As regras e o jogo: sobre as distorções do sistema eleitoral brasileiro
As distorções do sistema eleitoral brasileiro devem ser durante combatidas em prol de mecanismos democráticos de fato
Foto: TRE-DF/Reprodução
O processo eleitoral envolve parte importante da vanguarda militante e do ativismo. Sem lugar a dúvidas, será um importante processo de disputa, com necessidades políticas e programáticas urgentes. A saber: derrotar a extrema direita, colocar no centro do debate o programa para as cidades e reeleger mandatos combativos como caixa de ressonância da luta popular, apenas para grifar algumas tarefas.
Como sabemos, embora não custe reafirmar, as eleições são um “espelho distorcido da realidade”. Ou seja, carregam leis e condições próprias para distorcer o estado mais puro do que poderia ser a “vontade popular”. São múltiplas as determinações que envolvem essa distorção geral, que tem lugar sobretudo na disparidade econômica e no controle da política pelos grandes grupos capitalistas; contudo, temos variáveis que dizem respeito às instituições, ao regime e ao próprio sistema eleitoral. Compreender tais condições é fundamental, já que constitui a forma como o universal se particulariza. Cada sociedade molda regras eleitorais de acordo com a sua construção histórica e com a relação de forças entre as classes, pensando que o regime político é uma mediação determinada, dentro de um Estado que sempre cumpre — com formas diferentes — o papel de gestor dos interesses dos grandes capitalistas.
Entender as regras do jogo e o próprio “jogo de interesses” que está posto, portanto, torna a atividade da disputa eleitoral da esquerda menos inconsciente e, assim esperamos, menos inconsistente.
A recente votação da PEC 9 na Câmara Federal, uniu os dois maiores polos da política brasileira, com a honrosa exceção do PSOL, para anistiar aqueles que infringiram a lei por não cumprir as regras progressivas de representação étnica-racial e de gênero. O PT e o bolsonarismo votaram a favor da PEC argumentando “razões de Estado”.
Debater o atual sistema eleitoral é fundamental para entender onde estamos. Mais do que isso, é instrumental para pensar o programa e o arco de alianças para um bloco histórico que seja capaz de bloquear a extrema direita sem deixar de lutar por outro regime. É também fundamental para pensarmos outro modelo eleitoral capaz de combatê-lo com “mais democracia”, e não uma aposta débil num social-liberalismo capenga às derivas autoritárias (reais) da extrema direita.
Nesse contexto, o aparecimento do artigo A necessidade de um novo sistema eleitoral, de Raul Pont, na Revista Democracia Socialista nº 13 (abril de 2024), é um importante aporte à discussão. Em julho, no site da DS, Pont publicou um novo artigo, mais sintético e atualizado, versando sobre a urgência da questão eleitoral.
Tal elaboração eleva a discussão. Traz premissas que por vezes são esquecidas por atores políticos no campo da esquerda e da centro-esquerda. Não basta apenas ter “êxito eleitoral”, mas é fundamental entender e transformar o atual modelo eleitoral para lutar por mudanças e por medidas transitórias que façam um vínculo com um futuro diferente, tarefa urgente desta geração.
A correta crítica de Raul Pont
A polarização contra a extrema direita, que é internacional, nos impõe como medida urgente a necessidade de construir “muros” e “barragens” para evitar que os setores mais alinhados ao neofascismo ascendam a postos de poder institucional. A máxima expressão foi a vitória de Lula sobre Bolsonaro, evitando um segundo mandato do genocida, fadado a fechar ainda mais o regime. Portanto, parte do esforço de luta contra a extrema direita está concentrada na agenda eleitoral.
Essa condição, gritante, pode induzir a dois perigos, como mínimo. O primeiro deles é colocar apenas a luta eleitoral (em detrimento da disputa de hegemonia na sociedade) como espaço de enfrentamentos aos neofascistas, seu programa, seu projeto e suas ideias. O segundo é normalizar como democrático o atual sistema eleitoral, expressão de um regime político em crise, repleto de distorções, a favor das classes dominantes e de seus representantes (que conformam castas “políticas” e “judiciais”).
Nesse sentido, é correta e profunda a caracterização de Raul Pont:
O sistema eleitoral e partidário brasileiro ainda é pouco democrático, o atraso é histórico. Nossa experiência democrática é muito pequena. Séculos de exclusão social colonial, de escravidão, longos períodos autoritários e ditatoriais marcam nossa trajetória histórica e cultural. A primeira experiência de pluripartidarismo só ocorreu na metade do século 20, entre 1945 e a ditadura civil militar de 1964, assim mesmo com limites, pois partidos comunistas continuavam excluídos e na clandestinidade.
A década de 80, apenas 40 anos atrás, viveu o início de uma nova experiência político-partidária com democracia ampliada, com liberdade plena de organização partidária. Podemos afirmar que é a mais longa experiência democrática da nossa história, ao mesmo tempo, motivo de orgulho por essa conquista, mas, também, compreensão dos limites e insuficiências dessa experiência, para não termos ilusões falsas do conquistado e dos grandes obstáculos a serem superados, a começar pela brutal desigualdade social no país.
As maiores mazelas do sistema eleitoral vêm do período ditatorial e foram mantidas pela Constituição de 1988. Isto é, “o voto é igual para todos”. Mas a mesma carta estabelece aos Estados um piso mínimo de oito deputados e um teto máximo de 70 deputados, independentemente da população, na composição da Câmara Federal. Isso distorce flagrantemente o voto da cidadania e o princípio democrático. No Senado, o caráter federativo que justificaria três vagas por Estado (lembram do senador “biônico” da ditadura?) esconde as alterações realizadas na Constituição Federal, pelas quais a Casa tem praticamente as mesmas competências da Câmara.
Nossas instituições, de conjunto, refletem essa “democracia racionada”, fruto da estagnação das tarefas democráticas e da cooptação da maior parte da esquerda ao aparelho de Estado.
Nos últimos 40 anos, após vitórias eleitorais, conquistas de mandatos, aprovação de leis progressivas nos parlamentos, a aparência de êxito nos desarma e reforça o clientelismo.
É preciso entender a fundo esse processo para lidar com a dialética entre conquistas democráticas – como o financiamento público de campanhas e a remuneração dos parlamentares para exclusividade da atividade política – e a dependência crescente do Estado, que gera distorções nos partidos e organizações que representam a classe trabalhadora.
O atual combo composto por fundo partidário, fundo eleitoral, emendas parlamentares e alta remuneração dos eleitos e seus assessores nos leva a uma situação dramática.
O pensamento de curto prazo, que relega para segundo plano tais contradições, não consegue explicar decisões táticas e estratégicas centrais para o campo da esquerda e centro-esquerda dos dias de hoje. O personalismo que forja lideranças ao redor do carisma e do acesso à recursos, a diluição programática, a falta de qualidade no debate político e o abandono da necessidade de organização popular são efeitos práticos da questão do “Estado ampliado”, para pensar um conceito de Gramsci para o Brasil dos dias de hoje.
E o problema estratégico, de disputar as instituições por “dentro” foi o que levou a maioria do PT, a partir dos anos 90, à sua conversão social-liberal.
Não estou convencido de que o fim do voto nominal, como apregoa Pont, seja a saída para as distorções dadas; como também não julgo positiva a cláusula de desempenho estabelecida até 2030.
Porém, o debate trazido por Pont é essencial para desnaturalizar o atual sistema político-eleitoral. O “centrão”, categoria política consagrada por esse modelo, é o maior vencedor e maior interessado em manter as atuais regras, para seguir controlando o jogo.
O regime de 1988 como base das distorções no modelo eleitoral
O sistema eleitoral tem como base política e jurídica o regime conhecido como “Nova República”, ou seja, conformado na Constituição de 1988.
Apesar da visão corrente de que houve uma série de avanços no terreno social – o que levou a um setor batizá-la de “Constituição cidadã” –, e de reconhecermos ser necessário defender as liberdades democráticas contidas no regime de 1988 contra a horda política do bolsonarismo, é preciso sublinhar que o atual regime não representa as aspirações populares e não pode ser considerado como uma democracia substantiva.
São vários os chamados “entulhos”, heranças da ditadura militar que cobram seu preço até hoje. O mais grave é o “entulho militar” — que foi recalcado por anos e, pela falta de uma justiça de transição efetiva, derivou num dos pontos de apoio do bolsonarismo, expresso na estrutura das forças de repressão e no peso dos militares na vida política.
Há, porém, outra herança, pouco reconhecida, no âmbito da legislação eleitoral. Pont acerta quando sugere que
“os problemas do sistema eleitoral vêm de longe”. A maioria deles vem do Congresso Constituinte de 1988. A legislação eleitoral herdada da ditadura (1965/1984) foi mantida quase na íntegra. Afinal, eram deputados e senadores votando na continuidade de seus mandatos e não “constituintes exclusivos” que voltariam à condição cidadã e teriam que se submeter às novas regras caso quisessem disputar cargos eletivos.
Em 1982, voltamos ao pluripartidarismo, mas a distorção de piso e teto na proporcionalidade da representação da cidadania dos Estados na Câmara Federal permaneceu.”
As reformas e minirreformas eleitorais ocorridas nos últimos 30 anos apenas reforçaram duas das características centrais: a desigualdade/exclusão (como por exemplo, a redução do tempo proporcional destinado à propaganda de rádio e TV) dos partidos mais à esquerda e o fortalecimento de cúpulas e castas que se autorreproduzem, em todas as esferas da disputa eleitoral.
As medidas agregadas, por emendas constitucionais, pouco diferem desse quadro. Podemos tomar como positivas o fim das coligações proporcionais, a instituição das federações, o financiamento público com base em uma representação política proporcional, a restrição do número de reeleições consecutivas para cargos majoritários. São insuficientes para superar, contudo, a natureza geral do sistema eleitoral.
O próprio financiamento público de campanha acaba sendo desvirtuado. Diante das crises de sucessivos escândalos de corrupção, o financiamento público hoje é exorbitante, com altos fundos a serviço de distorcer- a partir do erário público- o peso dos candidatos, de acordo com as cúpulas partidárias, “inflacionando” as campanhas de tal forma que beneficiar a regra de “quem tem mais, pode mais”.
Voltemos a Pont:
Se somamos a isso a febre clientelista que tomou conta dos legislativos, as emendas parlamentares impositivas ou não, num país que continua presidencialista e aos Executivos compete elaborar e executar os Orçamentos, o caos e a ingovernabilidade estão instalados.
Não bastam os Fundos Partidários e Eleitoral, a guerra pelo voto requer cada vez mais recursos públicos e privados, mais clientelismo e, é evidente, mais negócios para mais apoiadores independente da identidade programática e/ou partidária.
Esse sistema eleitoral é destruidor dos partidos, de todos, mais cedo ou mais tarde. Além disso, fundos bilionários e emendas parlamentares impositivas impedem os governos de planejar, de racionalizar gastos, enfim, de governar.
Tivemos inúmeras oportunidades de discutir e superar o atraso do nosso sistema político eleitoral. As jornadas de junho de 2013 trouxeram à baila toda uma crítica ao modelo de representação, com a juventude disputando um sentido comum para a indignação. A resposta do governo à época, e dos setores majoritários do PT e da esquerda, foi enfrentar e desmoralizar os protestos.
Também à época, foi levantada a possibilidade de uma constituinte exclusiva para uma reforma política, tema que foi assumido efetivamente por poucas forças políticas, demonstrando novamente a acomodação da direção do PT e seus satélites. Foi, assim, desperdiçada uma oportunidade, enquanto a relação de forças ainda não tinha sido degradada com as mobilizações reacionárias (que constituíram um verdadeiro simulacro para desativar a pulsão das ruas expressa em junho de 2013).
Sem tocar no modelo clientelista, será impossível enfrentar a corrupção endêmica que marca a política brasileira. Sem enfrentar a corrupção de forma séria e consequente, o discurso demagógico das “direitas” terá eco nos setores mais atrasados do povo. Um círculo vicioso.
Temas urgentes
De outra parte, existem enormes reservas dentro do que podemos chamar de amplo movimento popular e de massas no Brasil, que se expressaram na eleição de Lula e na inviabilidade de Bolsonaro fechar o regime. É essa massa, influenciada politicamente por ideias progressistas, que deve ser ativada para o debate programático sobre as regras atuais da política.
Em primeiro lugar, há que se defender as conquistas democráticas diante de qualquer ataque ou restrição, ensejada local ou nacionalmente pela extrema direita, seus agentes e dirigentes. Antes que nada, é preciso reprimir os golpistas e tomar medidas para diminuir seu peso político, no sentido do clamor popular quando brada o “sem anistia”.
Em seguida, há que se regular e criar uma ampla reforma das emendas parlamentares, com critérios e transparência, envolvendo estruturas mais gerais de controle e decisão. Isso enfraquece o centrão, sua lógica e suas figuras. Restringir ao máximo as emendas, colocando para a sociedade civil mecanismo de discussão e partilha do orçamento.
No âmbito das eleições, é preciso tomar consciência das distorções e reavivar bandeiras históricas da esquerda como a paridade de representação entre gênero nas casas legislativas, limitar o teto de gastos nas campanhas eleitorais, bem como os salários dos eleitos, entre outras medidas democráticas. Valorizar os servidores públicos de carreira em detrimento do vendaval de cargos de confiança, muito acima da média de qualquer democracia liberal no mundo.
O discurso hipócrita dos reacionários divide a classe trabalhadora. Além do “povo das esquerdas” que elegeu Lula, existe uma ampla massa de trabalhadores – uma força social relevante — que está sendo disputada, ainda que parcialmente, para ideias reacionárias. Uma das ideias mais fortes é de que a “política” é dominada por uma casta de privilegiados, onde a esquerda é a principal beneficiária. Existe verdade nesse veredito, como bem discutimos quando a maioria da esquerda abraça a integração ao Estado democrático de direito e suas distorções. Porém, essa questão é instrumentalizada pela extrema direita para dividir a classe trabalhadora, com um discurso demagógico e populista.
Consciência para ter coragem
É preciso ter coragem para enfrentar esse debate. E o primeiro passo é ter consciência do tamanho do problema, da natureza do regime em sua fase mais degenerada. O atual sistema eleitoral não é justo, nem plenamente democrático. Ao contrário, é parte do repertório do regime liberal, que engendra também o poder judiciário marcado pela exclusão da maioria, pela meritocracia, pelos privilégios e pela falta de controle popular nos tribunais.
É hora de combater retrocessos, construir uma agenda mínima para avanços, sem perder o horizonte da construção de alternativa independente e anticapitalista. É hora de defender os direitos e as liberdades democráticas sem defender o chamado “Estado democrático de direito”.
Assim poderemos começar uma discussão de temas básicos para fomentar medidas transicionais, que, só poderiam ser aplicadas numa outra relação de forças, através de uma constituinte soberana, mas que merecem ser assinaladas. A esquerda socialista sempre defendeu bandeiras democrático-radicais que iam desde a vigência de uma câmara única, a revogabilidade de mandatos, passando por medidas como a equiparação salarial entre uma professora e um deputado, por exemplo.
De outra parte, os mandatos socialistas devem dar o exemplo. Em artigo posterior, queremos introduzir a discussão acerca das concepções dos revolucionários em ação no parlamento e a atualidade desses critérios.
Sem mudar estruturalmente o que conhecemos como “sistema político”, democratizando espaços de poder, dando voz e vez para os de baixo, lutando por outro regime, as vitórias de ocasião se transformarão em derrotas estratégicas.