Preparar as lutas e construir uma esquerda radical em São Paulo
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Preparar as lutas e construir uma esquerda radical em São Paulo

Um balanço das eleições municipais de 2024 na capital paulista

Secretariado Estadual do MES-SP 29 out 2024, 18:36

Foto: Reprodução

Este balanço inicial das eleições de 2024 em São Paulo é escrito à luz de uma derrota dura que influenciará os rumos da luta nos próximos anos. Uma avaliação franca e aberta é fundamental para entender os acontecimentos, as escolhas feitas pelos diversos atores envolvidos no processo eleitoral e suas consequências. Nossa tarefa é construir uma esquerda renovada e radical, conectada aos anseios da classe trabalhadora e construir uma agenda política de esquerda e de maioria social. Para isso, precisamos de análises profundas que nos preparem melhor.

A reeleição de Ricardo Nunes (MDB), um prefeito de perfil político frágil e pouco conhecido pela população, representa um avanço da força política da direita tradicional, aliada a setores do bolsonarismo, como buscou fazer na indicação da vice, um ex-coronel da Rota.

Esse cenário oferece um novo fôlego aos setores da direita, permitindo que avancem na construção e reorganização de seu projeto político, disputando o capital da direita, quando as eleições resultaram num maior questionamento à hegemonia de Bolsonaro, já complicado por sua inelegibilidade. Os resultados vitoriosos do centrão colocam a burguesia em condições de escolhas mais amplas, seja para chantagear ainda mais o governo federal, seja para projetar novas lideranças à direita.

Nunes e Pablo Marçal representaram diferentes espectros da direita conservadora. O primeiro, detentor da máquina da prefeitura, utilizou o capital político do governador Tarcísio de Freitas e, numa simbiose favorável a ambos, consolidou alianças com setores privatistas, exemplificadas pela venda da SABESP, uma das maiores empresas de saneamento do mundo. Esse movimento também projetou Tarcísio na liderança do campo à direita, fomentando inclusive pretensões para 2026. Nunes afirmou ao final que “São Paulo venceu os dois extremismos”. Marçal, por sua vez, buscou dialogar com um perfil antissistema, apresentando-se como um outsider. Com retórica radical e conteúdo privatista, individualista e meritocrático, Marçal ganhou projeção na extrema direita e também entre setores mais precarizados da classe trabalhadora, que, apesar dos crimes atribuídos a ele, veem em Marçal um modelo de ascensão social e compartilham seu propalado descontentamento com o sistema político e suas representações. Ambos, abertamente neoliberais e fundamentalistas, representam a disputa dentro da direita que buscará herdar o capital político em disputa.

A força das máquinas municipais, os fundos eleitorais milionários e as emendas parlamentares provenientes do orçamento secreto ampliaram as distorções eleitorais, influenciando a permanência de grupos políticos já no poder em diversas cidades. Em São Paulo, no entanto, isso não foi o único fator; a disputa interna na direita excluiu Marçal do segundo turno por poucos votos.

Por outro lado, a campanha de Guilherme Boulos repetiu o desempenho de quatro anos atrás, quando o PSOL lançou uma candidatura independente, com menos alianças, recursos e tempo de TV. Em 2024, o arco de alianças e o financiamento se ampliaram, com um fundo eleitoral de mais de R$80 milhões caracterizando a campanha mais cara do país e uma coligação que incluiu não apenas a centro-esquerda, mas até o exótico PMB, sigla de aluguel que, em Curitiba, abrigou uma candidata fascista apoiada por Marçal e Bolsonaro. Apenas o marqueteiro da campanha, Lula Guimarães, antigo marqueteiro do Ifood, foi remunerado em 7 milhões.

Pouco restou das características da campanha exitosa de 2020 além do próprio candidato. Com a estratégia de disputar o centro em um momento de polarização, e de mostrar-se viável para a “gestão” da cidade, a campanha abandonou pautas fundamentais para a esquerda e, embora tenha envolvido setores do ativismo, não conseguiu engajar um movimento social robusto e necessário para brigar contra a máquina de Nunes. Em vários momentos, por isso, surgiram questionamentos difusos à campanha, gerando desconforto à sua direção e algumas poucas mudanças de rota, mais na forma do que no conteúdo, conforme se notou no perfil mais militante durante a semana final. Contudo, já era tarde, pois as opções políticas e programáticas estavam consolidadas.

A militância do Movimento Esquerda Socialista esteve engajada do primeiro ao último dia em busca da vitória eleitoral. No primeiro turno, expressamos em torno da vereadora Luana Alves, reeleita com 83 mil votos, um perfil político e um conteúdo programático que avaliamos ser necessário para as disputas do presente. No segundo turno, redobramos os esforços nas ruas e nas redes para derrotar Nunes e eleger Boulos, inclusive com nossas parlamentares-militantes, Sâmia Bomfim, Monica Seixas e outras da região metropolitana, indo às ruas para virar votos. Não temos dúvida do quão urgente seria, para a classe trabalhadora paulistana, demitir um prefeito conservador, privatista e corrupto. A eleição de Boulos, por contraditória que pudesse ser, colocaria os movimentos sociais e os pobres em uma incomparável melhor condição para desenvolver suas lutas e obter conquistas.

É sob esse prisma que se faz necessário um balanço crítico. Não é a primeira vez que uma candidatura potencialmente radical e à esquerda faz uma opção de adaptação ao regime e de moderação do discurso. Em alguns contextos, isso possibilitou vitórias. No momento atual, nitidamente não produziu resultado. Independentemente disso, consideramos a opção um equívoco em si mesmo, tendo em vista que a batalha dos socialistas em uma eleição não deve ser apenas por chegar à direção da máquina estatal, mas sim por interferir na relação de forças e preparar os embates inadiáveis da classe trabalhadora. O balanço de uma campanha deve ser medido, também, pelo legado organizativo que deixa (ou não) na classe trabalhadora e nos movimentos.

A campanha de Boulos deveria ter expressado um outro programa para a cidade. Ao invés de propostas moderadas e pró-mercado, embaladas em slogans vazios, seria o caso de falar as coisas como elas são: apontar os problemas estruturais na saúde ligados à privatização via as OSs, a urgência da reestatização da ENEL, o horizonte necessário da tarifa zero universal, a valorização e o combate às terceirizações na educação pública, a alteração estrutural da política de moradia, a denúncia do genocídio da juventude negra e defesa da desmilitarização da polícia militar, participação popular, distribuição de renda, cultura e outros. Sem radicalidade, a campanha pouco pautou o discurso da eleição e sequer obteve os votos adicionais que imaginou obter indo ao centro. Parte substancial do problema decorreu da ligação entre o candidato e o governo federal, que trouxe limitações claras de discurso no tema do apagão elétrico, por exemplo. Já sobre as ditas “pautas identitárias”, ao contrário do que certa crítica reacionária tem sugerido, o erro da campanha não foi o de expressá-las em excesso, mas sim de defender pouco o que realmente defendemos: só ao final da campanha Boulos falou, pontualmente, sobre a reabertura do serviço de aborto legal no Hospital Cachoeirinha. Os direitos LGBTQIA+ pouco foram abordados. Quanto à política de drogas e de segurança pública, o candidato expressou posições que não são as do PSOL. Temas mais nacionais, como o fim da escala 6×1, responsável por impulsionar a eleição de Rick Azevedo no Rio de Janeiro, também estiveram ausentes.

Consideramos, ainda, que a campanha falhou em organizar as lutas e construir, em torno dela própria, uma mobilização social para além dos aparatos, conforme foi possível notar nas próprias marchas, com poucas presenças auto-organizadas de movimentos para além dos contingentes de campanha. Isso fará falta especialmente agora, diante da vitória de Nunes. As denúncias sobre os esquemas de corrupção e sobre os riscos de infiltração das milícias em São Paulo foram um acerto contundente. Mas faltou apontar as tarefas para além de vencer as eleições, afinal, até mesmo se houvesse vitória, as tarefas e a urgência de mobilização seriam as mesmas.

Nisso, um erro constrangedor foi cometido ao realizar a famigerada live com Marçal, pois é preciso ser honesto com a definição de que ele representa a face mais podre dentro da já abjeta extrema direita. Dialogar com parte de sua base eleitoral não é o mesmo que dialogar com um criminoso, contribuindo para sua naturalização. Tal diálogo deveria ser feito em prol dos interesses concretos das camadas da população iludidas por Marçal, como o aumento de remuneração dos trabalhadores de aplicativos através de regras mais duras com estas empresas. A incorporação vazia da lógica do “empreendedorismo” rebaixou nosso programa e soou falsa aos ouvidos destes setores.

Passadas as eleições, é necessário estabelecer um balanço sobre estratégia política. Este deve ocorrer de forma fraterna, mas concreta e política. Se tivemos unidade para enfrentar um inimigo maior, concluída a batalha, é lícito expressar as diferenças. E discordamos frontalmente daqueles que endereçam os problemas a entes abstratos, como o “povo conservador” ou “a esquerda”.

Ao contrário, uma campanha é feita de escolhas e nossa visão é que a trilha da normalização do PSOL dentro do regime político brasileiro não é o que o momento histórico nos demanda. Uma campanha forte e viável do PSOL deveria inevitavelmente incomodar o regime político, e não dele se aproximar. Deveria disputar para valer em busca de vencer, mas sem abaixar suas bandeiras. Isso é o que analisamos diante de um quadro mundial e nacional complexo, com a presença permanente da extrema direita, a crise crônica do capitalismo e uma desesperança quanto ao futuro entre as massas.

Os próximos quatro anos na maior cidade do país vão demandar lutas renhidas contra os donos do capital e seus representantes na política, a começar pelo enfrentamento contra as privatizações de Tarcísio e os ataques previsíveis de Nunes. A mobilização dos movimentos sociais e do povo será ainda mais necessária, assim como o papel do PSOL para organizá-la. O futuro político de qualquer movimento ou liderança — entre eles, Boulos, com sua força expressa em mais de 2 milhões e 300 mil votos — dependerá do compromisso com essa agenda, e não dos próximos cálculos eleitorais.

Essa agenda de luta, por sua vez, demanda desde já independência política e radicalidade, frente a qualquer governo ou setor econômico. Apenas assim é possível construir unidade para enfrentar a extrema direita e também a agenda econômica antipovo prevista por Haddad e Tebet para os próximos meses. Só assim a esquerda radical pode adquirir influência de massas para seus objetivos principais: esmagar o fascismo, combater o regime político apodrecido e transformar radicalmente a sociedade.

Seguiremos tendo esses compromissos, a partir da intervenção nas lutas e da defesa de um perfil independente e anticapitalista para o PSOL.


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Pedro Micussi