XI FOSPA enraíza a esperança na Floresta e em seus povos
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XI FOSPA enraíza a esperança na Floresta e em seus povos

O último Fórum Social Panamazônico aconteceu em junho na Bolívia

Foto: REPAM

“Sem a Amazônia, não há solução para a crise climática. Sem uma solução para a crise climática global, não será possível salvar a Amazônia”. Foi com esse chamado a toda humanidade que o XI Fórum Social Panamazônico (FOSPA) inseriu a luta dos povos da região nos movimentos socioambientais e ecossocialistas globais.

O XI FOSPA ocorreu, de 12 a 15 de junho, nas cidades de Rurrenabaque e San Buenaventura, cortadas pelo rio Beni, na Amazônia boliviana. Esse vibrante encontro congregou mais de 1500 ativistas de toda a região amazônica, majoritariamente indígenas e mulheres.

Rurrenabaque (apelidada de Rurre), com pouco mais de 20 mil habitantes, está situada no departamento de Beni e é a porta de entrada para o Parque Nacional Madidi. Sendo o terceiro destino turístico da Bolívia, depois do Salar de Uyuni e do Lago Titicaca, o município conta com uma boa infraestrutura de hospitalidade, que foi mobilizada para permitir a realização de um Fórum focado e acolhedor. A região é o lar de vários povos indígenas, que se mobilizam para preservar a floresta, seus territórios e sua cultura; eles participaram ativamente do Fórum, marcando-o com suas temáticas e manifestações culturais, dando-lhe um caráter quase orgânico de expressão das suas lutas.

Para os que não conhecem a Bolívia, lembremos que essa identidade amazônica (compartilhada por inúmeros povos das florestas e dos rios em todos os países da Bacia Amazônica), é distinta tanto da identidade indígena dos povos do Altiplano Andino, quanto da sociedade agroexportador que o grande ruralismo capitalista vem estruturando ao redor de Santa Cruz de la Sierra – com todas coexistindo sob o mesmo Estado. A complexidade dessa Bolívia “abirragada”, como chamou René Zavaleta, se expressaria, pouco depois do XI FOSPA, no dia 26 de junho, quando de uma tentativa fracassada de golpe militar do general Zuñiga contra o presidente Luis Arce.

O FOSPA como processo

O XI Fórum Social Panamazônico se colocou na sequência de três eventos sediados em Belém: o Encontro de Saberes, realizado em outubro de 2021 (prévio à COP 26 de Glasgow), o X FOSPA, realizado em agosto de 2022, e os Diálogos Amazônicos, realizados em agosto de 2023, por ocasião da Cúpula dos Presidentes da região – que, depois da eleição de Lula e de Petro, reativaram a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). O XI FOSPA situa-se, assim, na sequência de uma intensa série de assembleias militantes que vem acumulando uma visão comum dos problemas e das tarefas colocadas.

O processo do Fórum Social Panamazônico é uma experiência única de Fóruns Sociais que foram capazes de, ao longo de mais de duas décadas, manter uma continuidade de encontros e trocas de experiências transnacionais, forjando vínculos de confiança, soldando alianças e compartilhando estratégias de ação em defesa da Amazônia desde seus povos e territórios. Os FOSPAs já percorreram quase todos os países da Panamazônia e agora o XI Fórum mobilizou uma grande delegação de representações de ativistas da Bolívia, em especial de sua região amazônica, foco de múltiplos processos predatórios (por incêndios e desmatamento, pela mineração e contaminação das águas…).

Mas também estiveram presentes delegações do Brasil, Colômbia, Equador, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela, além de ativistas de outros países sul-americanos, norte-americanos e europeus. No coração do XI FOSPA estava a representação de movimentos indígenas, camponeses e ambientalistas, que se somavam aos de organizações da sociedade civil, instituições e movimentos eclesiais e acadêmicos – além de uma representante do governo brasileiro, engajado na OTCA. As referências ao diálogo e demarcação com os governos da Colômbia e do Brasil são marcantes na medida em que Cali sediará, em outubro próximo, a COP 16 da Biodiversidade, e Belém, em novembro de 2025, a COP  30 do Clima.

Um programa para a Amazônia

A Amazônia, bioma cujas florestas tropicais úmidas cobrem 5,5 milhões de quilômetros quadrados, constitui o centro geográfico, climático e ecológico da América do Sul, conectando-se com as regiões contíguas. Geograficamente definida, a bacia amazônica cobre 7,8 milhões de quilômetros em nove países e compreende 38 milhões de habitantes. Ela é a chave para qualquer processo de integração regional, que será condicionado pela vocação econômica que os países da região desenvolvam na “Cuenca Amazónica”, em especial face às demandas neoextrativistas da atual fase do capitalismo.

A Amazônia não é homogênea, compreendendo também grandes cidades como Belém e Manaus. Sob pressão do desmatamento produzido pela agropecuária (pecuária bovina, cultivo da soja…), mas também pela extração de madeira e mineração predatórias, a Floresta vem sendo devastada e corroída por sucessivas zonas de sacrifício do capitalismo global. Ela se aproxima rapidamente de um ponto de não-retorno, a partir do qual o colapso da Floresta se tornará irreversível. Esse é um dos pontos de inflexão das mudanças climáticas globais, um processo que pode acelerar muito o aquecimento global. A defesa da Amazônia contra o agronegócio e a mineração é uma luta que congrega as populações que vivem na e da floresta e dos rios com toda a humanidade que busca evitar uma catástrofe climática avassaladora.

O desmatamento zero, a não-exploração dos combustíveis fósseis e o combate à mineração predatória em toda a região estão inseparavelmente ligados à luta dos povos originários (indígenas, ribeirinhos, quilombolas, extrativistas…) em defesa de seus territórios contra múltiplos processos de expropriação; é uma luta territorial por excelência, nos territórios e pelos territórios. O XI FOSPA foi, nessa ótica, organizado ao redor de quatro eixos temáticos: 1) Povos Indígenas e Populações Amazônicas, 2) Mãe Terra, 3) Extrativismos e Alternativas e 4) Resistência das Mulheres. Esses eixos temáticos foram organizados em Grupos de Trabalhos. Assim, o eixo 1 incluia terra e territórios, direitos d@s defensores, autonomia e justiça indígena e povos da Amazônia; o eixo 2, água, crise climática, áreas protegidas e biodiversidade, ponto de não-retorno e florestas e direitos da natureza; o eixo 3, mineração e suas alternativas, turismo, fronteira agropecuária, soberania alimentar e transição energética; e o eixo 4, territórios e participação das mulheres e direitos e violências. Além desses GT articulados aos eixos temáticos, foram criados GTs especiais de comunicação, cultura e juventude e realizadas dezenas de atividades auto-organizadas e iniciativas artístico-culturais que incidiram sobre os GTs.

De conjunto, as atividades produziram documentos de síntese dos diagnósticos e de propostas de superação da crise socioecológica na região, que apontam também para a necessidade de confrontarmos a emergência climática em curso e superarmos o capitalismo global para evitarmos um colapso ambiental. Um documento de doze páginas, trabalhado por inúmeras mãos, “O Mandato do XI Fórum Social Pan-Amazônico”, sintetiza as conclusões do encontro: https://www.forosocialpanamazonico.com/el-xi-fospa-genera-un-mandato/.

O documento expressa sua solidariedade com a luta do povo palestino e faz sua a exigência do fim do genocídio e da Palestina Livre! Também faz suas as demandas de todos os povos que lutam contra a dominação colonial, especialmente o povo Kanak no Pacífico Sul e o povo Saharaui na África. O documento exige que a Organização das Nações Unidas coloque a Guiana de volta na lista de territórios a serem descolonizados, com o reconhecimento dos povos indígenas e suas autonomias.

Experiências vivas de luta

Uma inovação marcante do FOSPA foram as visitas às comunidades. Foram no total 19 visitas, cada qual remetendo aos temas de um dos Grupos de Trabalho. A proposta é associar os diálogos ocorridos nesses grupos com a realidade concreta das comunidades indígenas da região. Nesses encontros, houve um rico diálogo com as comunidades na sua comunidade, in loco, posteriormente essas experiências foram compartilhadas na roda de saberes com os demais, que não foram ou foram para outra comunidade.

Nesses relatos, houve um que podemos destacar. Uma equipe de experts orientou a comunidade a plantar sem o uso da queimada, mas não acompanhou o processo e muito menos o resultado, deixando a comunidade com o sentimento de abandono. Nivelar a queimada indígena, praticada há mais de 10 mil anos, com a queimada criminosa do agronegócio resultou em prejuízo para a população concernida, pois a produtividade do método imposto é muito menor que a tradicional, obrigando a comunidade a comprar alimentação nos mercados para complementar e atender suas necessidades. A lição dessa experiência é quanto pode ser danosa uma proposta de apoio à uma comunidade sem a ouvi-la, sem dialogar com sua realidade concreta.

Os relatos de cada troca de experiências de participantes do Fórum com as comunidades – sobre desmatamento, mineração, turismo, autogoverno, luta das mulheres… – revela a necessidade de partirmos da auto-organização das populações e do fortalecimento das suas teias de solidariedade para construirmos alternativas à predação que o capitalismo e seus governos impulsionam.

A Amazônia convoca a um Acordo pela Vida diante do colapso

O planeta aquecerá de maneira duradoura em 1,5°C antes de 2030. Os ativistas reunidos no XI FOSPA, que acumularam uma vasta experiência na luta climática, fizeram uma avaliação incisiva dos processos de negociações: “Até 2023, os governos cortaram apenas um décimo das 24 gigatoneladas que precisamos reduzir globalmente para conter o aumento da temperatura, que já ultrapassou [pontualmente] 1,5°C em 2023. A captura corporativa das negociações climáticas busca ocultar os avisos urgentes da comunidade científica de que estamos entrando em um território desconhecido, onde predominam eventos climáticos extremos e imprevisíveis. As Conferências das Partes sobre mudanças climáticas (…) não estabelecem compromissos vinculativos para reduzir os combustíveis fósseis, o desmatamento e a transformação de padrões insustentáveis de produção, consumo e distribuição (…) os governos do planeta são capturados pela lógica do capital e não buscam uma transição para superar o sistema capitalista, extrativista, patriarcal e irracional da modernidade”. O Acordo de Paris para o clima de 2015 fracassou e não devemos alimentar ilusões que as COPs, controladas pelo fossilismo, serão capazes de avançar em transformações sistêmicas – inclusive a próxima COP 30, em Belém!

Partindo dessa constatação, o XI FOSPA lançou um “Chamado da Amazônia para construir um Acordo pela vida em face do colapso climático e ecológico”. Ele afirma: “Sem a Amazônia, não há solução para a crise climática. Sem uma solução para a crise climática global, não será possível salvar a Amazônia”. E convoca “nossas irmãs e irmãos de todos os continentes a construir um Acordo pela Vida diante do colapso climático e ecológico do planeta. Um acordo a partir das bases, na minga, a partir de nossos sentimentos e pensamentos no trabalho colaborativo, para realizar a demanda urgente de “mudar o sistema capitalista e não o clima”, para construir territórios livres de extração de petróleo, mineração, desmatamento, agronegócio, poluição, falsas soluções, livre comércio, racismo, colonialismo, transgênicos, agrotóxicos, megaprojetos de infraestrutura, violência múltipla, militarização, genocídio e terricídio”.

O documento chamando a um novo Acordo Sistêmico desde os territórios e os povos destaca os avanços como os alcançados no referendo de Yasuní no Equador, quando a população do país deliberou deixar o petróleo debaixo da terra, para reafirmar a convicção de que não há solução para a crise socioecológica sem a participação das populações; os governos “não falam em nosso nome”. Este é um exemplo particularmente útil para nós no Brasil, onde o governo Lula e o “negócios” estão levando o país a mergulhar de cabeça no neoextrativismo fossilista, abrindo uma nova frente de exploração do petróleo na Margem Equatorial da Amazônia.

A Mobilização dos Povos pela Terra e pelo Clima

O chamado global lançado pelo FOSPA no dia 15 de junho apresenta uma plataforma de dez pontos. Esquematicamente ela demanda, pelas palavras utilizadas na convocação: 1) impedir novos investimentos, prospecção e exploração de petróleo, carvão e gás natural; 2) parar o desmatamento das florestas exercendo nossos direitos sobre nossos territórios, espaços de vida e capacidade de autogestão; 3) promover a soberania alimentar e a agroecologia para resfriar o planeta; 4) implementar uma transição energética justa, popular e amigável à natureza para a soberania energética;  5) rejeitar falsas soluções climáticas e mecanismos de flexibilização, mercantilização e compensação, como os certificados de compensação de carbono e biodiversidade;  6) eliminar os orçamentos para o militarismo e a guerra e direcionar esses recursos para aliviar a situação dos países mais afetados pelas mudanças climáticas; 7) despatriarcalizar nossas sociedades, garantindo os direitos das mulheres e evitando que suas dinâmicas ecossociais sejam masculinizadas; 8) impedir o avanço dos neofascismos que incentivam as guerras contra as pessoas e a natureza; 9) construir sociedades de cuidado com a vida, garantindo os direitos da natureza de existir e manter seus ciclos de vida; e 10) promover uma nova integração global a serviço das pessoas e da natureza, com base uma representação empoderada das pessoas e da natureza. A integrada do documento está aqui: https://asambleamundialamazonia.org/2024/06/24/um-chamado-da-amazonia-para-construir-um-acordo-para-a-vida-em-face-do-colapso-climatico-e-ecologico/,

Em resposta a esse chamado reuniu-se, imediatamente após o final do Fórum, a Mobilização dos Povos pela Terra e pelo Clima, uma articulação, ainda em sua fase inicial, que busca avançar esses objetivos a partir das lutas territoriais dos povos. Os temas do clima e da biodiversidade, negociados de forma separada no sistema ONU, são aqui tratados de forma integrada, buscando sinergia com as lutas dos povos indígenas, quilombolas, negros raizais, afrodescendentes, populações tradicionais e camponesas do Amazônia, dos Andes e do mundo inteiro e com as lutas transversias pelos direitos dos jovens, das mulheres, de meninas, meninos e adolescentes, da população LGBTQI+, residentes tanto no campo como nas cidades. É um chamado à ação direta e coletiva, local e global, como caminho para a construção de outra lógica de sociedade.

O encontro finalizou com um chamado ao fortalecimento dos movimentos socioecológicos populares e à luta contra as falsas soluções de mercado das oligarquias locais, nacionais e globais. O calendário dessa luta contra-hegemônica pela Terra e pelo clima envolve a comemoração de um ano do plebiscito de Yasuní (20 de agosto 2024), as ações paralelas a COP da Biodiversidade (outubro 2024), os atos contra o G20 (novembro 2024), a solidariedade ao Congresso da COICA (janeiro 2025), a Cúpula dos Povos por ocasião da COP 30 em Belém (novembro de 2025) e a COP do Acordo do Escazú, sobre o direito à informação e consulta sobre os temas territoriais e socioambientais (ainda não ratificado pelo Congresso brasileiro) (abril 2026).

Enquanto os pólos do capitalismo global derivam para o conservadorismo e o autoritarismo, ecoam tambores de guerra e manifestam tendências suicidas, o encontro de povos em Rurrenabaque reforça a convicção de que a auto-organização territorial e a soberania cultural e natural dos povos de nosso continente aponta um caminho alternativo para a humanidade. Carregam um futuro de esperança em um mundo que perdeu seu rumo!


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Pedro Micussi