A esquerda pode voltar a vencer?
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A esquerda pode voltar a vencer?

É necessário superar a estratégia PTista para que possamos colher novas vitórias

Bruno Mahiques 4 nov 2024, 14:08

Foto: Reprodução

O resultado das últimas eleições abriu um grande debate no seio da esquerda a respeito dos motivos que levaram o dito “campo progressista” (desde os setores que estão no governo federal até a extrema esquerda) a perder a grande maioria das eleições nas cidades grandes e médias brasileiras. Em termos absolutos, numa eleição em que os partidos do Centrão saíram como os grandes vitoriosos, dos partidos considerados de esquerda pela sua origem ou pelas bandeiras que defendem, o PT elegeu 252 prefeitos, o PCdoB elegeu 19, o PV elegeu 14 e a Rede elegeu 4. O PSOL não elegeu nenhuma prefeitura. Entre as capitais, o PT só elegeu em Fortaleza, com uma diferença mínima de pouco mais de 10 mil votos para o candidato bolsonarista. Em São Paulo, onde havia grande expectativa da derrota do fraco e até então desconhecido Ricardo Nunes, Boulos terminou com pouco mais de 40% dos votos válidos no segundo turno, repetindo o desempenho que havia feito em 2020.

Mais que isso, podemos dizer que a esquerda também não pautou politicamente as eleições com seu programa clássico, baseado na defesa dos direitos trabalhistas, dos serviços públicos, da ampliação dos direitos democráticos, do combate à extrema direita, e da necessidade de lutar contra a emergência climática. O que vimos na maioria dos lugares foi uma tentativa de abrir mão de pautas importantes para supostamente buscar diminuir a rejeição e atingir novas faixas do eleitorado. No fim das contas, saímos sem a vitória eleitoral, e com derrotas políticas, normalizando uma linha “gerencialista” dos problemas oriundos da crise do capitalismo enquanto o limite do que a esquerda seria capaz de propor. Quero aqui me deter mais especialmente aos elementos que estiveram presentes na campanha de Guilherme Boulos em São Paulo, mas que contêm certo lastro geral para o desempenho da esquerda ampla nessas últimas eleições.

Dentre as principais justificativas para o fracasso eleitoral e político, há setores que apontam – corretamente – elementos objetivos da realidade, como: a maior fragmentação da classe trabalhadora, o avanço da extrema direita pelo mundo, o acúmulo de derrotas provocado por décadas de governos neoliberais, e a emergência da ideologia do individualismo combinada com a lógica de bolhas das redes sociais. Todas essas questões são fundamentais, e sem elas não se explica o resultado das eleições, mas tampouco elas esgotam as razões que nos levaram ao resultado atual. Afinal de contas, não há grandes indícios de que estes fatores venham a diminuir, e assumi-los como única razão para a nossa derrota nos apontaria para um futuro de sucessivas derrotas para os trabalhadores, sem possibilidades de reviravoltas.

Entre quem busca questionar a estratégia eleitoral adotada pelos setores de esquerda, há quem venha proferindo um argumento conservador de que a esquerda perdeu, particularmente em São Paulo, porque teria assumido um discurso muito voltado às “identidades”, perdendo capacidade de falar com o povo e as periferias. O argumento cai por terra tanto porque as pautas ditas “identitárias” afetam de longe o povo mais pobre (vide quem mais sofre, por exemplo, com a violência policial), quanto porque a campanha de Boulos pouco falou sobre temas fundamentais das agendas antirracista, feminista, e da defesa da população LGBT+. Houve outro setor, capitaneado pelo próprio Boulos, que alegou ter “recuperado a dignidade da esquerda” nessas eleições, num discurso no mínimo enganoso de quem abriu mão de princípios da esquerda e não quer se responsabilizar pela derrota política e ideológica associada à derrota eleitoral.

Quero aqui elaborar uma terceira hipótese para o fracasso eleitoral da esquerda em 2024: a de que a estratégia PTista, dominante na esquerda atualmente, é, além de extremamente rebaixada do ponto de vista programático, socialmente minoritária no Brasil, e não apresenta sinais de crescimento para os próximos anos. Ou seja, de que uma linha política pautada no “gerencialismo” da crise capitalista sem questionar o regime político brasileiro e os privilégios dos grandes capitalistas tem poucas capacidades de trazer novas vitórias políticas e eleitorais.

As frentes de esquerda e o caso da eleição paulistana

Aqui vale fazer uma ressalva de fundamental importância a respeito de quais devem ser nossos objetivos com as eleições, especialmente eleições majoritárias. Somente em condições excepcionais, de intensa mobilização popular e ascenso de massas, é possível à esquerda radical ou socialista chegar ao poder por meio das eleições, ainda mais com a regra eleitoral da existência de segundo turno para cidades com mais de 200 mil eleitores (o que não estava em vigor, por exemplo, quando Luiza Erundina foi eleita prefeita de São Paulo em 1988). Nosso centro nas eleições está ligado a defender um programa de enfrentamento ao grande poder econômico e ao regime político, buscando com isso avançar o debate ideológico e empurrar a relação de forças para uma condição mais favorável à classe trabalhadora.

O cenário atual, com peso grande da extrema direita desde a eleição de Bolsonaro, complexifica a nossa tática, levando em muitos lugares à conformação de frentes eleitorais de esquerda com um programa mínimo contra os ataques ao povo e a extrema direita. O exemplo da Nova Frente Popular francesa é significativo de como se pode, a partir de uma situação defensiva, chegar à ofensiva e derrotar a extrema direita. Esta foi a hipótese que se buscou nas eleições de diversas outras cidades do país onde se construíram chapas coligadas entre o PSOL e o PT, e que saíram quase todas derrotadas, à exceção de Pelotas/RS (em Fortaleza, a única capital que o PT ganhou, a vice é do PSD).

O caso de São Paulo é uma exceção que confirma a regra, já que nele se transitou de uma frente de esquerda para uma frente ampla (coligando com setores burgueses, portanto) desde a incorporação de Marta Suplicy, que estava no MDB nos últimos anos e foi tanto base de sustentação do governo Temer – votando, por exemplo, favorável à PEC do teto dos gastos em 2017 – quanto secretária de relações internacionais de Ricardo Nunes, além de ter se expandido o espectro de partidos na coligação, incorporando, por exemplo, o PMB, legenda que abrigou a candidata bolsonarista que foi ao segundo turno em Curitiba. Ainda assim, a frente ampla de SP era menos desenvolvida do que a de Lula no Governo Federal, já que os partidos do centrão estavam todos com Ricardo Nunes. O programa dessa frente refletiu seu caráter de classe, abandonando qualquer medida que exigisse enfrentar interesses da elite paulistana ou ampliasse as condições de auto organização do povo (abandonando, portanto, o programa que o PSOL historicamente acumulou nas duas décadas da sua existência). Neste caso, uma possível vitória eleitoral levaria a um governo inegavelmente mais à esquerda que o atual, mas dentro do regime político, afastando a eleição de São Paulo da hipótese da NFP francesa. Ainda assim, fomos parte bastante ativa da campanha de Guilherme Boulos tendo em vista derrotar Ricardo Nunes aliado de Bolsonaro e Tarcísio, e com isso ter melhores condições para lutar.

A busca pela herança política do lulismo

A campanha à prefeitura de São Paulo seguiu o movimento que Guilherme Boulos vem buscando fazer já há alguns anos de buscar se postular como principal herdeiro político de Lula, ao visualizar uma dificuldade do PT na renovação de figuras públicas que tenham projeção nacional e que possam assumir a liderança do campo da esquerda no Brasil depois de Lula. Sua estratégia individual se combinava então com o que se tornou o objetivo estratégico da direção do PSOL: governar capitais, tendo Belém e São Paulo como vitrines deste projeto. Uma vitória em São Paulo, assim, catapultaria Boulos à condição de prefeito da maior cidade do país, em aliança com o Governo Federal de Lula.

O cálculo eleitoral da direção da campanha se pautou em construir uma eleição a frio, apostando na associação de Ricardo Nunes a Bolsonaro, e ao fato de que tanto Lula quanto Haddad venceram as eleições para presidente e governador na cidade de São Paulo em 2022. Assim, quanto mais vinculação entre Boulos e Lula, maiores seriam as possibilidades de vitória. Boulos se apresentou, desde o início da campanha, como continuador do legado das prefeituras de Erundina, Marta e Haddad (que se associou a Alckmin na repressão a junho de 2013, atacou o funcionalismo público e catapultou a eleição de Dória no primeiro turno em 2016), e chegou a organizar um evento na última semana do segundo turno cuja principal presença do Governo Federal, na ausência de Lula, era o ex-governador Geraldo Alckmin. Chegamos ao cúmulo de que não haviam bandeiras da campanha que não tivessem a foto de Lula, ao lado de Boulos e Marta. Ou seja, para qualquer ativista declarar que era Boulos, precisava também declarar que era do “time do Lula”, e indiretamente do time do Governo Federal.

O resultado, no entanto, não foi o esperado. A estratégia da direção do PSOL coligada à direção do PT – que colocou seu ex-presidente nacional Rui Falcão para co dirigir a campanha de Boulos – restringiu o diálogo da campanha Boulos com quem não votou em Lula em 2022 e/ou não está satisfeito com o Governo Federal. A intensa vinculação de Boulos a Lula o fez ser visto enquanto um candidato do regime, enquanto Marçal ocupou todo o espaço da indignação antirregime no primeiro turno, ficando a poucos milhares de votos de não termos um segundo turno entre Nunes e Marçal. Mais do que isso, essa estratégia impediu com que Boulos fosse visto enquanto um candidato da mudança diante de um prefeito fraco, pouco conhecido, e tendo feito uma prefeitura ruim. O símbolo no segundo turno foi a disputa entre dois candidatos associados ao regime; um ao Governo Federal, outro ao Governo Estadual, e neste caso preponderou o peso da máquina da Prefeitura e o apoio de Tarcísio. O episódio da ENEL é emblemático, em que mais de 3 milhões de paulistanos ficaram sem luz em pleno segundo turno, e Boulos se limitou a denunciar o problema das podas de árvore, evitando a denúncia da ENEL já que pouco antes do apagão o Ministro de Minas e Energia havia sinalizado a renovação do contrato de concessão com a empresa. Incrivelmente, Boulos permitiu uma contra ofensiva de Nunes nesta situação denunciando hipocritamente a anuência do Governo Federal com a empresa.

Ao final, mesmo mais conhecido, com uma campanha milionária, e com a participação direta de Lula na campanha, Boulos repetiu seu desempenho de 2022. Podemos dizer que, em determinados momentos, Boulos se postulou mais como um cabo eleitoral do Governo Federal do que o contrário, mesmo que as eleições fossem municipais. Enquanto o PSOL saiu enfraquecido, já que a principal estratégia de sua direção foi derrotada, o PT, mesmo que também tenha amargado uma derrota importante – afinal, Boulos era o candidato de Lula e do PT em São Paulo nessas eleições – não deixou de propagandear intensamente Lula e o Governo Federal, já pensando nas suas prioridades, marcadamente a eleição de 2026 e seu fortalecimento enquanto partido.

Os limites atuais, inclusive eleitorais, da estratégia PTista

Este resultado deve nos levar a refletir sobre quais são os limites dessa estratégia adotada pela direção do PSOL, e aparentemente reforçada nos primeiros balanços públicos pós-eleição mesmo após o fracasso eleitoral. Acreditar, como fez a direção da campanha de Boulos, que simplesmente o resultado eleitoral de 2 anos atrás permitiria viabilizar uma transferência de votos para vencer as eleições reflete dois erros importantes: o primeiro é que não se pode atribuir todos os votos de 2022 à aprovação da figura de Lula (devemos lembrar que uma parte importante dos votos de Lula foram fundamentalmente em protesto aos 4 anos de governo Bolsonaro); o segundo é subestimar a experiência do povo com o Governo Lula 3 e suas limitações, já que há diferenças importantes com os governos Lula 1 e 2.

Podemos dizer que o auge do desempenho eleitoral do PT se deu entre 2002, quando chegou à Presidência da República, e 2012, quando elegeu seu maior número de prefeituras. Naquele momento, vivíamos uma conjuntura de crescimento econômico brasileiro pautada na alta dos preços das commodities no mercado internacional. A política econômica se pautava, então, em grandes incentivos a empresas nacionais privadas que se transnacionalizaram (as chamadas “campeãs nacionais”), e na ampliação do consumo interno em função de alguma distribuição de renda via programas sociais e da ampliação do acesso ao crédito. Foi possível ao PT ganhar maioria social, portanto, a partir da sensação de que as condições de vida melhoravam. Essa política possuía inúmeras limitações e contradições, que alimentaram a indignação popular desatada em junho de 2013 quando este modelo já mostrava sinais de esgotamento. O PSOL corretamente durante todo este período se postulou enquanto oposição de esquerda aos governos PTistas, exigindo a ruptura com a política econômica neoliberal, e denunciando as alianças com a direita.

Atualmente, as condições são diferentes. Vivemos um cenário prolongado de crise internacional, e a aposta de crescimento econômico do Governo Federal se dá unicamente pela via do incentivo ao setor privado, seguindo a cartilha neoliberal do antipopular ajuste fiscal. São esses parâmetros que orientaram a aprovação do arcabouço fiscal, os novos cortes no BPC, FGTS e seguro-desemprego e a planejada revisão dos pisos nacionais da educação e da saúde. Chegamos ao ponto que o BNDES está financiando a privatização de presídios e de escolas. E as expectativas positivas do governo recaem sobre os leilões de concessão das infraestruturas rodoviária, portuária e aeroportuária, enquanto se comemora o maior plano safra da história, com 400 bilhões de reais para o agronegócio. Nessas condições, somadas à crescente crise climática e um maior desamparo social, a sensação geral é que as condições de vida não têm melhorado no Brasil; em muitos casos, têm piorado. A possibilidade de se ganhar maioria social em torno da associação ao Governo Federal, portanto, está diminuída.

Nos 10 primeiros anos de governos federais do PT, portanto, defender o governo significava ser cúmplice da estratégia de desarmar os movimentos sociais para depositar confiança nas instituições falidas do Estado Brasileiro, mas poderia render bons desempenhos eleitorais, já que era mais fácil vender ilusões de transformações reais a partir do Governo Federal. Atualmente, essa defesa caminha não somente para paralisar o ativismo mesmo diante da grande força da extrema direita, mas também é fiadora, na maior parte dos casos, da produção de derrotas eleitorais. Evidentemente, é necessário defender o governo pontualmente dos ataques da extrema direita, mas mantendo uma linha independente, sem se associar ao balanço político do governo, de forma separada ao “time do Lula”.

Postular uma esquerda independente e anticapitalista

Mesmo com os sinais do último processo eleitoral, a política da direção do PSOL e dos seus satélites tem sido reafirmar a adesão à estratégia PTista reforçando a figura de Lula como grande liderança da esquerda, e com isso ampliando a defesa acrítica do Governo Federal. Afinal de contas, mesmo com a derrota eleitoral, a disputa para a sucessão de Lula segue em aberto, o PT segue sem grandes figuras de envergadura nacional, e Boulos não irá medir esforços para demonstrar fidelidade ao seu líder maior. A grande questão é o que fazer diante disso: se limitar à realpolitik ultra pragmática PTista, ou buscar construir uma esquerda radical em raia própria.

É necessário postular uma esquerda independente e anticapitalista, que apresente um programa de enfrentamento aos grandes poderosos e não titubeie ao enfrentar os grandes problemas sentidos pelo povo, como a crise climática, a violência policial racista, os ataques aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e das pessoas que têm útero, os juros exorbitantes dos bancos, o transporte público lotado, a precarização da saúde e da educação, a falta de perspectiva de aposentadoria digna, a inexistência da vida além do trabalho etc. Somente dessa forma será possível fazer uma real disputa ideológica contra a extrema direita e empoderar os movimentos sociais a construírem massivos enfrentamentos, que ajudem a inverter a relação de forças hoje desfavorável. Na luta pela sucessão de Lula não podemos repetir os erros da direção PTista que também tem responsabilidade sobre a situação que chegamos, e que segue apostando em alianças com a direita, vide o recém-divulgado apoio da bancada do PT à candidatura de Hugo Motta (Republicanos-PB), representante do Centrão e de Arthur Lira.

Por fim, é necessário refletir sobre a situação de 2026. O resultado das últimas eleições fortalece os partidos do Centrão tanto na capacidade de chantagem a Lula, quanto na definição da candidatura da oposição de direita/extrema direita. Por hoje, Lula segue sendo quem tem melhores condições de evitar uma vitória eleitoral da extrema direita, mas, como argumentei acima, a dinâmica tem sido de enfraquecimento político da esquerda, e de dificuldades para o campo democrático capitaneado por Lula adquirir maioria eleitoral (vale lembrar que, mesmo após todo o trauma social do Governo Bolsonaro, vencemos por uma margem de 1,8%).

Para a esquerda voltar a vencer, é necessário superar a estratégia PTista. Apostar na construção de mobilizações contra a extrema direita e os ataques neoliberais em todos os setores sociais e edificar um corpo político identificado com o melhor dessas lutas. Até para as eleições de 2026, é melhor, para uma eventual eleição de Lula no segundo turno, a presença de uma esquerda radical que não titubeie em criticar os ataques do governo federal e que tenha apresentado seu programa de cara própria no primeiro turno, do que uma esquerda que se limite a defender a (péssima) governabilidade que temos hoje. Este deveria ser o papel do PSOL neste momento atual. E será neste sentido que seguiremos caminhando.


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