França: nasce o “último governo” da Macronia
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França: nasce o “último governo” da Macronia

Protestos aconteceram em todo país contra a nomeação do novo primeiro-ministro, desrespeitando os resultados das últimas eleições francesas

Israel Dutra e Luc Mineto 10 set 2024, 14:17

Foto: Euractiv/Reprodução

A extrema direita assusta a Europa e a escolha do primeiro-ministro francês feita por Macron assusta a quem quer repelir a extrema direita.

Macron usou do período das férias na Europa e do fato de Paris sediar os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos para postergar sua decisão. Após quase 50 dias de indefinições, manobras e consultas, na última quinta-feira, dia 5 de setembro, Macron nomeou Michel Barnier para o cargo de primeiro-ministro.

Durante o período das consultas de Macron vários nomes chegaram a circular, de um amplo espectro político do centro esquerda até a direita, e o escolhido Barnier pertence sem dúvidas as franjas mais reacionárias e direitistas da vida político francesa. Da direita liberal, Barnier vai manter a política dos ajustes fiscais e fazer os trabalhadores pagarem o preço da redução dos déficits exigida pela Comunidade Europeia. Como reacionário, vai reforçar a luta contra a imigração e repressão nas periferias. Como conservador, vai enterrar as pautas sociais da Macronia, como a regulação do fim de vida assistida.

Barnier e o “cordão sanitário” … contra a esquerda

Então por que escolher Barnier, que pertence a um grupo político em declínio e que conseguiu eleger somente 44 deputados? Por isso mesmo: constituir um governo de direita que possa contar com o apoio do conjunto da direita e da extrema direita, um governo nomeado por Macron e abençoado pelo Reagrupament Nacional (RN). Logo se criou uma situação em que o RN da Marine Le Pen e Jordan Bardela se tornou a última linha de defesa do novo governo. Aliás, somente as tratativas com o RN explicam que o preferido do Macron, Xavier Bertrand (tão a direita, tão liberal, tão conservador quanto Barnier) não foi o escolhido por ser um desafeto pessoal da Marine Le Pen. Não é uma frente “republicana” como foi prometida no segundo turno. É uma frente antipopular que sobe ao governo.

Essa movimentação, ousada e temerária por parte do governo e da patronal francesa, marca o fim da “Macronia”, que é como conhecida a força política de Macron e tinha duas características:

A primeira era uma suposta habilidade de navegar entre uma política econômica liberal radical (reforma das aposentadorias, desmonte do serviço público), o uso brutal da repressão (contra os Coletes Amarelos, os migrantes, as manifestações populares) e tentativas sedutoras nos temas políticos e democráticos, para produzir uma nova política. Qual melhor sinalização do fim deste paradoxo de que substituir o mais jovem primeiro-ministro da história da 5ª República francesa, orgulhosamente LGBT, por um político tradicional, católico fervoroso de 73 anos?

A segunda característica era o dinamismo de governo. Quando Macron chegou a ser visto como todo poderoso, uma espécie de “Júpiter”, no começo de seu governo. Dono de todas as decisões e deixando o primeiro-ministro longe dos holofotes. Tudo isso acabou. Desgastado por uma sucessão de confrontos, derrotas e decisões erráticas, Macron, pelo menos por um tempo, vai ter que deixar o primeiro-ministro ocupar o palco. Vale recordar que Macron foi eleito com os votos “progressistas” no segundo turno presidencial de 2022.

Alguns até arriscam falar que pode significar o do fim da 5ª República. Desenhada sob medida após o golpe institucional que marca a volta do De Gaulle, a atual constituição francesa se revela cada vez mais inadequada, acumulando todos os defeitos. Concebida para garantir ao presidente em exercício uma maioria para governar, ela fracassou várias vezes entregando a maioria parlamentar à oposição, e fracassou ainda mais em 2024 revelando-se incapaz de formar uma maioria absoluta. Além disto, tal sistema é amplamente antidemocrático, fazendo com que as formações menores não consigam representação parlamentar.

A Nova Frente Popular (NFP) recarregada

A NFP soube manter sua coesão nessas eleições legislativas, se agrupar ao redor de um programa de ruptura e mobilizar seu eleitorado, buscando reservas de votos e de mobilização entre (mas não somente) os jovens oriundos da migração das periferias. O resultado foi claro, com a NFP saindo majoritária de seleções legislativas. Maioria relativa com 209 eleitos (a maioria absoluta requer 289), mas bem na frente da extrema direita com 142 deputados ou a coalizão macronista com 166 deputados.

Durante 5 semanas, Macron multiplicou as tentativas para dividir a NFP e tentou convencer as alas mais a direita do Partido Socialista para compor um governo de unidade nacional, com figuras como o previsível Bernard Cazeneuve que já foi premier de François Hollande, ou ainda Karim Bouarane, prefeito de Saint Ouen (no cinturão popular de Paris). Todas as tentativas de diabolizar Melenchon ou outras figuras da França Insubmissa fracassaram, tamanha a pressão popular para manutenção da NFP e suas bandeiras.

Apesar do fracasso, as manobras da elite francesas relevam duas coisas: a forte pressão exercida pelo social-liberalismo à “direita” do NFP. Apesar do protagonismo da França Insubmissa, esta formação sozinha ficaria bastante atrás do patamar da extrema-direita de Le Pen (RN, com tantos votos). Ou seja, a sorte está atada ao fato que a NFP não rompa, mas se mantenha.

Contudo, a decisão de Macron de nomear um governo reconhecidamente sem legitimidade, tem dois efeitos colaterais que reforçam a NFP. Primeiro ela passa a ter o monopólio da oposição. Caiu de vez a fachada de “rebeldia de direita” do RN, como ocorre em muitos processos, em que o antagonismo a extrema direita é exercido através de uma lógica de governo, da “realpolitik”, que só tem a oferecer a miséria e decadência do capitalismo liberal. Na França, a hegemonia da oposição e da luta contra a extrema direita é das ruas, de forças políticas ligadas à classe trabalhadora e aos subúrbios, aos migrantes, às mulheres, os LGBTQI+.

O segundo efeito, é manter a unidade da NFP. Essa unidade não é só dos partidos, mas é uma unidade de todo campo social, unidade da classe e de todo povo numa fase em que a disputa central é acerca da cooperação, da associação e da identidade de classe. A escolha de Barnier é percebida como um “roubo do voto”, uma recusa não de pessoas, mas de um programa que incluía, entre outros, a revogação da reforma da previdência e o aumento imediato do salário mínimo. E todos percebem que romper essa unidade e se render ao macronismo terá um preço político e eleitoral muito alto.

E agora?

Barnier ainda não definiu seu ministério, e para fazê-lo terá as dificuldades já encontradas por Macron: achar nomes, achar nomes que podem parecer de esquerda e, sobretudo, não desagradar o RN e Marine Le Pen.

As manifestações de sábado dia 7 foram importantes. 160 000 pessoas em Paris, 300 000 na França em 135 cidades. Para forçar a saída do Barnier e o reconhecimento da vitória da NFP precisaremos de muito mais. Mas, nas palavras do porta-voz do NPA-Anticapitalista, Olivier Besancenot, neste retorno de férias, tratava-se de um ensaio. Ele foi bem-sucedido. Esse novo governo que nasceu com a chancela do RN vai ter que viver sob a rejeição do povo.

O intelectual Cristian Laval, famoso por obras acerca do neoliberalismo, em recente entrevista para Mediapart definiu bem que “para a Macronia, a NFP é um mal absoluto, junto ao qual o RN (Le Pen) é um mal relativo. Isto é o que Macron quer comprovar ao receber das direitas sucessivamente a garantia da moção de censura contra um governo da NFP”.

Insistimos em acompanhar a experiência da luta da NFP francesa, ainda que incipiente e incompleta, por três grandes questões que estão em desenvolvimento:

  1. É a onde a resposta à extrema direita está sendo desenvolvida “à quente”, apostando na unidade e recomposição da classe, na convocatória das ruas e na força do programa;
  2. A disputa não envolve apenas temas de ordem “democrática”, senão aspectos centrais do programa neoliberal, ou seja, é uma luta para superar o neoliberalismo diante das crises orgânicas da democracia liberal e das falsas alternativas ditas “iliberais” patrocinadas pela extrema-direita.
  3. O exemplo pode se espalhar. Gaza resiste. A Palestina resiste. As mobilizações em defesa dos imigrantes foram massivas e autoconvocadas no Reino Unido. A luta anticolonial cresce em diversos continentes. Para lutar contra o alarme do neofascismo, simplesmente defender “tudo que está aí” é o caminho certo para a derrota. E é na França onde esse nível de experiência pode dar um salto.

Dito isso, tal qual na canção de Mercedes Sosa, apostamos nossas fichas na resistência do povo francês, na tradição antifascista, na unidade entre a classe trabalhadora (migrante e nativa), na atuação dos revolucionários do NPA-Anticapitalista, da Quarta Internacional e das diversas outras forças no processo.

“Quem disse que tudo está perdido? Eu venho oferecer meu coração”.


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