Arcabouço fiscal: aparência e essência
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Arcabouço fiscal: aparência e essência

Os reais efeitos da austeridade fiscal do governo Lula sobre a classe trabalhadora brasileira

Ricardo Souza 6 dez 2024, 11:49

Foto: Lula e Haddad (Ricardo Stuckert/Flickr)

Diante do pacote de ajuste fiscal encaminhado pelo ministro Fernando Haddad, aliado ao Congresso Nacional, ao apagar das luzes de 2024, como bem nos alertou David Deccache, corremos sérios riscos de aprovação do maior ajuste fiscal da história do país com pouca ou nenhuma resistência. Resumidamente corremos o risco de retroceder em conquistas históricas, como fim pisos constitucionais da saúde e da educação, fim da política de valorização do salário mínimo e benefícios sociais como o BPC e Abono-Salarial, bem como sequer garantir o reajuste conquistados em acordos de greve do funcionalismo.

Tudo isso como apoio de uma “esquerda hegemônica” que aceitou não apenas fazer uma frente ampla com setores conservadores, mas tomar a iniciativa e o protagonismo das políticas de austeridade, algumas mais perversas que de governos anteriores,dando continuidade ao austericídio neoliberal e à legitimidade ao golpe de 2016.

É urgente a mobilização de todas e todos para fechar o ano legislativo sem este projeto aprovado, ou ao menos, desidratado em seus ataques mais brutais.

A Farsa: o pronunciamento do ministro

Semana passada, o ministro Haddad fez um pronunciamento que teve como eixo “maquiar” o pacto anti-povo citando outras medidas, vistas como populares, como parte de um mesmo conjunto, por exemplo a isenção do Imposto de Renda para aqueles que ganham até 5 mil reais (promessa de campanha), com taxação maior para aqueles que ganham mais de 50 mil além da reforma sobre as pensões militares.Embora positivas,nada disto consta no pacote de medidas em tramitação , e o próprio Haddad, bem como os presidentes da Câmara e do Senado já afirmam que será votado só ano que vem as alterações no imposto de renda, sem garantia de aprovação, ou seja, na “volta à gente compra”.

Este era o objetivo do pronunciamento, confundir, desmobilizar e anestesiar, inclusive setores da esquerda, que frente ao pedido de urgência aprovado na Câmara, sequer imaginam os ataques que vem pela frente. Nada sobre correção de imposto de renda, justiça tributária, nem reforma das pensões militares, tudo foi engodo.

A Tragédia: o conjunto de medidas

Este pacote de medidas tem como objetivo assegurar o Arcabouço Fiscal, ou melhor, Novo Teto de Gastos, aprovado em 2023, como estelionato eleitoral de Lula que havia prometido em campanha revogar o Teto de Temer até então vigente. Como já uma série de economistas e estudiosos e militantes em defesa dos direitos sociais denunciaram, o arcabouço era incompatível com conquistas históricas da classe trabalhadora, como o piso constitucional da saúde e da educação(que sequer Bolsonaro e Guedes conseguiram atacar) e a política de valorização do salário mínimo. Justamente estes e outros direitos estão em risco com esses pacote de medidas:

1) PEC 45/20241

Altera a constituição acomodando os mecanismos do arcabouço fiscal

a) prorroga novamente a Desvinculação da Receita da União (DRU) de 30% do recurso da seguridade social ser destinado ao Sistema da Dívida Pública;

b) determina que 20% do orçamento do Fundeb seja destinado a educação de tempo integral (sem incremento do orçamento);

c) reduz gradualmente a faixa de renda de acesso ao abono salarial de 2 para 1,5 salários mínimos;

d) abre a possibilidade da desconstitucionalização dos pisos da saúde e da educação, tendo seu crescimento restrito ao limite do arcabouço fiscal , como destaca Deccache.

2) PLP 210/20242

Altera a lei complementar 200/23 do arcabouço fiscal, permitindo que caso não haja superávit fiscal reajuste da folha de pagamento de servidores não possa crescer mais 0,6% acima da inflação de um ano para outro(sem considerar anos de congelamento salarial), colocando em risco inclusive “calote” em acordos de greve de servidores da educação (Fasubra, Sinasefe e Andes) que conquistaram um reajuste de 9% para 2025, 5% para 2026, além de reestruturação de carreiras.

3) PL 4614

Busca prejudicar a população mais pobre, pois limita o reajuste do salário mínimo até 2,5% acima da inflação, desconsiderando o crescimento do PIB, como foi praticado nos governos petistas anteriores. Além disso dificulta o acesso da população mais pobre ao bolsa família, abono salarial e BPC.

Caso este limite fosse aplicado desde o primeiro mandato do Lula teríamos um salário mínimo oficial de menos de 1000 reais, segundo o economista Pedro Rossi, que ressalta a importância do atrelamento ao crescimento do PIB.

Além disso, cabe relembrar que 73% da população usuária do Bolsa Família (com renda até meio salário mínimo per capita) se autodeclara negra e grande maioria composta por famílias chefiadas por mulheres. Estas mães e avós, vem tendo menor acesso ao mercado de trabalho formal, seja pelo trabalho reprodutivo e de cuidados, seja pelas reformas trabalhistas e previdenciárias aplicadas nos últimos anos, isso levou uma maior demanda pelo BPC, de pessoas idosas que não contribuíram tempo suficiente para aposentadoria, seja de pessoas com deficiência, e segundo levantamento de Gênero e Número, 3 de cada 5 beneficiários do BPC são mulheres e dois terços delas são negras.

Observando este breve resumo das medidas, todas de iniciativa do Poder Executivo, sujeitas a alteração pelo Congresso, evidencia-se que é mais ajuste contra a classe trabalhadora, piorando condições de vida e relação de trabalho, com efeitos de longo prazo que requer mobilização unificada de todas e todos,

A austeridade, antessala do fascismo

Nossa leitora ou leitor deve estar pensando,mas será que criticar a proposta do governo não fortalece a extrema direita?

Historicamente, os fenômenos fascistas e golpistas crescem e prosperam na incapacidade da social-democracia em enfrentar a crise capitalista e oferecer alternativas para o povo. A estratégia reformista se provou incapaz de suprir a contradição capital-trabalho. A social-democracia alemã não apenas nada pode fazer para conter o Nazifascismo, mas abriu as portas para este. Ou ainda as ditaduras na América Latina, que se impuseram contra governos nacional-desenvolvimentistas, e mesmo à experiência mais avançada da Unidade Popular chilena, pela incapacidade de enfrentamento acabou se transformando na antessala da Contrarrevolução e do Neoliberalismo.

Como bem resume Clara Mattei, a austeridade pavimenta o caminho do fascismo, seja ela aplicada diretamente pela extrema direita seja ela aplicada por um liberalismo progressista, que promete melhorias a classe trabalhadora, mais representatividade, e ao chegar o governo dão continuidade aos planos de austeridade e abrem caminho para o fortalecimento da extrema direita, como já ocorreu em muitos países. Logo, lutar contra a austeridade é lutar contra o fascismo.

Já foi prometido abolição do Teto de Gastos, e foi criado um ainda mais restritivo, o PIB cresce, mas o povo não come PIB (nem comerá melhor com o crescimento do PIB ), o Brasil quebra recorde da exportação do agronegócio, mas encarece o quilo da carne para à família trabalhadora o governo comemora o baixo desemprego, porém ignora mais de 40% na informalidade, os baixos salários e a piora das condições de trabalho, como ficou evidente na luta contra à jornada 6×1, que partiu da classe, por fora das burocracias sindicais.

Seguindo o governo neste rumo e povo não identificando melhora na condição de vida, o discurso da extrema direita atrai parcelas importantes, como atraiu nas eleições municipais de 2024. Concretamente, o governo Lula III está sendo mais eficiente na imposição do ajuste fiscal que Temer e Bolsonaro e vem tomado iniciativa de impor a austeridade em unidade com o Congresso.

Qual o papel das esquerdas neste cenário? Naturalizar o neoliberalismo? Atender o humor do “Mercado”? Ou as negociatas do Centrão? Criminalizar a pobreza chamando os beneficiários do Bolsa Família e do BPC de “malandros” e “fraudadores”?

Por isso é fundamental, para nós que estamos efetivamente na esquerda, retomarmos a mobilização popular independente em defesa dos direitos democráticos sem abrir mão do enfrentamento ao ajuste fiscal permanente aplicado por este governo.

Nosso papel é organizar coletivamente a classe trabalhadora nos múltiplos movimentos sociais, sindicais, estudantis, populares pela Revogação do Arcabouço Fiscal, como muito bem fez parte da bancada do PSOL, pela manutenção dos pisos da saúde e da educação,defesa da política de valorização do salário mínimo, do BPC e do Bolsa Família, a taxação de grandes fortunas, lucros e dividendos e pela auditoria da dívida pública.

Abaixo o Arcabouço Fiscal!

Nenhum direito a menos!

Notas

  1. https://auditoriacidada.org.br/conteudo/pec-do-pacote-de-cortes-ataca-a-educacao-e-outras-areas-para-atender-os-rentistas-da-divida-publica/ ↩︎
  2. https://auditoriacidada.org.br/conteudo/pacote-de-cortes-de-direitos-sociais-grave-ataque-ao-funcionalismo-publico/ ↩︎

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Pedro Micussi