Acordo comercial neocolonial UE-MERCOSUL é um golpe para o clima e os direitos humanos
Novo acordo terá consequências terríveis para os trabalhadores e o meio ambiente de países sul-americanos
Foto: Protesto contra o acordo comercial UE-MERCOSUL na reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em fevereiro do ano passado. (Friends of the Earth International)
A assinatura do maior acordo de livre comércio do mundo entre a União Europeia e o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) em 6 de dezembro – após 25 anos de negociações paralisadas – tem graves implicações para o meio ambiente e os direitos humanos, caso seja ratificado e entre em vigor.
O MERCOSUL é um bloco comercial sul-americano formado no início da década de 1990 com o objetivo de ser uma área de livre comércio consolidada entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, que depois se expandiu para incluir países como Bolívia, Peru, Chile, Colômbia e Equador. Embora tenha sido formada em moldes semelhantes aos da UE, ela nunca se concretizou no sentido de um mercado integrado e de cidadania. No entanto, representa um bloco econômico significativo, com quase um quarto do produto interno bruto do mundo.
O acordo de livre comércio reduz as tarifas de importação de produtos manufaturados provenientes da UE para os países do Mercosul, ao mesmo tempo em que reduz as restrições sobre produtos agrícolas e minerais importados para a UE.
Os think tanks neoliberais e a mídia estão elogiando a grande escala e a oportunidade de gerar lucros, já que o Mercosul representa o maior produtor agrícola do mundo e tem as maiores reservas de minerais e petróleo.
Enquanto isso, os movimentos populares denunciaram o acordo por seu impacto esperado sobre as mudanças climáticas, a exacerbação das violações dos direitos humanos e a violação da soberania dos países.
O acordo comercial viola o princípio do consentimento livre, prévio e informado, sendo que as comunidades indígenas, os camponeses (agricultores pobres e de pequena escala) e a sociedade civil foram excluídos das negociações. Décadas de negociações foram feitas em total sigilo, e ainda não há um texto completo do acordo comercial disponível ao público – informações importantes sobre as negociações e o acordo só foram disponibilizadas por meio de documentos vazados.
De acordo com o acordo, a UE aumentará as importações de produtos como carne bovina, aves, soja e açúcar, ao mesmo tempo em que exportará carros, plásticos e pesticidas – incluindo pesticidas que são proibidos na UE por seus impactos ambientais e na saúde. Considerando que o Brasil e a Argentina são o terceiro e o quarto maiores usuários de pesticidas, respectivamente, isso terá impactos significativos na saúde e no meio ambiente.
A produção de carne é o principal fator de desmatamento na região amazônica, sendo responsável por 80% da derrubada de terras para pastagem de gado e monoculturas que produzem ração animal. Portanto, a expansão da demanda por carne bovina e outros produtos agrícolas tem enormes consequências para a crise ecológica e climática, uma vez que o desmatamento é um importante fator de mudança climática.
Um relatório de 2020 elaborado por ONGs francesas constatou que o aumento previsto na produção exclusiva de carne bovina no âmbito do acordo UE-MERCOSUL poderia aumentar o desmatamento em 25% ao ano em seis anos.
Isso ameaça especialmente a floresta do Gran Chaco, a segunda maior floresta do continente (cerca de 80 milhões de hectares) depois da floresta amazônica e um dos maiores sumidouros de carbono do mundo, que se estende pela Argentina, Brasil, Paraguai e Bolívia.
Além dos graves impactos ambientais, a expansão dos setores madeireiro, de mineração e do agronegócio agravará ainda mais as violações dos direitos humanos, principalmente dos povos indígenas na América Latina.
Poderosas empresas de agronegócio e mineração são responsáveis pela desapropriação e destruição generalizada de terras indígenas na região amazônica, muitas vezes impostas com violência.
De forma crítica, os povos indígenas são os guardiões de 83% da biodiversidade restante do mundo, apesar de representarem apenas 5% da população.
Hipocrisia
O acordo também expõe a hipocrisia dos supostos compromissos dos países europeus com a ação climática. Enquanto a UE se apresenta como líder climático moralmente superior – especialmente por meio de seu “Acordo Verde Europeu” – seu acordo comercial com o Mercosul lucrará com a exportação de produtos que destroem o clima para a América Latina e com a importação de recursos com uma pegada destrutiva semelhante.
As potências ocidentais estão buscando controlar ou obter minerais “críticos”, como o lítio, que são usados para baterias em veículos elétricos, dispositivos eletrônicos e armazenamento de energia solar. A exploração e o processamento desses minerais, no entanto, têm um enorme custo ambiental e social.
Vários países da UE estão se movendo em direção à “ecologização” de suas economias domésticas, com base em acordos para reduzir as emissões climáticas, o uso de pesticidas e a eliminação gradual de veículos a diesel e a gasolina. Mas essa “lavagem verde” em larga escala depende da expansão de setores destrutivos no Sul Global, essencialmente criando mais zonas de sacrifício, além de bloquear os caminhos dessas economias para uma transição climática significativa.
Um relatório divulgado pela Climate Action Network em novembro afirmou que o acordo essencialmente garante um mercado lucrativo para os fabricantes de automóveis da União Europeia (UE) “continuarem a vender carros movidos a combustíveis fósseis às custas do clima, enquanto proclamam simultaneamente suas credenciais verdes dentro da UE”.
Ao mesmo tempo, os fabricantes de automóveis fizeram forte lobby para que o acordo eliminasse tarifas de importação sobre matérias-primas utilizadas na indústria e impedisse os países do MERCOSUL de introduzir restrições de exportação sobre esses materiais.
O acordo beneficia predominantemente os grandes interesses do agronegócio e do extrativismo nos países do MERCOSUL, bem como os fabricantes de automóveis, produtos químicos e plásticos na UE.
Os defensores do acordo apresentaram alegações duvidosas sobre o aumento do emprego — contraditas pela própria Avaliação de Impacto de Sustentabilidade da Comissão Europeia, que prevê apenas ganhos insignificantes — numa tentativa de posicionar o acordo comercial como mutuamente benéfico.
No entanto, ele é mutuamente benéfico apenas para os capitalistas latino-americanos e europeus, ao aprofundar e perpetuar as estruturas coloniais do comércio global.
O acordo reforça o mesmo padrão observado desde a colonização inicial da América Latina, que é o saqueio de recursos primários por interesses majoritariamente estrangeiros, posteriormente convertidos em produtos industriais de maior valor agregado para serem vendidos com lucros monumentais. O jornalista uruguaio Eduardo Galeano documenta essa história com precisão em As Veias Abertas da América Latina.
Ao mesmo tempo, potências imperiais ocidentais destruíram ou inibiram deliberadamente as indústrias nacionais da América Latina, como a manufatura, frequentemente por meio de força militar. O resultado é que as economias da América Latina são amplamente baseadas na exportação, subjugadas às economias centrais do Norte Global.
Esse comércio desigual entre Europa e América Latina, e mais amplamente entre o Norte e o Sul Global, ainda existe hoje. Atualmente, cerca de 84% das exportações da UE para os países do MERCOSUL são serviços ou produtos industriais de alto valor, enquanto cerca de 75% das exportações do MERCOSUL para a UE são recursos agrícolas e minerais.
Os governos do Norte Global protegem suas próprias indústrias por meio de políticas protecionistas, como tarifas sobre produtos manufaturados importados, como automóveis, enquanto defendem o “livre comércio” para garantir o acesso a recursos primários baratos. Mesmo no acordo UE-MERCOSUL, a importação de produtos agrícolas para a UE ainda seria fortemente regulamentada por um sistema de cotas por produto.
Esse chamado “livre comércio” é, na verdade, uma série complexa de fluxos comerciais regulados, geralmente projetados para manter o comércio desigual e garantir lucros para corporações transnacionais.
Uma característica chave da maioria dos acordos comerciais é a proibição de impostos sobre exportações, o que favorece as economias competitivas do Norte Global que exportam produtos e serviços de alto valor, enquanto condenam as economias amplamente exportadoras do Sul Global ao esgotamento de sua riqueza e recursos.
A Via Campesina Brasil — o setor brasileiro de um movimento internacional anticapitalista que luta pela soberania alimentar e pelos direitos dos camponeses — divulgou uma declaração rejeitando o acordo comercial UE-MERCOSUL, afirmando que ele “assume características neocoloniais em sua concepção e ameaça nossos povos e territórios, representando um perigo para a agricultura camponesa, comunidades tradicionais e entrega nossos bens comuns aos interesses do capital internacional”.
A declaração afirmou que o acordo consolida a “natureza voltada à exportação da economia [brasileira], que basicamente continua a exportar matérias-primas para atender às demandas dos países europeus em troca de produtos industrializados”.