48h de Terror no MS: A Verdadeira Face do Agronegócio (Parte 2)
Squeência das notas explicativas sobre o genocídio indígena na região da Grande Dourados
Foto: Eloy Terena/Instagram
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A Constituição de 1988 trouxe em seu artigo 231 a promessa de demarcação das terras indígenas, com o reconhecimento de suas especificidades culturais e o direito originário sobre suas terras, isto é, um direito que antecede a própria formação do Estado, competindo à União “proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Ainda, o artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) aduz expressamente que “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. Ou seja, em 05/10/1993 todas as terras indígenas do país deveriam ter sido demarcadas, incluindo as dos Guarani e Kaiowá.
Obviamente, a disposição constitucional não caiu do céu, nem é fruto do beneplácito de algum governante, mas sim resultado das lutas históricas travadas pelos povos indígenas que habitam o Brasil. Desde meados dos anos 1980, cansados do descaso estatal, os Guarani e Kaiowá promovem as retomadas, um movimento de retorno aos tekoha dos quais foram expulsos, como forma de reivindicar a efetiva demarcação de suas terras tradicionais. Mesmo após a promulgação da Constituição atual, o Estado segue desrespeitando os direitos originários dos povos indígenas, furtando-se a concluir os processos demarcatórios em prazo razoável. Isso levou os Kaiowá e Guarani a promoverem, no âmbito das retomadas, a chamada autodemarcação, pela qual os próprios indígenas irão delimitar e ocupar suas terras, sem esperar por ninguém.
Por outro lado, os fazendeiros não aceitam as reivindicações dos indígenas, e os tratam com toda sorte de violências e truculência, argumentando que compraram suas fazendas honestamente e que o Estado tem o dever de garantir o direito à propriedade privada, ignorando que as terras sobre as quais estão suas fazendas foram roubadas dos Guarani e Kaiowá e, portanto, sua aquisição resulta de atos ilícitos e deve ser anulada no âmbito dos processos demarcatórios.
Esse contexto é o pano de fundo de um cenário explosivo. Nos últimos anos, vários massacres foram perpetrados pelos fazendeiros contra os Guarani e Kaiowá, com apoio, implícito ou explícito, do aparelho estatal, incluindo as forças policiais. Para citar apenas dois casos recentes, lembramos do Massacre de Caarapó, ocorrido no dia 14/06/2016, no qual o agente de saúde indígena Clodiode Aquileu de Souza foi morto a tiros por fazendeiros e ao menos outros seis ficaram gravemente feridos, e do Massacre de Guapoy, em 2022, portanto ainda no Governo Bolsonaro, ocorrido no município de Amambai, onde uma ação truculenta da Polícia Militar a mando dos latifundiários resultou na morte de um indígena e vários feridos. Nos dois casos, os feridos incluíram mulheres, crianças e pessoas idosas. No Massacre de Caarapó, o pai da vítima fatal foi preso após supostamente ter agredido policiais militares, transtornado de dor com a perda do seu filho, enquanto que os cinco fazendeiros responsabilizados pelo homicídio continuam aguardando julgamento em liberdade, mesmo oito anos depois dos fatos.
Agora, o agronegócio ameaça escrever mais uma página sangrenta na sua história de massacres, expropriações, devastação e saques. Fartos da morosidade excessiva do Estado, os Guarani e Kaiowá iniciaram sete retomadas na área correspondente à Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, localizada no município de Douradina, a 40km de Dourados. A referida Terra Indígena já foi delimitada em estudo antropológico, uma das fases do processo de demarcação, que ainda não foi concluído devido a uma ação judicial anulatória ingressada pelos fazendeiros. Essas retomadas têm sido constantemente ameaçadas pelos latifundiários que, fortemente armados e do alto de suas caminhonetes e tratores, tentam amedrontar as famílias indígenas acampadas na luta legítima pelo reconhecimento da sua terra tradicional.
No último final de semana, dias 03 e 04 de agosto, a Retomada Yvy Ajere foi alvo de ataques dos fazendeiros, os quais montaram acampamento a cerca de trezentos metros da retomada como forma de provocar e tentar intimidar os indígenas. O primeiro dos ataques mais recentes ocorreu na noite do dia 03/08, após um destacamento da Força Nacional, que ali estava para impedir o confronto, retirar-se unilateralmente do local. Os fazendeiros avançaram em suas caminhonetes e dispararam com armas de fogo e balas de borracha, soltando fogos de artifício para abafar o barulho dos armamentos.
Horas após esse ataque, outro grupo de fazendeiros atacou o Acampamento Esperança, do MST, em Dourados, incendiando o mato e fazendo com que diversos militantes passassem mal por causa da fumaça inalada. O MST acredita que esse ataque tenha ocorrido como uma forma de retaliação contra o movimento pela solidariedade prestada aos indígenas.
Não obstante, novamente na noite de domingo os fazendeiros voltaram a atacar a Retomada Yvy Ajere, mesmo com a presença da Força Nacional e de uma representante do Ministério dos Povos Indígenas no local. Apenas quando a situação já descambava para um massacre, os policiais da Força Nacional resolveram agir e contiveram os fazendeiros, que já avançavam com um trator sobre os barracos das famílias indígenas acampadas. A conduta dos fazendeiros demonstra o modus operandi miliciano que predomina no campo sulmatogrossense, resultando na formação de verdadeiras agromilícias.
Tanto para os Guarani e Kaiowá, quanto para os militantes apoiadores da causa indígena, o fim de semana foi de tensão, angústia e apreensão. As imagens dos ataques circularam pelas redes sociais e chegaram a ser televisionadas pela Rede Globo. Porém, há meses o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) alerta para o risco da intensificação da violência contra as retomadas Guarani e Kaiowá, sem que nenhuma atitude concreta tenha sido tomada pelas autoridades competentes, sobretudo pelo Governo Lula.
Naquelas 48 horas, o agronegócio mostrou a verdadeira face de um modelo econômico caracterizado pela violência contra indígenas, quilombolas e camponeses, e pela devastação da natureza, tudo em nome do lucro mediado pela produção de commodities para exportação, que não alimenta as famílias da classe trabalhadora brasileira, emprega pouco, não paga impostos e concentra renda e poder político.
Diante disso, não restam dúvidas que não existe conciliação possível com o agronegócio, apesar da postura do Governo Lula que insiste em abrigar e legitimar os representantes do latifúndio, e do STF que, mesmo após ter declarado a inconstitucionalidade da tese do marco temporal, agora tenta criar uma mesa de negociação com indígenas e fazendeiros para rifar os direitos dos povos originários. Ademais, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), que desde sua criação tem um dos menores orçamentos entre os ministérios, não consegue tomar nenhuma ação efetiva para impedir as violências contra os indígenas em MS, lhe restando apenas o plano simbólico e o papel lamentável de blindar o Governo Lula. O mesmo se aplica ao Ministério dos Direitos Humanos. Ainda, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, sob o comando do ex-Ministro do STF Ricardo Lewandowski, parece ter escolhido ignorar sua responsabilidade na demarcação de terras indígenas e na garantia de segurança aos povos, contentando-se em enviar efetivos da Força Nacional que, não raro, se voltam contra os próprios povos indígenas.
Por outro lado, os povos Guarani e Kaiowá continuam resistindo, como tem feito há séculos, inclusive adaptando-se às novas tecnologias da informação e ao entendimento da complexa legislação brasileira, formando uma nova geração de jovens professores e professoras que levam para suas comunidades a síntese do conhecimento tradicional e da academia, sem que isso lhes torne menos indígenas. Infelizmente, a violência do agronegócio não é nenhuma novidade para eles. Porém, o exemplo dos povos nos mostra que o único caminho para conquistar vitórias é pela luta e só podemos confiar em nossas próprias forças e solidariedade, enquanto classe trabalhadora organizada ao redor de um programa de transição ecossocialista que inclua a demarcação das terras indígenas, a plena titulação dos territórios quilombolas e uma completa reforma agrária popular e agroecológica que enterre de vez o latifúndio e suas inúmeras violências, sem ilusões com nenhum governo burguês.
MORTE AO LATIFÚNDIO!
DEMARCAÇÃO JÁ!