O movimento de protesto de Bangladesh venceu a repressão
As perspectivas da esquerda bengali após os protestos que derrubaram o governo da Liga Awami
Foto: Rayhan Ahmed/Wikimedia Commons
Os protestos em massa em Bangladesh derrubaram Sheikh Hasina depois que a repressão do Estado deixou centenas de mortos. No entanto, não se pode confiar em um governo interino chefiado pelo guru do microcrédito Muhammad Yunus para resolver os terríveis problemas sociais enfrentados pelas classes populares do país.
Depois de quinze anos no poder, a primeira-ministra de Bangladesh, Sheikh Hasina, renunciou e fugiu do país em 5 de agosto, perseguida por jovens manifestantes. O que começou como um movimento contra as cotas de emprego no serviço público evoluiu para um levante geral contra o governo autocrático de Hasina e seu partido, a Liga Awami (LA).
A situação mudou em um período de cinco semanas, e a vitória final foi alcançada ao custo de mais de quatrocentas vidas e vários milhares de feridos e desaparecidos. A sequência dos acontecimentos nesse país do sul da Ásia trouxe a memória do Sri Lanka em 2022, ou até mesmo a revolta em massa que forçou o presidente das Filipinas, Ferdinand Marcos, a fugir do país em 1986, após duas décadas de governo autocrático.
Em 5 de agosto, Hasina teve apenas quarenta e cinco minutos para renunciar e deixar o país enquanto centenas de milhares de manifestantes saíam às ruas, prontos para desafiar o toque de recolher a qualquer custo. Ainda na véspera, ela aparentava negar que seu tempo como primeira-ministra havia acabado. Entretanto, uma onda de poder popular a varreu como um poderoso tsunami. O chefe do exército facilitou sua fuga.
Ciclo completo
Com a saída de Hasina, um ciclo completo da política da Liga Awami foi completado. A fase mais recente de consolidação da Liga começou com sua vitória nas eleições de 2008, quando a aliança de quatorze partidos liderada por ela ganhou com uma maioria esmagadora de 263 assentos em 300. Embora o partido tenha estado no poder duas vezes anteriormente (1971-75 e 1996-2001), essa foi de fato uma vitória histórica.
As eleições parlamentares originalmente programadas para ocorrer em janeiro de 2007 foram suspensas após meses de agitação política. Enquanto isso, um governo interino apoiado pelo exército continuou a governar, o que evocou o espectro de outra ditadura militar, embora na forma de um disfarce. Em seus primeiros vinte anos de existência, Bangladesh esteve sob o domínio militar direto ou foi administrada por um governo apoiado por militares durante quase dezesseis desses anos.
A vitória também marcou a consolidação prolongada do poder pela Liga Awami. Vista como uma força secular devido às suas raízes históricas e ao seu papel de liderança na guerra de libertação, o partido chegou ao poder com base nessa nostalgia. Desde 2007, um movimento renovado da sociedade civil, apoiado pela Liga, intensificou as exigências para o julgamento dos criminosos de guerra que colaboraram com o exército do Paquistão Ocidental.
O Partido Nacionalista de Bangladesh (BNP), da oposição, que governou entre 2001 e 2006, participou das eleições em aliança com o Jamaat-e-Islami, um grupo islâmico radical. Os observadores também viram as eleições como uma rejeição pública dos ideais islâmicos radicais e um repúdio à política religiosa.
Dois pontos de virada
Podemos identificar o movimento pela restauração da democracia em 1990 (popularmente conhecido como Movimento Antiautoritário dos anos 90) após anos de governo militar como o primeiro ponto de virada positivo na história de Bangladesh independente. Milhões de pessoas marcharam nas ruas em novembro de 1997, exigindo a restauração do governo civil.
O país foi sequestrado por gângsteres militares entre 1982 e 1990, durante o reinado do chefe do exército, H. M. Ershad. Seu regime foi um episódio sombrio marcado por assassinatos e agressões, prisões e detenções arbitrárias, corrupção e pilhagem, acompanhados pela aniquilação da democracia e dos valores democráticos. Uma revolta popular depôs Ershad e abriu caminho para a democracia parlamentar.
O movimento ajudou a criar uma nova consciência progressista, especialmente entre os jovens, além de certas reformas constitucionais. Ele serviu para deslegitimar o controle do exército sobre a política. Os partidos políticos chegaram a um consenso sobre a futura trajetória democrática da nação – um consenso que mais tarde foi violado. Tanto a Liga quanto o BNP se beneficiaram muito com a percepção de que estavam na vanguarda dessas lutas.
O segundo grande ponto de virada foi o movimento de 2013, popularmente conhecido como movimento Shahbag, que exigia a pena capital para os criminosos de guerra. Inicialmente, a Liga apoiou essa mobilização porque ela atendia a seus próprios interesses e objetivos. Entretanto, os manifestantes de Shahbag começaram a exigir uma democratização mais ampla da sociedade e o fim das injustiças socioeconômicas.
No início, a Liga tentou controlar o movimento, mas não conseguiu. Em seguida, retirou os quadros de seu partido e perseguiu a liderança dos Shahbag, promovendo disputas internas em suas fileiras, paralisando a luta. A esquerda de Bangladesh ainda continuou com os protestos de Shahbag, mas as organizações de esquerda eram pequenas e tinham um impacto limitado no cenário político do país.
Em 2014, o movimento havia perdido sua força. Nesse processo, o país perdeu uma das maiores chances de promover uma verdadeira democratização e enfrentar as injustiças socioeconômicas sob a pressão de movimentos auto-organizados vindos de baixo. No final, o movimento Shahbag foi esmagado.
Repressão à oposição
Tendo alcançado esse objetivo, a LA passou a desmantelar seu adversário político, o BNP. Para a Liga, o Jamaat-e-Islami e outros grupos islâmicos também eram um fator a ser considerado, mas o BNP era seu adversário eleitoral imediato. A liderança da Liga logo percebeu que a insatisfação com seu histórico de desgoverno poderia beneficiar o BNP eleitoralmente.
Os líderes do BNP foram presos aleatoriamente, com acusações apresentadas contra eles, o que desestabilizou o partido. Além disso, o BNP há muito tempo recebia um apoio substancial dos militares. Entretanto, com o interesse do establishment militar no poder civil agora reduzido, a força do partido diminuiu.
Seu histórico no governo, quando no comando entre 2001 e 2006, também foi caracterizado por corrupção e ataques violentos à oposição, incluindo uma tentativa de matar Hasina com uma granada em 2004. Esse histórico desacreditou o partido e contribuiu para sua queda constante quando combinado com o uso impiedoso da máquina estatal pela Liga contra seu rival. O BNP tentou, sem sucesso, manipular o sistema eleitoral para se agarrar ao poder em 2006, mas a Liga Awami demonstrou um domínio superior de tais táticas.
O BNP se retirou das eleições de 2014, alegando que elas estavam sendo realizadas em condições injustas. Ele exigiu a renúncia de Hasina como primeira-ministra para dar lugar a uma figura “imparcial” e “não partidária” para supervisionar as eleições. Essa renúncia simplesmente entregou o poder à Liga de bandeja, com 153 candidatos de 300 sendo eleitos sem contestação.
A Liga passou a bloquear as atividades políticas do BNP em todo o país, com milhares de processos judiciais movidos contra os líderes e ativistas do partido, desde corrupção até acusações de assassinato. O partido não conseguiu se recuperar diante desses ataques em várias frentes e recorreu à violência depois de 2014, o que apenas deu à Liga a oportunidade de atacá-lo ainda mais. Khaleda Zia, duas vezes primeira-ministra do BNP, foi presa por acusações de corrupção em fevereiro de 2018.
Virada a direita
Ao mesmo tempo, as forças de esquerda envolvidas em movimentos populares também enfrentaram assédio e repressão. O Estado atacou os líderes do movimento Rampal com casos forjados e intimidação física, e os movimentos dos trabalhadores tiveram um destino semelhante.
Os islamistas de Bangladesh costumavam dar seu apoio ao BNP na época das eleições. Entretanto, com o BNP em declínio, essas forças começaram a participar da arena eleitoral por conta própria. Enquanto isso, a Liga comprometeu suas credenciais laicas históricas ao formar uma aliança tácita com o Hefazat-e-Islam, um grupo islâmico radical que foi responsável pelo assassinato de blogueiros laicos.
A frente política liderada pela Liga incluía vários partidos islâmicos conservadores. Além disso, o governo de Hasina fez algumas concessões às forças islâmicas, como o reconhecimento das madrassas Qawmi, escolas religiosas com um currículo conservador que não são regulamentadas pelo governo. Essas escolas se concentram apenas em ensinamentos religiosos, prendendo os alunos das camadas mais pobres da população em dogmas religiosos místicos. Todos esses acontecimentos ocorreram apesar da reivindicação da Liga de ser a salvadora suprema da comunidade religiosa hindu minoritária em Bangladesh.
A Liga assumiu cada vez mais o controle da aparato administração do estado por meio do processo de nomeação e colocou a mídia e a intelectualidade sob controle por meio de uma mistura de incentivos e coerção. No final de 2018, a Liga tinha um controle firme sobre a burocracia, o judiciário e até mesmo o exército, tradicionalmente visto como um dos principais apoiadores do BNP.
Os resultados das eleições de 2018 superaram até mesmo as expectativas mais otimistas da Liga, com seus candidatos conquistando 288 das 300 cadeiras em disputa. A eleição seguinte, em janeiro de 2024, foi uma farsa, com toda a oposição ausente da votação. Isso empurrou a resistência para a arena extraparlamentar, culminando com os protestos que depuseram Hasina.
O governo interino
Três dias após a partida de Hasina, o economista Muhammad Yunus, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2006, foi empossado como chefe do governo interino de Bangladesh. Oficialmente chamado de “conselheiro-chefe”, Yunus liderará uma equipe de dezessete pessoas composta por burocratas e oficiais militares aposentados, personalidades de ONGs, advogados, acadêmicos e outros, além de alguns líderes estudantis envolvidos na rebelião. A equipe é diversificada em termos do histórico de seus membros, bem como em termos étnicos e religiosos, embora não contenha nenhum representante da classe trabalhadora.
A constante erosão das instituições democráticas em Bangladesh gerou um profundo ódio pelos partidos políticos existentes. Yunus era uma figura adequada para chefiar o governo interino por ser uma personalidade conhecida que projeta a imagem de estar acima da política partidária e, ao mesmo tempo, promover o desenvolvimento nacional. Ele também foi perseguido pelo governo de Hasina e quase foi forçado a deixar o país, o que aumentou a simpatia por ele.
Para Yunus, esse empreendimento vem depois de tentativas anteriores, sem sucesso, de entrar no campo político. Embora agora haja grandes expectativas em relação a ele, devemos ter em mente sua função anterior como promotor de esquemas de microcrédito. Longe de representar uma solução para a pobreza rural, esses esquemas apenas impuseram encargos adicionais aos pobres. Sua defesa zelosa das políticas neoliberais fez de Yunus o queridinho dos governos ocidentais e do Banco Mundial.
Com o descrédito da Liga, as duas principais forças políticas remanescentes, o BNP e o Jamaat-e-Islami, esperam que eleições antecipadas as levem ao poder. Essa última força, em particular, parece ser muito bem-organizada, com redes de ativistas em todo o país, e certamente não vai querer perder essa chance.
A revolta de julho foi bem-sucedida, com a participação de um amplo leque de forças sociais. Como em outras lutas contrarregimes autocráticos, a aspiração popular era a liberdade, em grande parte expressa em termos vagos e abstratos. Em outras palavras, não foi um movimento guiado por posições ideológicas nitidamente definidas.
Inicialmente, os estudantes protestaram pela reforma do sistema de cotas, mas a repressão do Estado desencadeou uma revolta em massa que envolveu grande parte da classe trabalhadora e média de Bangladesh, que terminou com a revolta que derrubou Hasina. Os estudantes conquistaram a confiança do povo e terão que traçar um caminho a seguir.
Certamente, podemos esperar que o espírito do movimento estudantil ajude a promover uma consciência muito mais clara sobre a natureza de uma agenda transformadora. Além das demandas por eleições democráticas e pelo estado de direito, os principais itens dessa agenda incluirão ganhos econômicos, como salários mais altos e melhores proteções sociais, bem como ações sobre justiça climática – Bangladesh é imensamente vulnerável ao impacto das mudanças climáticas. Não se pode confiar no governo interino ou em seus prováveis sucessores para enfrentar qualquer um desses desafios.
Em longo prazo, os eventos de julho só terão um resultado positivo se a classe trabalhadora e outros grupos oprimidos conseguirem assumir um papel de liderança, superando as divisões religiosas e étnicas da sociedade de Bangladesh. Embora os estudantes possam ter começado a revolução, os trabalhadores terão de garantir que ela seja bem-sucedida. Aqui reside o maior desafio para a esquerda em Bangladesh.