Indígenas brasileiros começam a perder a paciência com Lula devido à lentidão na demarcação de terras
O movimento indígena também lamenta que o Governo não esteja mais envolvido para bloquear retrocessos no Congresso Nacional
Foto: Ricardo Stuckert/PR
Via Humanitas
No dia em que tomou posse como presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva subiu a rampa do Palácio do Planalto acompanhado de vários representantes da sociedade civil. Entre eles estava o venerável cacique Raoni Metuktire, como símbolo do renovado compromisso com os povos indígenas após os anos de apatia de Jair Bolsonaro. As expectativas eram muitas, mas desde aquela cerimônia de 1º de janeiro de 2023, os indígenas brasileiros vêm acumulando algumas decepções.
Historicamente, sua principal reivindicação é a demarcação das terras que ocupavam antes da invasão dos portugueses em 1500. É um processo burocrático e judicial trabalhoso e cheio de tensões com os proprietários rurais, para que o Estado reconheça uma determinada etnia como detentora de direitos sobre seu território histórico. Atualmente, essas reservas ocupam cerca de 14% do território brasileiro e tendem a ser grandes bastiões da biodiversidade, onde a natureza está mais protegida. A Constituição brasileira de 1988 deu prazo de cinco anos para que todos os povos indígenas do Brasil tivessem suas terras devidamente reconhecidas, mas ainda hoje, 36 anos depois, há dezenas de processos parados nos escritórios de Brasília.
No ano passado, durante o chamado Acampamento Terra Livre, que reúne milhares de indígenas em Brasília todo mês de abril, Lula foi o convidado de honra e deveria anunciar a demarcação de 14 terras que só precisavam da assinatura presidencial. No final, ele anunciou apenas seis. Foi um jato de água fria. Em abril deste ano, no mesmo evento, os indígenas deixaram de convidar o presidente, que optou por um evento paralelo em que também anunciou menos demarcações do que o esperado, duas em cada quatro. Muitos líderes nem compareceram.
A tensão e o sentimento de abandono aumentaram esta semana. No Congresso brasileiro há uma maioria conservadora (está mais inclinado à direita do que nos anos Bolsonaro), e no Senado começou a tramitar uma proposta para aprovar o chamado ‘marco temporal’, o pior pesadelo para os povos indígenas: se for divulgado, isso os impediria ainda mais de reivindicar como suas terras que não ocupavam em 1988, quando a Constituição foi promulgada.
O lobby rural defende que é o caminho para trazer paz ao campo e segurança jurídica. As populações nativas afirmam que isso é injusto porque em muitos casos foram deslocados de seus territórios de origem, principalmente durante a ditadura militar (1964-1985). O Supremo Tribunal já decidiu que a ideia do “prazo” é inconstitucional, mas os parlamentares contra-atacaram propondo alterar a Constituição para a tornar adequada.
O movimento indígena acredita que, apesar de Lula não ter maioria no Congresso, ele poderia se envolver mais para que sua base aliada engavetasse a proposta, segundo Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, por telefone (APIB), entidade que reúne todas as organizações regionais. “Sentimos falta de uma maior participação do partido no poder para tentar engavetar esta discussão (…) Não basta o Governo tomar uma posição contra, tem que se mobilizar, demonstrar uma atitude”, lamenta. Na sessão desta quarta, senadores do Partido dos Trabalhadores (PT) optaram por uma estratégia menos combativa e conseguiram adiar a discussão para outubro.
O movimento indígena acredita que a estratégia do Governo prefere não confrontar a oposição em questões consideradas “secundárias”, como a agenda indígena, para não se desgastar e perder mais votos prioritários na área econômica, por exemplo. Como pano de fundo há também o malabarismo de Lula para evitar inconvenientes ao poderoso setor agrícola e pecuário, um pilar fundamental da economia largamente conservadora e com um lobby poderoso no Parlamento.
Em recente visita ao estado de Mato Grosso do Sul, um dos celeiros do país, especialmente para a produção de soja, o presidente propôs uma solução para o longo conflito do povo indígena Guaraní-Kaiowá, que vive mal nas beiras das estradas por falta de terra própria. Ele propôs ao governador do estado que o ajudasse a comprar algumas terras e reassentá-los lá. As entidades indígenas locais levantaram o grito: “Jamais aceitaremos a compra de terras ou qualquer alternativa à demarcação de nossas terras tradicionais. Essas propostas nos ofendem e nos prejudicam”, publicou a organização Aty Guasu em dura declaração. Para Tuxá, a ideia de Lula foi um passo em falso, embora simbolize algo que ele teme que se torne realidade: que as demarcações de terras saiam da esfera puramente técnico-administrativa e passem a ser resolvidas com base no cálculo político.
Na segunda-feira, a APIB realizou uma assembleia para decidir se continua apoiando formalmente Lula. Embora o seu coordenador admita que há divisão interna e “muita frustração”, por agora vão alargar um pouco mais o voto de confiança. As taxas de desmatamento na Amazônia estão caindo consideravelmente e não há comparação com o governo Bolsonaro. Uma das primeiras medidas de Lula ao chegar ao governo foi lançar uma ampla mobilização para expulsar milhares de garimpeiros da terra indígena Yanomami, na fronteira com a Venezuela, onde vivia uma verdadeira crise humanitária. Aplaudem que o presidente tenha feito o gesto de criar o primeiro Ministério dos Povos Indígenas da história do Brasil e que tenha colocado a ativista Sônia Guajajara no comando, mas ao mesmo tempo lamentam seu isolamento e orçamento limitado. “O que falta é apoio, temos um ministério isolado e sem força política”, lamenta Tuxá, que alerta que haverá mais mobilizações nos próximos meses.