Macron despreza o voto popular… e se coloca nas mãos da extrema direita
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Macron despreza o voto popular… e se coloca nas mãos da extrema direita

A manobra do presidente francês para impedir a esquerda no poder ignora a vontade da população e fortalece Marine Le Pen

León Crémieux 20 set 2024, 11:44

O povo, por sua própria culpa, perdeu a confiança do governo… Não seria então mais simples para o governo dissolver o povo e eleger outro?

(Bertolt Brecht, The Solution,1953)

Macron acabou de colocar em pratica as linhas irônicas de Brecht. De 2017 a 2024, seu partido passou de 314 para 99 deputados na Assembleia Nacional. Ele foi novamente derrotado nas eleições europeias e legislativas de junho/julho de 2024. Nessas mesmas eleições legislativas, uma frente eleitoral contra o Rassemblement National (RN, Reunião Nacional) foi formada no segundo turno por todos os partidos, exceto o pequeno partido de direita Les Républicains (LR, Os Republicanos). A barragem funcionou, frustrando todas as previsões, com o RN nem mesmo conseguindo garantir uma maioria relativa. A formação que saiu vencedora no segundo turno foi claramente a NFP (Nova Frente Popular), seguida pelo “bloco de centro” e pelo RN.

Apesar desses resultados, no início de setembro foi formado um governo liderado por um velho político pertencendo aos Republicanos, Michel Barnier, que reciclará muitos dos líderes da “maioria presidencial” para dar continuidade às mesmas políticas. Como chegamos a esse resultado? No total, no dia seguinte às eleições legislativas, havia três blocos na Assembleia: a nova Frente Popular com 193 assentos, os macronistas com 166 assentos e o RN e seus aliados com 142 assentos, seguidos pela pequena aliança em torno do partido histórico da direita, Les Républicains, com 47 assentos. Primeiro, Macron fez obstrução e manteve, por mais de dois meses, o primeiro-ministro incumbente, Gabriel Attal, e seu governo “demissionário”, pretextando uma “trégua das Olimpíadas de Paris”. Depois, contrariando a prática usual de nomear um primeiro-ministro do partido que ficou em primeiro lugar nas eleições legislativas, ele imediatamente descartou a nomeação do candidato escolhido pela Nova Frente Popular. E, finalmente, para garantir que, apesar da votação, suas políticas não seriam questionadas e que ele poderia continuar a liderar o executivo, em 5 de setembro ele nomeou Michel Barnier, um político antigo oriundo dos Republicanos. Em junho de 2024, Macron usou sua prerrogativa presidencial para dissolver a Assembleia Nacional. Ele fez isso após as eleições europeias, que viram sua aliança presidencial fracassar de forma espetacular, perdendo 14,6% dos votos para o Rassemblement National (31,37% dos votos) e a esquerda, dividida em quatro listas (31,58% dos votos).

A ideia de manobra de Macron era tentar ampliar sua maioria parlamentar, embaralhando as cartas. Com apenas 251 das 577 cadeiras para ele e todos os seus aliados na assembleia de então, ele sabia que estava à mercê de um voto de desconfiança que forçaria seu governo a renunciar. Na noite das eleições europeias, a extrema direita parecia ser a grande vencedora, e a esquerda estava dividida (entre o EELV, o PCF, o PS e o LFI – La France Insoumise) e incoerente desde o rompimento do NUPES [Nova União Popular Econômica e Social, coalisão eleitoral dos partidos da esquerda para o segundo turno das legislativas 2022] um ano antes. Além disso, a principal lista europeia da esquerda era a lista do PS liderada por Raphaël Glucksmann, que parecia estar próximo do social-liberalismo e em desacordo com La France Insoumise. Diante do que parecia ser um campo de ruínas, Macron achava que tinha o controle do jogo e que poderia recompor ao seu redor, diante da ameaça de uma maioria do RN, alguns dos socialistas, ecologistas e gaullistas da LR. Na pior das hipóteses, ele se via coabitando com um governo Bardella, dando a si mesmo a estatura de um presidente que resiste aos excessos da extrema direita. Quaisquer que fossem seus planos fantasiosos, eles se dissiparam em 48 horas diante da determinação do movimento sindical e do movimento social de impor unidade à esquerda, uma nova frente popular, para derrotar a ameaça neofascista, com um único candidato em cada distrito eleitoral e um programa comum “para uma ruptura social e ecológica”.

Macron, recusando-se a aceitar seu fracasso e abusando de seu poder constitucional de nomear o primeiro-ministro, está agora tentando se manter como chefe do executivo com um governo à sua disposição para perseverar em suas políticas. Acima de tudo, está fora de questão para ele aceitar a formação de um governo de esquerda. O argumento apresentado para essa recusa foi, antes de tudo, “a presença de ministros do LFI”, que há meses vêm sendo difamados e estigmatizados como “cúmplices do Hamas” e “antissemitas”. Uma presença intolerável que desencadearia imediatamente a censura, proclamaram Gabriel Attal, do Ensemble, os Republicanos, e Jordan Bardella, do RN. Para todos eles, um governo com a presença do LFI desencadearia automaticamente uma moção majoritária de censura.

Mas o verdadeiro motivo da rejeição visceral de um governo do NFP logo se tornou evidente: para descartar o pretexto de sua presença para rejeitar Lucie Castets [designada pelo NFP para ser a nova primeira-ministra], a LFI questionou os macronistas no final de agosto sobre sua posição em relação a um governo que não incluísse ministros do LFI.

Os macronistas e a direita da LR foram rápidos em responder: não haveria dúvida de que um governo sem o LFI voltaria atrás na reforma das aposentadorias e aplicaria o programa do NFP para romper com o liberalismo… O presidente do MEDEF (a poderosa confederação patronal) Patrick Martin, também insistiu que não havia dúvida de que se voltaria atrás nas políticas implementadas desde 2017. Da mesma forma, o RN afirmou claramente que censuraria qualquer governo de esquerda. Em suma, uma unanimidade de classe contra qualquer governo empenhado em romper com as políticas neoliberais!

Com essa vigorosa campanha contra o NFP, no espaço de algumas semanas passamos de um movimento profundamente enraizado na sociedade para se opor a Le Pen a uma frente comum de Macron a Le Pen para bloquear a implementação de uma política para atender às classes trabalhadoras e deixar de lado um governo de esquerda. Macron não teria tido problemas para se adaptar a um governo do RN, mesmo sem uma maioria absoluta. Por outro lado, a ausência de uma maioria absoluta para o NFP significava que Julie Castets não poderia ser nomeada “por motivos de estabilidade”. O que vale para o RN obviamente não vale para o NFP.

A situação concreta desse novo governo Barnier é que ele é o nariz falso de um governo Macron, mas com uma nova situação. A aliança de fato com os republicanos e o apoio externo do Rassemblement National, que acaba de declarar que está “colocando o governo sob vigilância”. Isso significa um enfraquecimento ainda maior de Macron, uma mudança para a direita e a pressão do RN, o amigo da onça, que sustentará esse governo como a corda sustenta o enforcado. O perigo é grande de ver Barnier implementar o que anunciou quando assumiu o cargo: uma ênfase ainda maior em questões de segurança, uma política discriminatória contra estrangeiros e novas políticas contra migrantes. Em outras palavras, uma política compatível com a RN e amplamente alinhada com o perfil político do novo primeiro-ministro. Conhecido por uma série de votos de extrema direita no Parlamento Europeu, notadamente a favor de medidas discriminatórias anti-LGBT, para “recuperar a soberania legal na França sobre as políticas de migração”. Da mesma forma, durante as primárias para selecionar o candidato do LR em 2021, Barnier procurou sistematicamente se posicionar a direita, a favor da proibição do véu em espaços públicos, do aumento da idade de aposentadoria para 65 anos, da organização de um referendo para abolir a dsonibilização de serviços de saúde para migrantes sem documentos (AME, Ajuda Medical), etc.

Depois de uma campanha legislativa durante a qual a esquerda se fez presente na mídia, denunciando as raízes fascistas do RN e afirmando uma insistência unida no programa social do NFP, nas últimas semanas houve um ressurgimento das narrativas com o objetivo de desmoralizar a esquerda e devolver à extrema direita uma imagem respeitável. Macron, por exemplo, ignora os 9,5 milhões de votos obtidos pela esquerda nas eleições legislativas, mas nos lembra que devemos “respeitar os 10,6 milhões” obtidos pelo RN e seu aliado Ciotti. O objetivo é eminentemente político. Contra todas as probabilidades, o NFP conseguiu construir uma frente política unida em um programa de mudança, impulsionado e consolidado pelo movimento sindical, democrático e social, criando um impulso entusiasmado em torno da possibilidade de um governo de esquerda. Esse alento político e social, que não tinha se construído durante o movimento contra a reforma da previdência, foi criado repentinamente em questão de dias.

Portanto, é vital que os líderes reacionários e a mídia a seu serviço desconstruam essa unidade inesperada. Em primeiro lugar, dizendo que a esquerda não quer realmente governar, que não quer o poder e que seria até mesmo responsável por não ter obtido o cargo de primeiro-ministro. Depois, é claro, para desacreditar um programa de “desperdício e dívida”. Por fim, acima de tudo, dizer que o NFP é um conjunto efêmero e que as forças centrífugas logo assumirão o controle, principalmente entre os socialistas “razoáveis” e os “ultraesquerdistas islâmicos” do LFI. Acima de tudo, o objetivo agora é desmoralizar aqueles que passaram semanas construindo a campanha do NFP, aqueles que acreditaram nela na crença de que finalmente poderíamos construir algo unido na esquerda.

E é aí que reside o desafio para os próximos meses. Existe o risco de uma repetição da dinâmica centrífuga que causou a explosão do NUPES. Nas últimas semanas, houve o reaparecimento de uma fragmentação de iniciativas, embora com um objetivo comum. O primeiro dia de manifestações em 7 de setembro, em face do “golpe” de Macron com a nomeação de Barnier, e para o estabelecimento de um governo do NFP e a implementação de seu programa, foi impulsionado principalmente por movimentos políticos de esquerda, como o PCF, os Ecologistas, o LFI e o NPA (mas também, no lado do movimento social, pelo ATTAC, Planning familial, #NousToutes, o Jeune Garde e, muitas vezes localmente, o LDH). Mas, do lado dos sindicatos, embora a iniciativa tenha sido saudada como útil, ela foi vista como institucional e, portanto, de responsabilidade das organizações políticas, embora localmente os sindicatos CGT, Solidaires e FSU estivessem envolvidos. O resultado não foi de forma alguma desprezível – 150 manifestações e até mesmo a polícia teve que admitir mais de 100.000 manifestantes (300.000 de acordo com os cálculos dos organizadores) – mas obviamente teria sido possível tomar uma iniciativa conjunta envolvendo todas as forças que haviam apoiado o NFP em junho. Ao mesmo tempo, os preparativos estão em andamento para um grande dia de greves e mobilizações envolvendo a CGT, Solidaires, FSU e organizações de jovens marcada para o dia primeiro de outubro, mais uma vez “para que as urgências sociais expressas nas mobilizações sociais e nas ruas sejam finalmente ouvidas”, retomando as demandas sociais compartilhadas com os partidos do NFP. Por fim, no dia 21 de setembro, nos mesmos moldes do dia 7 de setembro, um novo dia de mobilização está sendo organizado em torno das organizações de jovens, juntamente com o Greenpeace, Le Collectif national pour les droits des femmes e Action justice climat.

Além disso, a ala direita do Partido Socialista já está adotando posições que visam fragmentar a frente unida, inclinando-se para a direita, como a de François Hollande, embora ele tenha sido eleito como parte do NFP.

Essa Assembleia Nacional e seu governo são obviamente elementos instáveis e, a partir de junho de 2025, ou o RN, por sua participação na votação de uma moção de censura, ou Macron, poderiam levar a uma crise governamental e a uma nova dissolução da Assembleia.

Em todos os casos, a urgência é construir uma relação de forças político e social para iniciar uma mobilização de longo prazo em torno das demandas sociais levadas pelo NFP, pelo movimento social e pelos sindicatos, independentemente dos prazos eleitorais. A convergência alcançada no início do verão deve ser mantida e atuar coletivamente por meio da criação de estruturas unitárias que permitam a coordenação das forças militantes. É somente com a construção dessa unidade que poderemos impedir forças centrífugas, venham elas de onde vierem, e evitar a desmoralização.

O NFP é singular na arena política europeia por ser uma aliança construída com base em um programa que visa explicitamente romper com o sistema iliberal, e tem conseguido reunir uma ampla gama de forças políticas, sindicais e sociais, marginalizando as correntes sociais-liberais. Portanto, trata-se de uma iniciativa valiosa.

Se conseguir se manter e se enraizar em todo o país, tornando-se uma ferramenta diária para as dezenas de milhares de militantes nos bairros, áreas urbanas e rurais, desenvolvendo as exigencias de seu programa, desenvolvendo os temas de justiça social, climática e democrática e a luta contra a discriminação, ela poderá reverter o peso político conquistado pelo RN, que usa o racismo e a islamofobia para desviar o sentimento de rebaixamento, abandono e injustiça social contra as classes trabalhadoras racializadas. Essa falsa consciência obviamente tem como objetivo desviar a atenção do questionamento das políticas de classe que estão na raiz dos ataques sofridos pelos explorados e oprimidos.

De qualquer forma, as greves e manifestações de 1º de outubro podem ser uma base para restaurar o ímpeto da esquerda diante das manobras de Macron.


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Pedro Micussi