Alemanha, França e depois
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Alemanha, França e depois

Os recentes sucessos da extrema direita nas eleições regionais alemãs contrastam com o vigoroso movimento antifascista na França

Israel Dutra 3 set 2024, 18:23

Cenas dos próximos capítulos

O resultado histórico da “Alternativa para Alemanha” (AfD) nas eleições regionais do leste alemão, neste domingo (1/9) é mais um capítulo dramático, de uma crise que se agudiza. A vitória, inédita desde o final da Segunda Guerra, de um partido de ultradireita (extrema direita com traços neofascistas) traz uma angústia política sem precedentes.

Para alguns, o sinal de alarme soou nas eleições europeias, a partir da performance da extrema direita, A ofensiva genocida sobre Gaza e Cisjordânia e a batalha ideológica que se acentua nas redes sociais é a outra face dessa polarização, cada vez maior e mais agressiva.

Como parte desse tema, escrevemos uma modesta contribuição apontando a hipótese de que a vitória eleitoral da NFP na França poderia significar um exemplo para irradiar acerca dessa luta, apontando como peças centrais o programa e a mobilização.

Como era esperado, os capítulos seguintes ao alarme da eleição para o Parlamento Europeu recaem sobre as situações de França e Alemanha, combinados com acontecimentos internacionais.

Terremoto eleitoral no leste da Alemanha

As eleições regionais no leste alemão, onde antes existia o antigo Estado operário da Alemanha Oriental, foram um verdadeiro terremoto político. AfD foi a força mais votada. O fato ocorreu na eleição regional da Turíngia, onde é liderado por Björn Höeck, um dos setores mais radicais à direita do AfD. Hoeck foi julgado pelo uso do slogan nazista “tudo pela Alemanha”, no primeiro semestre desse ano.

Na outra eleição simultânea, na região da Saxônia, o AfD teve um resultado expressivo, ainda que tenha ficado em segundo lugar, poucos votos atrás do CDU (partido da direita tradicional). Ainda em setembro, uma nova eleição regional no Leste, desta vez em Brandeburgo, pode corroborar o cenário, com AfD despontando.

O quadro dos resultados replica de forma trágica as tendências já expressas na eleição de junho. Na Turíngia, a AfD venceu, com 32,8% perto dos 23, 6% do CDU; na Saxônia, a CDU teve 31,5%, contra os 30,6% da AfD. Os dois grandes derrotados foram a coalizão do governo federal, liderada por Olaf Scholz (aliança do “Semáforo” pelas cores dos três partidos, o SPD de Scholz, os Verdes e os Liberais); e o DieLinke(“A Esquerda”), que governava a Turíngia com Bodo Ramelow, perdeu quase 20 pontos e chegou em quarto lugar, com 13,1%, atrás de sua recente dissidência, “Aliança Sara W”, que teve 15,8%.

Os partidos da coalizão de governo tiveram o pior desempenho: SPD com 6,1% e 7,3%, e os Verdes com 3,2% e 5,1%, na Turíngia e Saxônia, respectivamente.

A crise do governo escalou, prefigurando uma derrota histórica nas próximas eleições gerais, marcadas para 2025. A ascensão da extrema direita vem amparada pelos acontecimentos de Solingen, cidade onde um homem, supostamente imigrante, matou três jovens. Com força de fake news, a agitação da ultradireita e de grupos de choque neofacistas ganhou forma como há muito tempo não se via. A resposta do movimento de massas foi mais tímida que nos eventos do Reino Unido, ocorridos semanas antes, que guardam alguma analogia. A resposta do governo e dos partidos principais foi de responder com medidas restritivas quanto a imigração, o que gerou um clima ainda mais propício para a narrativa da AfD.

Não é uma coincidência que a vitória da AfD comece na região histórica da esquerda e no coração do DieLinke. É uma expressão da profunda crise dessa formação, que vem optando por coalizões que destroem sua identidade, retrocedendo eleitoralmente e sofrendo com uma importante ruptura de Sara Wagenknecht, que armou seu próprio partido.

Uma imagem que circulou nas redes, horas antes da votação, de um candidato do DieLinke com a camiseta do das forças armadas israelenses, indicando a completa adaptação ao sionismo, mostra o tamanho da crise.

A resposta de Sara W é “socialista na economia, mas conservadora na política”. Seu partido, formado numa chave personalista que leva seu nome, surgiu da crise profunda que o DieLinke atravessa.

A resposta francesa

Retomando a situação francesa, Macron utilizou como pretexto um pseudo “intervalo olímpico” para evitar a nomeação da primeira-ministra indicada pela NFP, força vitoriosa eleitoralmente.

As manobras de Macron foram se evidenciando. Depois de agitar que recusaria apenas um governo da “França Insubmissa”, acabou adotando a postura de ignorar a vontade popular ao rejeitar também a indicação de Lucia Castets, economista independente, próxima do PS, deixando nítido que não se trata de barrar a indicação de um ou outra figura da esquerda, mas de recusar o programa da NFP como um todo.

Melenchon acerta, ao dobrar a aposta e convocar manifestações para o dia 7 de setembro, falando em “impeachment” de Macron. E priorizar o programa como “ponto de corte”; a CGT está em campanha pela revogação da reforma previdenciária. A luta anticolonial segue com o povo Kanaky protagonizando uma rebelião popular no território ultramarino de Nova Caledônia.

As recentes atividades de verão dos partidos de esquerda foram concorridas, levando milhares de jovens para debater política e formação. A presença do NPA na Universidade de Verão da FI foi importante, com Bensancenot recebido com entusiasmo. A própria universidade do NPA aponta para retomada, com 750 participantes, refletindo o clima político.

A resolução do impasse para nomear um novo primeiro-ministro será apenas um capítulo na crise da V República, onde a dinâmica será decidida nas ruas. Ao contrário da situação alemã, onde a iniciativa da AfD não encontra resposta à altura, a sinergia da NFP indica que a França segue sendo um exemplo para um novo (e necessário) momento da luta antifascista.

Rotas falsas

A luta contra a extrema direita reacende debates acerca da estratégia política da esquerda, levando a distintas conclusões. Alguns, assustados com o fenômeno real, caminham para prostração e para o ceticismo. Outros recuam de pressupostos caros aos princípios da esquerda para buscar atalhos no enfrentamento à onda da ultradireita. Duas rotas falsas se apresentam.

A primeira é uma linha cética, que acaba não vendo saída possível, levando a dois caminhos: um ceticismo profundo, como se as batalhas do presente não tivessem mais sentido, jogando a defesa de um programa de mudanças para um futuro distante; o outro caminho, é a unidade em defesa de “tudo que está aí”, confundindo as conquistas históricas da civilização com a defesa do capitalismo em sua fase mais degradada.

A outra linha, mais perigosa, é a de adaptação programática, com o intuito de “disputar melhor” contra a extrema direita. É o que se expressa no novo partido de Sara W, na Alemanha, e em alguma medida na figura de Galloway no Reino Unido. Com uma premissa correta (disputar os setores mais atrasados da classe para não deixar o caminho livre para os partidos como AfD) eles renunciam a bandeiras inegociáveis como a defesa dos direitos imigrantes, mimetizando o programa da extrema direita no âmbito da política e dos “costumes”.

Essa linha é perigosa pois naturaliza as práticas xenofóbicas – Sara W chegou a falar que poderia votar no parlamento leis em comum sobre esse assunto com AfD – rompendo certas “linhas vermelhas” até então estabelecidas.

Força, Resistência, Solidariedade”

Há uma lição no novo filme de Ken Loach, cuja estreia tardia no Brasil ocorreu na mesma semana em que o Reino Unido assistiu aos ataques neofascistas contra imigrantes, disseminados e convocados na base de fake news.

Colocando em tela a cisão entre os setores mais atrasados da classe operária local e as famílias de imigrantes vindas da Síria, o filme (que no Brasil ganhou o título de “O Último Pub”) apela à solidariedade para superar a fragmentação. É com base na ruptura da subjetividade da classe- sem espaços associativos, laços comuns – que se esvai uma visão comum de mundo, abrindo caminho para a morbidez da xenofobia.

Sem resgatar a identidade hoje dividida da classe trabalhadora, em suas novas conformações, recentrando o problema das opressões, qualquer incursão contra a extrema direita será débil.

A principal tarefa da resistência à extrema-direita é colocar na mesma sintonia os setores majoritários da sociedade, numérica e politicamente, ou seja, os explorados como um todo. O grande mérito da NFP francesa não foi sua impressionante virada eleitoral (que foi um ponto alto eletrizante), mas a força com que conseguiu unir o proletariado tradicional, envolvendo as grandes centrais sindicais com grandes parcelas dos bairros periféricos, os subúrbios de imigrantes. A Alemanha tem reservas e memória histórica dentro de sua classe, com um importante acúmulo antifascista, com coletivos e núcleos ativos em várias cidades. É preciso ativar essa potência, apontando a falência do próprio governo em assistir às demandas mais sentidas da classe. Aí está o caminho de construir o “cordão sanitário” contra a extrema-direita, nas urnas, nas instituições, mas sobretudo nas ruas.

Fiquemos com as palavras do intelectual marxista Statis Kouvelakis, em palestra há alguns meses, acerca da resposta francesa:

Formularei esta hipótese da seguinte forma: um governo de coligação de forças populares, baseado num programa disruptivo, como único meio de construir uma alternativa ao poder. Na verdade, quando o fascismo se apresenta como uma alternativa e chega às portas do poder, só pode ser derrotado permanentemente por uma alternativa de poder, uma alternativa real porque procura romper com a ordem existente.

Trocando em miúdos, a cena mais bela do filme de Loach, um estandarte escrito em inglês e árabe com os dizeres: “Força, Resistência e Solidariedade”.


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Pedro Micussi