A luta da educação na Argentina
Impressoes iniciais, desde Buenos Aires, de militantes do MES/PSOL que acompanham o processo de resistência estudantil no país
Via Juntos!
A Argentina tem vivido um intenso processo de crises, que se encontram nos marcos das múltiplas crises que vivemos no capitalismo. Entender o que ocorre no país, não só nos importa como brasileiros, mas também para ver as expressões do período, suas contradições e possibilidades, que refletem a dinâmica internacional.
Tal como o Brasil, a Argentina tem um peso político importante na América Latina. Um país que superou uma ditadura com uma forte memória democrática, tem um sistema de ensino superior com acesso sem vestibular e que já derrubou 5 presidentes em 11 dias, abrindo o chamado ciclo progressista no continente.
Agora, se encontra novamente em um período de ebulição social. Uma crise que já vinha amargando no governo Fernández (2019-2023), entrou em uma nova etapa com a eleição de Javier Milei.
Um breve contexto
A Argentina está localizada dentro da teia dialética que rege a política no mundo. O país atravessa uma crise econômica que possui raízes profundas, e que moldam estruturalmente o modus operandi da elite local, que junto com os militares, é uma das principais roteiristas desse filme de terror. A crise e as mudanças abruptas no cenário político, como foi o caso da rebelião de 2001, moldaram o caráter volátil da conjuntura argentina. Com o progressismo e a ausência de medidas estruturais que forjassem um novo modelo de país somado a péssima gestão de Mauricio Macri, responsável direto pelo ultra endividamento, a extrema-direita se mostrou como uma alternativa, surfando na crise de legitimidade da democracia burguesa e na falência do modelo de bem-estar social capitalista.
Milei assumiu o governo em 10 de dezembro de 2023, em um fenômeno parecido com a eleição de Bolsonaro, Trump e outros nomes da extrema-direita no mundo, como um suposto outsider que busca realizar uma mudança profunda no país.
O voto em Milei foi um voto de indignação, de rejeição aos últimos governos da direita tradicional e do peronismo, campo político amplo e com grande peso social no país, com elementos que variam entre uma esquerda moderada a uma direita nacionalista.
Desde dezembro, os argentinos já ocupavam as ruas, inclusive realizando um ato que tomou a Praça do Congresso em uma madrugada 10 dias depois que o presidente neofascista tomou posse. Essa foi a primeira resposta do movimento de oposição ao presidente, logo após os primeiros ataques do governo – a aprovação do Decreto Nacional de Urgência, marcados por um ajuste fiscal pressionado pelo FMI (razão pela qual o país acumula uma grande dívida externa), que se expressa principalmente na desvalorização do dólar oficial, o que na prática significa que os preços triplicaram.
Em 24 de janeiro, o ano se iniciou como uma greve geral que chegou a colocar um milhão de pessoas em mobilização ao redor do país. A greve foi seguida de assembleias de bairros que se constituíram para armar um plano de lutas contra Milei e seu ajuste, que num primeiro momento conseguiu reunir uma boa quantidade de pessoas mas, infelizmente, não se mantiveram no auge por muito tempo. Novamente, no dia 24 de março, data que rememora os mais de 30 mil mortos e desaparecidos durante a ditadura, milhares de pessoas tomaram as ruas para dizer ‘’NUNCA MÁS ” e demarcar a política no terreno dos direitos humanos. No dia 23 de abril, com a primeira Marcha Federal Universitária, as ruas foram tomadas por milhões, registrando as maiores manifestações dos últimos anos.
O movimento estudantil em ação
Com uma inflação acumulada em mais de 240%, o orçamento público para os gastos com a educação, incluindo os salários dos trabalhadores, diminuiu drasticamente. O ano já começou com mobilizações dentro das universidades, onde foram realizados uma série de debates, aulas públicas e atos simbólicos em defesa da universidade pública, gratuita e de qualidade. Assim, a educação se mobilizou para que houvesse uma recomposição do orçamento, que originou a primeira marcha de abril.
A primeira marcha foi um sucesso absoluto, mas o caldo político desse primeiro processo foi pouco aproveitado – visto o potencial que havia – porque as burocracias sindicais ligadas ao radicalismo e, em menor medida, ao peronismo negociaram um pequeno aumento, que resolveu parcialmente questões estruturais das universidades, como luz e água, mas o problema central relacionado aos salário de professores e técnicos e às bolsas de estudo persistiu.
O Congresso Nacional tentou votar um projeto de lei que aumentasse de maneira emergencial o orçamento universitário. Mas, o presidente não aprovou.
Após o anúncio do veto de Milei à proposta de recompor o orçamento, que havia sido aprovada pelo Congresso, foi convocada uma nova Marcha Federal Universitária para barrar essa medida. Novamente, milhões de pessoas tomaram as ruas ao redor do país e demonstraram uma capacidade de construir uma luta de maioria social em defesa da educação pública argentina.
Ainda assim, Milei sustentou o veto e o movimento respondeu: se há veto, há ocupações.
Si hay veto, hay tomas
As ocupações, conhecidas como “tomas”, são um método de lutas conhecido pelos argentinos, tendo ocorrido pela última vez em 2018 nas universidades. O processo trouxe uma nova etapa à luta da educação, não só demonstrando a força desta bandeira, como também trazendo uma nova geração de ativistas para o movimento.
No Brasil, vivemos um momento similar no primeiro semestre, com a greve das federais, que se encontram em uma situação de crise que se prolonga por 10 anos e ensinou uma nova leva de estudantes e trabalhadores a lutar e como se organizar politicamente.
As tomas chegaram a superar mais de 100 faculdades e colégios ao redor do país, com uma dinâmica que não estamos acostumados a viver no Brasil. Para além dos estudantes dormirem nas instituições, as aulas das disciplinas que normalmente ocorrem nas salas, tomaram as ruas e praças dos arredores das faculdades. Uma movimentação que se dá em combinação com o movimento sindical, que tem convocado dias de paralisação em meio às ocupações.
Na Faculdade de Filosofia e Letras da UBA (Universidade de Buenos Aires), um dos centros da vanguarda do movimento, as classes públicas chegaram a ocupar 3 quadras da Calle Puan, rua onde se encontra o prédio da UBA.
Em La Plata, houve uma manifestação que talvez tenha sido a maior de sua história, reunindo cerca de 35 mil pessoas, em uma cidade que tem cerca de 200 mil habitantes.
Uma impressão inicial
As tomas não necessariamente devem se manter nesta quantidade, já havendo a sua suspensão em algumas faculdades. Mas esta não é a questão central. Elas demonstraram uma capacidade organizativa do movimento estudantil, que vinha sendo considerado adormecido nos últimos anos. Há um processo semelhante à dinâmica brasileira, com perdas de vínculos da organização estudantil por conta da pandemia. Assim, disseram que o “gigante acordou”.
O movimento conseguiu ser uma bandeira de maioria social, indo além dos próprios estudantes e trabalhadores da educação. O ensino superior argentino tem peso social relevante, em parte pelo seu livre acesso e gratuidade que aumentam a quantidade pessoas com nível superior no país.
A luta da educação, contudo, não é apenas sobre a defesa de seu orçamento. É mais uma expressão das inúmeras mobilizações que ocorrem desde a eleição de Milei, não necessariamente conectadas e com um sentido em comum no aspecto mais imediato, mas que podem gerar um acúmulo de forças para as batalhas futuras. Inclusive, na própria educação, que terá em breve uma definição sobre seu orçamento para 2025.
Ainda que haja algumas dificuldades de construção de uma luta unitária, seja pela dificuldade de uma nova geração que se testa, seja pelo peso da burocracia sindical e estudantil em tentar travar o processo, há um caminho que se desenha: a luta social como o principal método para enfrentar a extrema-direita.
A aposta na luta de classes, especialmente na Argentina, que tem uma forte tradição de organização sindical e estudantil, pode trazer mudanças qualitativas em pouco tempo. Isto não quer dizer que é o que ocorrerá agora, mas que há espaço para desenvolver uma luta contra a extrema-direita, através da defesa de políticas para superar a crise, que coloca o povo sob sofrimento, apenas para garantir uma extração neocolonial de capitais por parte de agentes como o FMI.
Há desafios. O peronismo e o radicalismo tem seu peso no movimento, ainda que não consigam colocar uma trava real às lutas, dificultam o seu desenvolvimento. A esquerda, que no país é entendida como a esquerda radical, especialmente em referência às organizações trotskistas – em parte pela herança do MAS de Moreno, pode cumprir um papel importante na construção de uma alternativa.
Nas últimas eleições, mesmo com a eleição de Milei, conquistaram uma nova cadeira no Parlamento Nacional. Há espaço para uma alternativa, mas que precisa ser combinada com a construção de um polo em conjunto com uma vanguarda que começa a se desenvolver, para aglutinar forças e ter condições de produzir sínteses em defesa de um programa para superar a crise sustentado nas mobilizações sociais.
João Pedro de Paula
Vitor Cesário.