Não existe antirracismo sem anticapitalismo
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Não existe antirracismo sem anticapitalismo

Perspectivas e atuais desafios do Movimento Negro no Governo Lula

Imagem: UNINASSAU/Reprodução

Nas últimas semanas, o Movimento Negro brasileiro foi surpreendido por notícias alarmantes que atravessam a realidade de muitas pessoas negras no país: a desumanização do relato de mulheres negras vítimas de violência e assédio sexual, e a estrutura que perpetua a estigmatização de que homens negros são “naturalmente” violentos. Esses acontecimentos, influenciados pela conjuntura política e pela divisão dentro do Movimento Negro sobre apoiar Anielle Franco e todas as vítimas ou defender incondicionalmente Silvio Almeida, revelam que, mesmo após a negritude brasileira ter sido fundamental para a derrota de Bolsonaro nas urnas e para a eleição do presidente Lula, com ministérios liderados por figuras importantes da negritude, ainda persistem desigualdades e violências que afetam diretamente a vida de boa parte das pessoas negras, apontando para um futuro de muita luta e desafios pela frente.

Desde sua eleição em 2022, com a promessa de “esperança e reconstrução” do Brasil, e ao criar e impulsionar os ministérios da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, o governo Lula fez diversas promessas à população negra. No entanto, em Abril de 2023, houve uma sinalização contrária a esse compromisso: o governo editou um decreto que regulamenta o Programa de Parcerias e Investimentos (PPI) e incluiu o sistema prisional entre as beneficiárias. Isso significa que são ignoradas as necessidades urgentes de reformas baseadas em direitos humanos e justiça social, além de reforçar dinâmicas pré-existentes de exclusão e opressão contra os corpos negros, que representam 66,7% da população carcerária no Brasil; a cada três pessoas presas, duas são negras, segundo o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Essa política reforça uma lógica escravista de que corpos, em sua maioria racializados, são mercadorias no sistema capitalista. Além disso, o sistema prisional, que reflete o racismo estrutural no Brasil, torna-se ainda mais lucrativo em um modelo privatizado, incentivando o encarceramento em massa de jovens negros. Diante disso, o Movimento Negro enfrenta o desafio de pressionar o governo para que as promessas de campanha sejam cumpridas de forma concreta, e não apenas de maneira simbólica.

Em 17 de Agosto, alguns meses depois do decreto que regulameta o PPI no sistema prisional, ocorre o assassinato da líder quilombola Mãe Bernadete, assassinada a tiros no quilombo Pitanga dos Palmares, na Região Metropolitana de Salvador. Seis anos antes, após a morte de Binho (seu filho), assassinado na luta em defesa dos povos de sua comunidade e seu território, Mãe Bernadete passou a militar publicamente para tentar descobrir quem o matou, buscando justiça e proteção do Estado, governado por Jerônimo Rodrigues, do Partido dos Trabalhadores. Infelizmente, mesmo fazendo parte do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do Governo Federal e tendo escolta armada, a sede do quilombo era monitorada por câmeras de segurança que sequer funcionavam com qualidade. Ou seja, enquanto lutava arduamente em defesa dos territórios quilombolas, por justiça pelo assassinato de seu filho e pela sua vida, Mãe Bernadete tinha sua segurança e, portanto, sua vida, negligenciada pelo Estado. Sendo que historicamente, a luta por terra no Brasil está intrinsecamente ligada às questões raciais, uma vez que a exclusão de terras sempre afetou de forma mais dura as populações negras, descendentes de escravizados. De acordo com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), o qual ela fazia parte, nos últimos 10 anos, pelo menos 30 lideranças quilombolas foram executadas dentro de seus territórios.

Logo, o caso gerou grande revolta no Movimento Negro de forma nacional, tornando urgente a implementação de uma política de maior segurança para as lideranças negras e quilombolas que buscam o PPDDH do governo federal ou estadual. Também se faz necessário que haja maior rigor na justiça brasileira em relação a quem cometer crimes contra defensores dos direitos humanos, junto a regulamentação e tombamento dos territórios ocupados pelos povos tradicionais e quilombolas, compreendendo que os quilombos são espaços de resistência do povo negro, atravessado pela ancestralidade das nossas lutas no ontem e no amanhã. Essa luta é fundamental para enfrentar tanto o racismo estrutural quanto as desigualdades econômicas que permeiam o campo.

Em meio ao fortes acontecimentos, no mesmo período, se dava uma grande mobilização pública de diversos movimentos negros ao lançarem a campanha pela primeira Ministra Negra no STF, evidenciando que em 133 anos de existência, nenhuma mulher negra ocupou o cargo de ministra na corte e, de 172 ministros que passaram pelo STF, apenas três eram mulheres e três negros. Evidenciando o pacto da branquitude e dos homens em manter tais espaços bem longe daquelas que de fato representam os interesses da maioria da população brasileira em identidade e projetos políticos, tendo em vista que as mulheres negras representam o maior grupo populacional do país, sendo 28% da população geral, segundo o Portal da Fiocruz. Já no dia 25 de setembro de 2023, ao ser questionado pela imprensa sobre a escolha para a corte, Lula afirmou que gênero e cor não seriam critérios: “Eu vou escolher uma pessoa que possa atender os interesses e as expectativas do Brasil, uma pessoa que possa servir o Brasil, uma pessoa que tenha respeito com a sociedade brasileira. Já tem várias pessoas na mira. Não precisa perguntar essa questão de gênero e de cor, eu já passei por tudo isso e no momento certo vocês vão saber quem é que eu vou indicar”. Alguns integrantes do Governo Federal também classificaram essa mobilização como “pressões identitárias”, quando na verdade estamos falando da possibilidade de que mulheres negras possam ocupar cargos importantes na política brasileira, fazendo com que consigamos avançar na garantia e ampliação dos direitos inegociáveis da população negra, como a Legalização da Maconha que estrutura uma parte importante da guerra às drogas que há décadas vem encarcerando em massa a juventude negra.

Algo simbólico que aponta a diferenciação do projeto de sociedade que defendemos, enquanto povo negro, em relação ao que os homens brancos e ricos defendem, é que, quando indicado como ministro do Supremo Tribunal Federal pelo presidente Lula, Cristiano Zanin foi o único a votar contra a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal até então, no julgamento de agosto de 2023. Essa posição vai de encontro a medidas que favorecem a guerra às drogas e o genocídio da população negra. Inclusive, muitos dos discursos favoráveis à descriminalização da maconha para uso pessoal no julgamento traziam dados que afetavam diretamente a juventude negra, como os do encarceramento em massa e da “guerra perdida” contra as drogas. Já em 25 de junho de 2024, houve o julgamento no qual o STF descriminalizou o porte de maconha para consumo pessoal. Ou seja, a decisão da Corte significa que o uso da substância deixou de ser crime, ilícito penal, e passou a configurar um ilícito administrativo. Entretanto, a quantidade de 40 gramas ou seis plantas fêmeas estabelecida como critério para distinguir usuário de traficante é relativa. A polícia está autorizada a apreender a droga e conduzir a pessoa à delegacia, mesmo que a quantidade seja inferior a esse limite, caso existam outros elementos que indiquem um “possível” tráfico de drogas.

Infelizmente, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, uma realidade oposta estava se desenvolvendo: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45, que pretende alterar o artigo 5º da Constituição Federal para criminalizar a posse e o porte de qualquer substância ilícita, independentemente da quantidade. Uma das principais objeções à PEC 45 é a falta de critérios claros para diferenciar usuários de traficantes, o que pode afetar desproporcionalmente indivíduos negros e de comunidades periféricas. Considerando o tratamento desigual que o sistema de justiça aplica a pessoas negras em comparação às brancas durante abordagens policiais e apreensões de drogas. A PEC das Drogas ainda segue em tramitação no Congresso Nacional. Isso nos mostra que debater as condições de existência do povo negro no Brasil não apenas muda a realidade da negritude, mas também de toda uma sociedade erguida sobre desigualdades sociais. Não colocar nossas vidas na mesa de negociações é abrir espaço para mais avanços da classe trabalhadora e negra do nosso país e nossa auto-organização é fundamental para isso.

Além do povo negro ter que lutar constantemente para ter um lugar no poder administrativo do país, também se tem que lutar por um lugar na sociedade. Neste ano, de 2024, nos deparamos com o pior índice de queimadas desde 2010. Deixando ainda mais evidente pra quem não compreendia o racismo ambiental e como ele afeta a comunidade negra em curto, médio e longo prazo.

O Brasil já contabilizou mais de 200 mil focos de incêndio no ano de 2024. Em sua maioria, causados por atividades humanas, e em grande parte pelos grandes agricultores e pecuaristas que tem como intuito limpar terras para seu próprio usufruto. Isso afeta não apenas a população negra, como diretamente as comunidades que dependem das florestas para sua subsistência. Foram mais de 5,65 milhões de hectares queimados, 531 municípios em estado de emergência, mais de 10 milhões de pessoas afetadas. Levando famílias ao deslocamento forçado de suas comunidades, abandonando suas casas, famílias negras em sua maioria sendo afetadas por negligência. A comunidade fica vulnerável e frágil e sem o acesso à saúde adequada se agrava mais a situação.

Todos os anos passamos por mudanças climáticas mais agravantes do que os anos anteriores e mesmo assim muitas vezes são ignoradas as vozes pretas e indígenas em discussões sobre políticas ambientais, resultando em decisões que não consideram suas necessidades e direitos. Combater as queimadas e o racismo ambiental exige uma abordagem que leve em consideração os direitos das comunidades afetadas, promovendo práticas sustentáveis e respeitando a sabedoria do povo e construir o ecossocialismo é fundamental para contestar a lógica daqueles que enxergam nas queimadas a maximização do lucro e não a destruição do meio-ambiente e da vida no planeta. O acesso a uma educação de qualidade e transformadora, assim como a serviços de água potável e saneamento básico, é essencial para garantir uma vida digna. Não podemos permitir que a lógica neoliberal, que privatiza serviços fundamentais, aprofunde as desigualdades já existentes e destrua a Terra.

Todas as movimentações descritas no texto evidenciam a magnitude dos desafios atuais enfrentados pelo movimento negro: manter sua radicalidade e independência em relação a qualquer governo para avançar em nossas demandas históricas, como a legalização da maconha, além de promover a auto-organização da negritude em todos os espaços. Isso nos permitirá construir um calendário de lutas, no qual nossa divisão não se restrinja a apoiar ou não Anielle Franco – uma questão que deveria ser incontestável, pois nossa prioridade deve ser o apoio às vítimas até que as investigações sejam concluídas – mas sim avançar nos direitos e acessos da população negra. É fundamental tratar essas denúncias como problemas sociais coletivos, e não individuais, buscando combatê-los em sua raiz. Essas movimentações, que não relativizam problemas coletivos, nos possibilitam avançar em um projeto de sociedade mais à esquerda, como, por exemplo, a luta pela implementação do uso obrigatório de câmeras corporais pelas polícias Civil e Militar em todo o país, bem como a revogação do decreto que abre margem para uma nova Barbacena nos presídios brasileiros. Essas devem ser prioridades no movimento negro. É urgente!

Ainda é pouco e queremos mais! E para isso, é fundamental a revogação imediata do Arcabouço Fiscal que segue estrangulando a verba federal para maior investimento nos ministérios de Igualdade Racial e dos Direitos Humanos e nos serviços públicos do país que, em sua maioria, são acessados pela população negra. Não queremos reconstruir um país estruturado nas mazelas da exploração do povo preto e indígena, e em especial de nossas mulheres racializadas, mas queremos construir algo novo e, para isso, se orientar num projeto político antirracista, anticapitalista e antipatriarcal é fundamental. Assim como entre os Panteras Negras, essa máxima precisa ser estruturante entre nós: Nós queremos liberdade. Queremos poder para determinar o destino de nossa comunidade negra!


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