Continuando um debate sobre frente única
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Continuando um debate sobre frente única

Sequência do debate com a Resistência/PSOL sobre as táticas para enfrentar a extrema direita

Bruno Magalhães 1 jul 2024, 08:00

Foto: Ricardo Stuckert/Flickr  

Continuamos aqui o debate com o camarada Henrique Canary, da Resistência/PSOL, que teve início com seu texto Na luta contra o fascismo, basta ser “antissistema”?, nossa resposta em Avanço da extrema direita e adaptação na esquerda e a tréplica em É impossível lutar contra o fascismo persistindo nos erros do passado. Comentamos abaixo este último texto.

Primeiro, saudamos tanto a disposição sincera de diálogo do camarada Canary como a paciência de quem nos lê. Esta resposta é a mais curta possível, afinal não é uma polêmica nova e ambos os argumentos já estão nítidos. 

“Pequenos erros”

Vemos a “adaptação” como um processo longo e complexo, não como um carimbo de traição. E caracterizamos assim a posição da maioria do PSOL porque o rebaixamento programático do partido é nítido, com inúmeros exemplos, e a Resistência tanto é parte do bloco político que opera isso como seus militantes são os que mais escrevem em defesa deste bloco. Não se trata de um debate moral.

Sobre a “posição oficial” da organização: debatemos com os camaradas há anos e não encontramos no EOL tais posições diferentes. De qualquer forma, mesmo que as posições do camarada Canary não sejam formalizadas por sua organização, é fato que esta atua a partir dessas posições e as defende nos espaços de debate.

Programa mínimo e frente única1

O camarada Canary escreve que não “propõe uma política da mobilização popular em favor do governo”, e sim a “mobilização popular em defesa do programa que saiu vitorioso nas eleições”. Tal programa teria como conteúdo “programas sociais de impacto, recuperação da ciência, da cultura, da saúde e da educação, defesa do meio ambiente, uma agenda progressista nos costumes, defesa dos povos originários e tradicionais e um longo etc”. 

Voltamos aqui ao problema do programa econômico do governo, que o camarada Canary deixa de lado como se não houvessem propostas econômicas em 2022. É possível fazer todas as mudanças acima sem uma reorientação radical da política econômica? Ao falar do tal programa eleitoral, o camarada Canary abstrai aspectos que fundamentam o apoio de setores burgueses à Lula e impedem a aplicação do restante das pautas citadas no parágrafo anterior. Houve expectativa popular no voto por Lula, mas na economia não houve estelionato eleitoral porque o governo está entregando através do arcabouço fiscal aquilo que prometeu a esta burguesia.

Aí novamente vemos a confusão entre a unidade de ação democrática que elegeu Lula e a esperança de uma frente única com o governo. Derrotar o bolsonarismo em unidade com todos os setores contrários à mudança de regime (inclusive da burguesia) é diferente de construir uma frente única para todas as pautas acima porque viabilizá-las exigiria uma redistribuição radical de recursos que enfrentaria os setores da burguesia que apoiam o governo. Devemos fazer toda unidade de ação com o governo contra qualquer ataque antidemocrático, mas agitar esta unidade como uma frente única para aplicar o “programa mínimo” é incorreto porque Lula e o PT não concordam com ele.

Então o tema da frente única não é apenas democrático e segundo o próprio companheiro Canary está relacionado a medidas econômicas porque, para promover tal “programa mínimo”, são necessárias mudanças econômicas contrárias aos planos de Haddad. Logo, o avanço nos pontos levantados acima exige mudanças econômicas que indicam um caráter transitório. Como diz Trotsky:

É necessário ajudar as massas, no processo de suas lutas cotidianas a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista. Esta ponte deve consistir em um sistema de REIVINDICAÇÕES TRANSITÓRIAS que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária.2

Repetindo: demandas como “programas sociais de impacto, recuperação da ciência, da cultura, da saúde e da educação, defesa do meio ambiente” têm sua plena realização impossível nos marcos da política econômica liberal frente à atual crise econômica, então são transitórios nos termos que em que Trotsky definiu a questão. É claro que, se rebaixarmos este “programa mínimo” ao nível daquilo que o governo já faz em um regime de austeridade (a tal ponte neoliberal entre FHC e Temer citada em texto anterior), a argumentação do camarada Canary funciona. E aí faz sentido inclusive a ideia de “reconstrução” agitada pelo governismo.

Daí vamos ao centro do nosso problema. Concordamos que, para derrotar a extrema direita, é necessário lutar por esse “programa mínimo” demonstrando à classe trabalhadora quem de fato defende seus interesses. E também concordamos que uma frente única construída ao redor desse programa é necessária. Isso não impediria qualquer unidade de ação ampla na defesa de um regime político mais democrático, mas avançar no “programa mínimo” declarado pelo camarada Canary exige muito mais porque depende de grandes mudanças. Portanto, as próprias pautas levantadas pelo camarada Canary tem caráter transitório justamente porque partem “das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária” em busca destas mudanças.

Um bom exemplo de frente única construída a partir de um “programa mínimo” está na França atual. Para enfrentar a extrema direta de Le Pen, a Nova Frente Popular reuniu toda a esquerda através de pontos programáticos como o controle dos preços dos produtos de primeira necessidade, a revogação da última reforma previdenciária de Macron e a indexação dos salários sobre o custo da vida. Um verdadeiro “programa mínimo” que só poderá ser aplicado mudando prioridades econômicas. Já o programa da nossa “frente única com o governo” não passa nem perto de tais medidas ou, se passa, o governo ainda não foi informado.

Quais os termos concretos do debate?

Em resumo, nossa argumentação é simples: para derrotar o fascismo devemos construir a unidade de ação com todos os contrários às mudanças antidemocráticas de regime e devemos construir a frente única com aqueles que com quem partilhamos um “programa mínimo” em comum. E as duas tarefas são combinadas simultâneamente.

A argumentação do camarada Canary não debate esta diferença e mistura as duas tarefas da mesma forma que fazem outros setores oficialistas de esquerda. Como consequência, precisa rebaixar ao máximo o programa da frente única para que este caiba na tarefa da unidade de ação:

Imaginemos uma Frente Única convocada “em base a um programa de medidas transitórias”: estatização dos bancos, reforma agrária radical sob controle dos trabalhadores, expropriação dos grandes monopólios, suspensão do pagamento da dívida etc. O PT aceitaria? Não! Então que Frente Única é essa que ninguém aceita? De que nos serve? Não é muito mais fácil para o PT ignorar assim os nossos chamados, alegando nosso distanciamento das tarefas reais? Não é isso facilitar a tarefa da direção do PT? Ao invés disso, nosso chamado à Frente Única tem como base o programa defendido pelo próprio Lula na campanha de 2022, ou seja, um programa mínimo civilizatório, mas capaz de comprometer a direção petista e acessar suas bases, mostrando a alternativa PSOL como a única estrategicamente viável, um projeto de nova direção para o movimento de massas no país.

Infelizmente, não estamos propondo a estatização de nada, mas mesmo reivindicações básicas não podem ser atendidas pelo governo da austeridade, como a revogação das políticas neoliberais de Bolsonaro ou a defesa dos direitos trabalhistas. Ao contrário, a polêmica atual dentro governo é sobre a retirada do piso constitucional de saúde e educação enquanto se pagam bilhões em emendas parlamentares para os partidos da ordem. Para construir a frente única é preciso termos acordo ao redor desse tipo de questão.

Para além da confusão sobre as “medidas transitórias”, o fato é que a proposta de frente única do camarada se arma ao redor de “um programa mínimo civilizatório”. Este seria parecido com o “programa mínimo” da frente única francesa ou mais rebaixado? Tal programa apoiaria as reivindicações de servidores em greve? Quais medidas econômicas “civilizatórias” estariam nele? Ou melhor, quais destas medidas econômicas “civilizatórias” seriam aceitas por Lula e Haddad?

Pela lógica do camarada, rebaixamos nosso programa de frente única para que Lula e Haddad o aceitem. Mas o que eles aceitariam? Ou poderíamos construir uma frente única sem nenhuma base econômica? Sem esse tipo de materialidade, caímos no distracionismo, abstraindo alguns pontos e desviando de outros. Por isso, não é a toa que o camarada Canary gasta mais tinta com o tema da corrupção do que com a reforma tributária ou o PL do Uber, ou ainda a postura de Lula na greve das federais. Sem entrar em temas concretos deste tipo, nosso debate vira só um exercício retórico.

Notas

  1. Para aprofundar o debate teórico sobre a tática da frente única, sugerimos a Parte 2 do texto Três formas de confundir a vanguarda: um debate com a Resistência/PSOL (2021), disponível aqui. ↩︎
  2. Leon Trotsky, O Programa de Transição. Disponível aqui. ↩︎

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Pedro Micussi