Tarcísio joga suas cartas
As estratégias do governador paulista para sair mais forte das urnas em 2024
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
As eleições municipais terão elementos plebiscitários em muitas cidades do país, especialmente no caso do estado de São Paulo. Além da disputa entre a extrema direita e o campo democrático, vamos observar uma investida do governador Tarcísio Freitas para “sair maior” das urnas.
Nos principais jornais paulistas, se enxerga na capa a foto de Tarcísio, vitorioso e altivo, com a conclusão da venda da Sabesp por R$ 14,8 bilhões. Foi uma peça de propaganda para círculos amplos e restritos.
Tarcísio tem se dotado de uma postura singular. Por um lado, atua para fortalecer o bolsonarismo e o polo de extrema direita. Dentro desse polo, disputa, ora de forma velada ora de forma mais aberta, com o próprio Bolsonaro. Seus objetivos estão declarados: quer se habilitar para chegar à presidência, que seja em 2026 ou depois.
Nesse breve artigo queremos refletir sobre sua investida nas eleições, a partir de entender com quais táticas e programa ele se move a serviço dessa estratégia.
Do improviso à hegemonia
Nossa hipótese é de que Tarcísio vai disputar, com outros setores, por diferentes vias, a representação da extrema direita nacional nos próximos anos. Fatores conjunturais e estruturais concorrem para a concretização do cenário idealizado por ele.
Do ponto de vista conjuntural, Tarcísio mantém uma espécie de “unidade-concorrencial” com Bolsonaro; Se aproxima e mantém relação de fidelidade, por um lado; por outro, atua para pavimentar um caminho próprio, utilizando o estado de SP, a principal posição de força do campo da extrema direita, como laboratório e vitrine de seu projeto.
O nada ingênuo Valdemar Costa Neto afiança essa orientação, prometendo que Tarcísio assinará a ficha ao PL tão logo termine o processo eleitoral. Desde junho passado, por decisão no TSE, Bolsonaro ficou inelegível até 2030.
Do ponto de vista estrutural, Tarcísio busca melhores condições para governar o Brasil. Se na eleição de 2018, apesar da conjuntura brasileira caminhar à direita, da linha da burguesia de retirar Lula das eleições, a vitória de Jair Bolsonaro ter tido elementos de improviso, Tarcísio trilha outro caminho.
Um caminho que diversas variantes da extrema direita internacional têm feito: um segundo mandato ou tentativa tem patamares mais sólidos no programa do que a primeira incursão eleitoral desse campo político. De alguma forma, é o que Trump apregoa a seus seguidores nos Estados Unidos. Ou a estratégia eleitoral da RN/Le Pen na França, que, mesmo nunca tendo governado, busca ampliar um projeto mais global para chegar ao poder.
Para tanto, Tarcísio quer construir um processo de hegemonia, a partir de São Paulo, impondo uma derrota mais geral à classe trabalhadora no estado e arrastando camadas mais amplas da burguesia para investir em seu projeto como carta prioritária alternativa a Lula.
Um programa profundo e reacionário
Tarcísio quer conquistar a hegemonia com uma estratégia: quebrar o movimento de massas em SP, num movimento à la Thatcher para conquistar condições que o habilitem para seu projeto.
Ele precisa consolidar a relação de forças no principal estado do país, com uma ação combinada em várias frentes: a privatização ultraliberal do patrimônio público; quebrar a tradicional resistência dos servidores públicos de São Paulo; promover uma” contra-reforma” militar no conjunto da sociedade; vencer o debate ideológico, com um perfil planejado da extrema direita, uma sorte de “conservadorismo racional”.
Em entrevista recente à Veja (que também lhe garantiu uma capa em destaque), Tarcísio aponta quais são os principais pontos de seu programa “profundo”. Vejamos trechos:
“Não há mais como impulsionar a economia somente com capital público, com um orçamento cada vez mais engessado e com cada vez mais pressões, como as previdenciárias. A gente sabe que isso não vai dar certo. Os estados que estão impulsionando privatizações vão largar na frente”.
“Qualquer nome de centro-direita vai ser competitivo diante desse modelo esgotado. Temos um governo federal muito analógico, muito superado em termos de conhecimento, que não está percebendo as oportunidades que estão abertas”. (sobre a eleição de 2026)
A venda da Sabesp lhe credenciou ainda mais para atrair um setor muito ligado ao capital financeiro e fazer gestos mais abertos para a Faria Lima, onde o grosso dos donos do dinheiro atua. O flerte com Campos Neto indica essa aproximação.
Os quatro eixos de Tarcísio
Seu programa, de forma nítida, tem quatro grandes eixos, associados depois a outros elementos auxiliares:
Militarização da vida política
O centro de Tarcísio é militarizar o conjunto da vida social. É uma mudança radical nos pressupostos políticos e democráticos desde o pacto da Nova República. Seu complexo movimento coloca nos militares – sobretudo na PM, mas em parceria com o exército, ampliando para o conjunto das forças de repressão – um sujeito ativo na disputa da sociedade.
Para tanto, Tarcísio resgata os piores e mais violentos capítulos da PM paulista. Evoca o capitão Ubiratan, os massacres do Carandiru (1992) e do maio de 2006, para celebrar a impunidade e promover o terrorismo de Estado, voltado contra a população pobre e negra das periferias. Ele promoveu uma reforma da cúpula da PM, para colocar no topo oficiais alinhados com sua linha política, exemplificada no tripé impunidade, letalidade e privilégios.
As operações Escudo/Verão foram marcadas por violações de direitos humanos básicos, levando a 76 mortes, apenas na Baixada Santista.
O número de pessoas mortas por policiais militares em serviço dobrou no primeiro semestre deste ano – uma alta de 94% que levou a letalidade à índices “pré-câmera”, numa regressão alarmante.
A batalha em curso de Tarcísio agora tem como centro as escolas cívico-militares. Numa disputa de projeto, busca combinar um consenso ideológico com uma maior coerção, sobretudo aos estudantes e jovens, mas também de professores e da comunidade escolar. Isso seria levar um “novo regime” para as comunidades escolares, onde se disputariam temas como narrativa de sociedade, costumes, liberdades religiosas e de associação, além de restringir os aspectos democráticos do convívio escolar. Outro “golpe” de Tarcísio é militarizar a gestão do sistema penitenciário, atacando os servidores públicos que hoje atuam. Derrite é o símbolo dessa linha.
Essa orientação tem consequências nefastas para a baixa oficialidade: o número de suicídios entre PMs tem escalado nos últimos meses.
Privatização e ultraliberalismo
Vendendo a “joia da coroa” das estatais paulistas, a Sabesp, o governador mira em três objetivos: ampliar o ultraliberalismo, se credenciar no mercado e responder pela “direita” ao tema ambiental.
Com um valor arrecadado com o leilão aquém do esperado, o controle acionário ficou nas mãos da Equatorial. Vale registrar que a mesma empresa foi responsável pela crise do sistema elétrico em São Paulo e por uma péssima gestão durante os eventos climáticos recentes do Rio Grande do Sul. Uma negociação marcada por interesses privados, visto que 53% da população era declaradamente contra a entrega da Sabesp.
Além da privatização de um serviço essencial como o saneamento, o governo colocou à venda diversos terreno, imóveis, áreas verdes (até o parque estadual da Jureia) pertencentes ao patrimônio público; de mãos dadas com a militarização das escolas, o projeto de venda de escolas públicas para iniciativa privada caminha a passos largos.
Quebrar a espinha dorsal da resistência social
Tarcísio, para impor seu plano, precisa destruir ou diminuir consideravelmente a capacidade de iniciativa dos setores organizados da classe e de todo povo.
Perseguir lideranças sindicais, acabar com direitos, impor restrições às greves, é uma tarefa essencial para o “thatcherismo paulista”.
Vários são os “alvos escolhidos”, como o combativo sindicato de metroviários, onde uma categoria concentrada, com uma vanguarda radicalizada, tem poder de parar a maior cidade do continente.
Isso se estende para a CPTM e para o conjunto do professorado estadual. A política de plataformização e de “itinerários” é uma precarização absoluta do trabalho docente, quebrando não só a capacidade de resistência e greve, como impondo uma nova subjetividade, caminho seguro para doenças ocupacionais e para a liquidação da saúde mental. A invalidação da PGE é parte desse plano para atacar e esgotar o funcionalismo público paulista.
Embutida na proposta da militarização das escolas, a repressão à juventude é outra carta na manga de Tarcísio. No estado protagonista de junho de 2013 e das ocupações de escolas em 2015, Tarcísio e seu círculo direto não podem derrotar o movimento de massas sem impor rígidos mecanismos de controle para a juventude.
A composição de um novo bloco-histórico
Superar o improviso e o traço mais “bizarro” da extrema direita, onde deixa transparecer certo “despreparo” consiste em construir e soldar um novo bloco histórico para levar adiante tais tarefas. Tarcísio, de forma organizada e sem tanta pressa, se habilita para ser a representação desse projeto.
Assim, usa do espaço de poder para reunir, a partir dos eixos que colocamos, sua aliança e ampliar e alargar, conquistando novos adeptos. Uma aliança que consiga galvanizar a extrema direita urbana (com base nos pequenos proprietários convertidos em “empreendedores”, os trabalhadores precarizados frustrados convertidos também em “novos empreendedores”, o empresariado médio e em ascensão que se bolsonarizou, além das multidões neopentecostais); uma nova fase do “partido militar”, mais assentada, homogênea e coesa; o agro mais atrasado do Oeste e o Pontal do Paranapanema, e dobrar a burguesia mais dinâmica, tanto industrial quanto a ligada ao capital financeiro.
Esse plano audaz é o eixo transversal que organiza os outros temas centrais. Ele toca desde a discussão das terras devolutas, até a ressignificação de temas caros ao Bolsonarismo no terreno ideológico, sempre com Tarcísio evitando qualquer choque com Bolsonaro e seus apoiadores.
Com a disputa do agro, sobretudo num cenário onde o tema ambiental vai cobrar uma polarização acerca de saídas – com a seca voltando para SP, por exemplo -, Tarcísio quer encampar os interesses encarnados em figuras como Nabhan Garcia, todo poderoso da UDR, ex-secretário de assuntos fundiários de Bolsonaro. A presença de Tarcisio, Nabhan, Bolsonaro e Caiado na abertura da Agrishow de Ribeirão Preto, em maio deste ano, foi um aceno direto e reto para o setor. A “conquista do oeste” para o governador também serviria para neutralizar as supostas pretensões presidenciais de Ronaldo Caiado.
As eleições municipais
Durante as eleições, Tarcísio não vai “parar” seu programa para fazer campanha. Ao contrário, fará campanha realizando a política governamental. Inclusive, preparando o retorno da sede central do governo para o centro de São Paulo, como medida simbólica do que está disposto.
A disputa do estado é complexa. No segundo turno de 2022, o resultado da disputa eleitoral foi muito similar. Os mesmos 55,2% para Bolsonaro contra 44,7% para Lula se repetiram a favor de Tarcísio contra Fernando Haddad. O trunfo para o eleitorado progressista foi o resultado da capital, São Paulo, onde a balança se inclinou em favor do PT.
O eleitorado da capital já vinha sendo mais aberto às ideias democráticas quando do segundo turno de 2020, entre Boulos e Bruno Covas, este o último representante de uma linhagem em extinção – os tucanos clássicos, que tiveram que abandonar seu sonho de fazer Doria presidente e tiveram uma queda avassaladora em termos de prefeitos no estado.
Com mais de 20 milhões de habitantes, a principal batalha se concentra na Região Metropolitana de São Paulo. Dentro da RMSP, Lula/Haddad venceram, além da capital, em Osasco e nas grandes cidades do ABC, à exceção de Santo André (São Bernardo, Diadema e Mauá). Por isso, a briga entre Boulos e Nunes tem alcance nacional.
A disputa está organizada em três campos políticos/eleitorais: um campo democrático (diverso entre si, mas que tem como denominador comum evitar o retorno da extrema direita), com protagonismo do PT e PSOL; um campo à direita, onde se agrupa a constelação da extrema direita, com Tarcísio e Bolsonaro como figuras de proa; um terceiro campo mais “eclético”, porém extremamente eficaz, que oscila entre os dois polos nacionais, representado por Kassab, Podemos e os resquícios do PSDB (em queda livre).
O PT está fraco no estado de São Paulo, em que pese a ascensão do PSOL eleitoralmente: o partido de Lula tem apenas quatro prefeituras e disputará para ampliar apenas em cidades médias, sem perspectivas de obter alguma vitória relevante.
Do outro lado, Tarcísio e Bolsonaro agrupam a extrema direita “comum”, combinada com a maquinaria do estado, novidade que arrasta amplos prefeitos e vereadores para esse campo – liderado pelo PL, PR e outras siglas menores, com filiações de ocasião, dada a política local.
O que é fundamental é o campo “kassabista”, verdadeiro cometa nas disputas eleitorais recentes. Sem uma face delimitada, a desfiguração programática é funcional, pois deixa o PSD, Kassab e seus congêneres livres para arranjos locais. O PSD está no governo Lula com três ministros(Favaro, André de Paula, Alexandre Silveira), mas o próprio Kassab é o homem forte do governo Tarcísio, sendo secretário de governo com muitos poderes e vasto orçamento. Presidente nacional do PSD, Kassab hoje se consolida como a força política mais dinâmica no estado de SP, com 263 prefeitos atualmente.
Obviamente, esse campo, por identidade e programa, tem uma chave à direita, quase sempre linha auxiliar de Tarcísio, mas se movimenta no terreno pragmático, com seus próprios interesses.
O elemento destoante é o PSDB, que segue sua crise terminal. Após ter elegido 180 prefeitos em 2020, com a capital incluída, hoje os tucanos estão resumidos a 41 prefeituras, tendo sofrido uma debandada, após o naufrágio de Doria.
Tarcísio almeja, seja para se impor de uma forma ou outra, ser um nome viável, a um bolsonarismo sem Bolsonaro. O que ainda não é um plano definido da burguesia
Aposta na disputa de um programa
Diante de cenário que assusta, qual o lugar da esquerda da esquerda?
Forjar a unidade desde e quando se possa impulsionar um programa – para disputar as ideias, ganhar a juventude, eleger vereadores comprometidos com as lutas sociais. Participar ativamente das campanhas, nessa clivagem da “unidade + programa”, onde a unidade cumpre o papel de barrar a extrema-direita, e o tema de programa para apresentar saídas para o presente e para o futuro.
Os candidatos da esquerda socialista, do PSOL, devem incorporar, no seu discurso, além das propostas para as cidades e das lutas já realizadas nas tribunas do parlamento, uma pesada denúncia de Tarcísio e de seu projeto.
Isso passa por vocalizar as lutas em curso. Como a juventude que se organiza em assembleias e passeatas contra a repressão e o projeto das escolas cívico-militares e a luta contra a entrega do patrimônio estatal, além da luta pela reforma agrária e por comida saudável.
Não se trata de separar e sim atacar e golpear como se possa o projeto nefasto que Tarcísio está plantando. Uma luta longa e prolongada. Que terá lugar intenso na disputa eleitoral dos próximos 50 dias mas que antecipa uma batalha mais abrangente, estratégica, entre a ampliação dos direitos do povo, das liberdades democráticas e novas tentativas da extrema-direita de impor um regime análogo ao de 1964.