e liberdade em sua terra natal. Nas próximas décadas, os colonos terão de abandonar essa abordagem e mostrar sua disposição de viver como cidadãos iguais em uma Palestina liberada e descolonizada.


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