O teatro Lula x Campos Neto acabou
Campos Neto e Lula

O teatro Lula x Campos Neto acabou

Declaração de Haddad sobre inflação resume a essência do alinhamento entre o governo e o Banco Central

David Deccache 23 jan 2025, 17:36

Foto: Reprodução

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse em entrevista à CNN, na última sexta-feira, não se opor a desacelerar a economia para preservar a inflação. Essa declaração resume a essência do alinhamento entre o governo e o Banco Central, escancarando que não há, e nunca houve, conflito real entre eles. A declaração do ministro deixa claro que a suposta oposição do governo à política monetária de Campos Neto nunca passou de encenação.

O teatro Lula x Campos Neto acabou. A suposta oposição ao Campos Neto por parte do governo era uma farsa para esconder as múltiplas tentativas e ofensivas do governo federal de impor uma dura política fiscal de austeridade e desviar os holofotes para a igualmente desastrosa política de juros altos do Banco Central, onde, a princípio, o governo nada poderia fazer durante a gestão Campos Neto. Agora, com um presidente do Banco Central nomeado pelo atual governo, ou seja, com Lula tendo ingerência ainda mais direta na política monetária, a tática do distracionismo não funciona mais. Aliás, poder relativo na política monetária Lula sempre teve, inclusive na gestão Campos Neto. Bastaria reduzir a meta de inflação, determinada pelo Conselho Monetário Nacional, que está sob controle do governo.

Lula, porém, mantém a meta de inflação fora da realidade histórica e estrutural da economia brasileira, fixada em 3%, o que fortalece a narrativa do mercado financeiro sobre a suposta necessidade de altas taxas de juros frente a uma inflação moderada de 4,7%. Como o centro da meta está muito abaixo da inflação real, legitima-se a prática de juros reacionários. Sempre foi jogo combinado, jogada ensaiada, entre o BC, o governo e a elite rentista e espoliativa. Nunca houve enfrentamento. Enfrentamento é avesso à natureza do lulismo.

O crescimento econômico e a queda do desemprego, que vêm ocorrendo desde 2021, iniciados no governo Bolsonaro e continuados no governo Lula, acontecem apesar do projeto econômico neoliberal em vigor no Brasil desde Temer, guardadas as devidas especificidades das gestões Guedes e Haddad. Se eles pudessem, travariam o crescimento e a queda do desemprego. Guedes, evidentemente, é mais agressivo. Porém, a direção do projeto é a mesma. Basta lembrar os ataques ao BPC propostos pelo atual governo federal no final do ano, como parte da tentativa de desacelerar a economia ferrando diretamente os mais pobres. Não conseguiu ferir o BPC de morte porque foi derrotado pela classe trabalhadora no debate público e, por consequência, no Congresso.

Voltando ao assunto, o motivo da queda do desemprego, apesar deles? As despesas primárias com gastos sociais no Brasil crescem rápido e no automático (apesar da qualidade deteriorada, por exemplo, pelo orçamento secreto), e não há espaço discricionário para cortes, seja qual for o governo. Eles não encontram correlação de forças suficientemente favorável no Congresso para desmontar os pisos constitucionais da saúde, educação, previdência e BPC, o que abriria espaço para o Novo Arcabouço Fiscal funcionar em toda sua brutalidade. Até agora, o Novo Teto não funcionou para o que se propõe, e a expansão fiscal é mais de duas vezes maior que o governo gostaria (o governo impôs um teto de crescimento real de 2,5% para as despesas primárias, que, apesar disso, cresceram mais de 6% em 2024).

O motivo dos últimos governos lutarem para desacelerar a economia? Kalecki explica. O desemprego relativamente baixo reduz o controle social que o capital exerce sobre a classe trabalhadora. Ele destrói a “disciplina nas fábricas” e aumenta o poder de barganha dos trabalhadores na luta de classes. É aí que reside a verdadeira raiz da resistência ao crescimento e ao pleno emprego. O capital teme que, com desemprego baixo, os trabalhadores ampliem seu poder político, pressionem por melhores salários e reorganizem a relação de forças na sociedade. É o pesadelo da elite econômica.

Kalecki também nos lembra que os instrumentos de política econômica, longe de serem neutros, são usados para preservar as relações de poder. O pleno emprego, como ele diz, seria politicamente indesejável porque ameaçaria a hegemonia do capital. Essa lógica se escancara na implementação do Novo Arcabouço Fiscal e na tentativa constante de desacelerar a economia.

O crescimento econômico atual e a queda do desemprego não são frutos de políticas bem desenhadas ou de um plano deliberado dos governos, mas de forças que escapam ao controle dos gestores. Graças a Deus, temos mecanismos fiscais como os pisos da saúde e da educação, que limitam as tentativas de austeridade. Há pouco ou nenhum espaço discricionário para cortes sem medidas legislativas que passem pelo crivo do Congresso.

Kalecki sintetiza essa dinâmica: “Os trabalhadores gastam o que ganham, e os capitalistas ganham o que gastam.” O Estado, no entanto, intervém para garantir que a engrenagem continue girando a favor do capital, seja com austeridade, seja com juros altos.

O Brasil é uma aula prática de Kalecki e Marx. O desemprego relativamente baixo dos últimos anos foi conquistado pela luta da classe trabalhadora, como na pandemia, com a pressão por um auxílio emergencial de R$ 600 que se transformou em Bolsa Família, além de mais gastos em saúde e outros direitos sociais. Isso aconteceu apesar das tentativas do capital, transformadas em leis como o Arcabouço Fiscal, de frear a economia, demonstrando que a luta de classes segue viva e pulsante. A questão é: até onde conseguiremos avançar antes que o capital e seus operadores nos arrastem de volta ao abismo? Marx e Kalecki, sempre atuais.


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