Para que serve a oposição de esquerda hoje na UNE?
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Para que serve a oposição de esquerda hoje na UNE?

Uma resposta à pergunta do coletivo Afronte

Foto: Coletivo Juntos! (Reprodução)

Em seu recente texto “Para que serve a oposição de esquerda hoje na UNE?”, Victoria Ferraro e Marina Amaral, ambas dirigentes do Afronte, iniciam um debate, a partir do nosso manifesto ao CONEB, sobre o sentido político da existência da oposição de esquerda da UNE e o papel do movimento estudantil em 2025. Segundo o texto, a construção de um pólo independente na UNE corresponderia a uma tática voltada a “um Brasil que não existe mais” e que hoje precisaríamos buscar um “grau de unidade muito maior” para organizar um contra-ataque.

Achamos importante a abertura desse debate, pois ajuda a elencarmos de forma mais aberta quais estratégias diferentes têm se colocado para o movimento estudantil nos últimos anos e como isso é reflexo de uma disputa mais profunda de perspectiva da esquerda brasileira. Nesse sentido, achamos que é fundamental respondermos, da nossa parte, a mesma pergunta proposta pelas companheiras: para que serve a oposição de esquerda da UNE?

Há uma mudança grande em curso no mundo

A reorganização da extrema direita, de fato, é um elemento central para qualquer caracterização séria sobre a atual realidade internacional e, portanto, não pode ser subestimada. Nisso temos muito acordo com o texto das companheiras. Porém, não acreditamos que é suficiente uma análise que destaque a existência da extrema direita sem debater, mais profundamente, a realidade que permite a manutenção da sua relevância.

A crise múltipla, que também concordamos que existe, se alonga desde 2008 e expressa uma dificuldade da burguesia em manter um modelo estável de dominação do próprio sistema capitalista. As últimas décadas tem demonstrado, portanto, um cenário de polarização global que, ao mesmo tempo, permitiu experiências importantes de luta social vividas globalmente, como recentemente o levante em Bangladesh e a mobilização sul-coreana, mas que é também base fundamental para a articulação de um campo internacional de extrema direita.

O alongar de uma crise econômica e social ajuda a fortalecer uma crise de perspectiva, tão fundamental para o crescimento da extrema direita, que se expande, também, na fragilidade dos governos burgueses liberais, que buscam, na mesma cartilha neoliberal clássica, uma resposta à extrema direita baseada somente na afirmação da democracia formal, e na defesa das instituições burguesas que atualmente estão em crise, sem políticas reais de avanços para a classe trabalhadora.

A eleição de Trump é ilustrativa nesse sentido. Sua volta à Casa Branca não se deu por um fortalecimento estrondoso do trumpismo na opinião pública norte-americana – seu aumento de votos (4% a mais comparado às últimas eleições) não o garantiria vitória sem uma diminuição geral do quórum eleitoral, especialmente dentro dos votos democratas, que caíram mais de 6 milhões de votos em relação a 2020.

Existe, nesse sentido, uma aposta consciente da extrema direita em ser o pólo mais ativo em uma polarização de uma sociedade em crise. Criam uma resposta ultraindividualista à crise que pode ter rejeição de grande parte da sociedade, mas que na falta de perspectiva que coloque outra via sem ser a desacreditada democracia liberal, aparece como a única possibilidade para aqueles insatisfeitos com a atual realidade.

Esse debate é muito visível também no Brasil. A recente pesquisa que aponta uma aprovação de 24% do governo Lula é um sinal vermelho que precisa ser debatido de forma aberta pela esquerda. A aposta em seguir um programa baseado na manutenção do arcabouço fiscal e na estabilidade dos índices econômicos sem assumir que para um enfrentamento efetivo ao bolsonarismo será necessário um enfrentamento à lógica liberal, ou seja, uma mudança no programa do governo, está mostrando seus limites.

Ou seja, acreditamos que também é justamente a ausência de apresentações e lutas alternativas de esquerda à crise que vivemos que a extrema direita consegue se pôr como única opção “antissistêmica” no país. Assim, em meio há quase duas décadas dessa crise, fica evidente a insuficiência da estratégia da esquerda institucional brasileira, ao seguir a aplicando políticas neoliberais de ajuste fiscal que mantém uma lógica reprodutora de desigualdades, como foram os cortes ao BPC e, ao mesmo tempo, se abster de uma luta política para aplicar um programa de superação ou contestação do status quo, apenas se recolhendo na velha forma de fazer política institucional afirmando uma dificuldade da correlação de forças, mas nunca a disputando. É necessário, portanto, que o combate ao bolsonarismo precisa ser feito de outra forma.

Não é só na juventude que esse debate é feito. A recente demissão de David Deccache do PSOL, partido que tanto nós, quanto o Afronte se referenciam, demonstra uma disputa de sentido dos setores da esquerda fora do governo. Deccache foi demitido por suas críticas ao arcabouço fiscal e por compreender, como nós, que ou se cria um debate franco a partir dos setores não atrelados ao governo federal, sobre a necessidade de uma mudança de rumo imediata, ou estamos em risco grave de repetir a mesma história que se passou nos Estados Unidos.

Portanto, é exatamente pela existência da extrema direita, que não acreditamos que tenhamos que rebaixar nosso programa. A polarização social que permite o crescimento do trumpismo ou bolsonarismo está dada, mas não pode ser somente a manutenção da democracia liberal a estratégia que temos para uma construir disputa que tenha chances de vitórias. Precisamos apontar outro caminho: e nisso, o movimento estudantil também tem um papel fundamental.

Nossa resposta de classe

Somos a citada “parte da oposição de esquerda que afirma que temos que conectar a luta aos lutadores.” Por óbvio, isso não significa que temos uma caracterização de que a fragilidade das mobilizações sociais no último período se dá unicamente pela falta de direção política que aponte em um caminho da mobilização, mas compreendemos que, mesmo não sendo o único fator, existe sim uma relação dialética entre a condição objetiva e subjetiva do movimento estudantil, ou seja, entre o grau de mobilização nas escolas e universidades e a existência de setores sociais que apontem uma alternativa aos estudantes.

É verdade que as mudanças estruturais pós-pandemia e a existência da extrema direita dificultam as mobilizações. Mas também é verdade que existe uma disputa consciente por parte da direção política da esquerda brasileira que adota a conciliação de classes como estratégia para construir uma consciência de que a mobilização não é o método central para conseguir avanços. Só é possível ignorar essa diferença de concepção se, assim como foi feito pelo texto do Afronte, ignoramos as disputas nos processos reais de luta que seguiram existindo nos últimos anos.

Por exemplo, o enfrentamento que os professores do Rio de Janeiro tiveram contra os vereadores do PT, eleitos pela categoria, que atuaram em conjunto o governo Paes para retirar seus direitos, levando a uma resposta importante dos profissionais de educação. Ou, mais recentemente, a crítica aberta que o movimento indígena teve que fazer às figuras do governismo que tentaram mediar ou apaziguar o forte enfrentamento que tiveram contra o governo do Pará, que terminou de forma vitoriosa por apostar na mobilização como método.

Mas mais importante, para ignorar o debate sobre diferenças de perspectiva para o movimento, é necessário ignorar a principal luta do movimento estudantil no ano passado: a greve das universidades e institutos federais. Não escondemos que esse processo teve como vanguarda os Técnicos Administrativos (TAEs) e Professores, e não o movimento estudantil, mas achamos que foi um espaço central de compreensão do atual sentido de disputa do movimento educacional brasileiro.

O papel cumprido pelo PROIFES, associação de professores ligada ao governo, de tentar encerrar a mobilização construída pela FASUBRA, SINASEFE e ANDES foi um dos fatores que demonstrou a continuidade de uma disputa do sentido do papel das nossas entidades. Enquanto esse setor tentava acabar com a greve, a mobilização forte dos TAEs e dos professores permitiu a abertura de um essencial debate público sobre o risco que é a continuidade do desmonte do modelo público de educação que segue no governo Lula. Acreditamos que esse processo é fundamental para entender as disputas políticas na educação brasileira.

No movimento estudantil, portanto, também houve disputas objetivas que não podem ser ignoradas. O papel que a majoritária da UNE teve perante as greves não foi, em boa parte do país, de ignorá-las, mas sim de enfrentá-las. A votação contrária a uma greve estudantil não só foi feita, como comemorada em diversas universidades, como a UFES e na UFBA. Na UFF, os membros da majoritária da UNE tentaram colocar os estudantes em confronto com os técnicos para descredibilizar a greve. Em nenhum momento a entidade buscou ter posições para colaborar ou fortalecer as pautas estudantis naquele processo. A posição formal de independência perante o governo, em qualquer resolução que seja, não apaga essa realidade.

É evidente que a greve nas federais não foi massiva para os estudantes como em outros processos anteriores. Porém, expressou uma unidade importante entre os setores da universidade, retomando o debate da luta como método para conquistar. As promessas colocadas pelo governo, e ainda não cumpridas, de um novo PAC para educação, não podem ser tiradas do contexto da greve e esse momento central de 2024 ter sido ignorado no texto, não é ocasional.

Unidade para contra-atacar, programa e luta para avançar

Apostamos na unidade. Por isso, apostamos na unidade entre os setores da educação na greve federal em 2024. Por isso, apostamos na unidade para construção da greve da USP em 2023. Por isso, apostamos na unidade para o retorno às ruas no pós-quarentena no primeiro ato do movimento estudantil puxado pela UFRJ em 2021. Por isso, fomos entusiastas e construtores do Tsunami da Educação em 2019 através da UNE. Mas acreditamos que a unidade serve a um propósito: é hierarquizada por uma política.

Ou seja, na nossa visão, a unidade é não só desejável, mas também necessária quando está a serviço da luta política. Hoje acreditamos que é necessária a unidade contra a extrema direita, na qual todos os setores dispostos a se mobilizar por prisão para Bolsonaro e contra a anistia devem se pôr em movimento. Mas também estaremos abertos à unidade aos setores que veem como importante debater sobre a necessidade de revogar o arcabouço fiscal, exatamente para termos uma política econômica que tenha capacidade de disputar contra o ultraliberalismo da extrema direita, que vem ganhando peso na sociedade através da frustração com as variações do neoliberalismo.

Apostamos e continuaremos apostando na unidade dos que lutam. É nesse sentido que não acreditamos que somente agitar a unidade como forma de evitar debater sobre qual programa devemos defender é suficiente. Inclusive, a artificialidade desse discurso se expressou no próprio CONEB: com a defesa de conjuntura em comum entre setores que criticavam diretamente o arcabouço fiscal com outros que defendiam e, inclusive, impediram uma moção da entidade sobre o tema, como também fizeram durante toda a gestão da UNE.

Uma unidade estética ou somente por cargos, na nossa opinião, pouco ajuda a luta a avançar. Achamos importante, por exemplo, a iniciativa do plebiscito popular sobre a escala 6×1, mas essa iniciativa, a principal reforçada pelo CONEB, só está prevista para setembro. Nossa perspectiva é não ter iniciativas sobre o tema até lá? Além disso, propusemos que a UNE fizesse nas universidades um plebiscito também sobre o arcabouço fiscal, o que foi vetado pela majoritária da entidade. Devemos então, em nome da unidade, não ter nenhum debate sobre o tema mais central para o ensino superior em todo 2025?

Ou seja, acreditamos que o movimento estudantil precisa estar, em primeiro lugar, disposto a ser um incentivador dos estudantes a utilizar a luta como método para enfrentar a extrema direita, mas também a lógica neoliberal que permite sua reprodução. É a partir desses desafios, que estamos dispostos a construir qualquer unidade possível.

É por isso que queremos fortalecer ainda mais um sentido em comum das forças independentes de esquerda da UNE. Esse é o propósito da Oposição de Esquerda da UNE. Espertamente, em seu texto, as companheiras do Afronte perguntam se “a tarefa da esquerda é ser oposição à UNE”. Temos certeza que sabem que nossa resposta é que não. Nunca fomos o setor que agitou a construção de uma entidade paralela ou que questionou a existência da entidade em si. Inclusive valorizamos a sua existência pela capacidade de produzir lutas unitárias no movimento, como vimos no Tsunami da Educação. Mas acreditamos que a unidade que proporciona a entidade precisa permitir uma pluralidade de ideias e que possa caber aqueles que não tem seu teto político na política conciliatória de sua direção majoritária.

Para que serve hoje a Juventude Sem Medo?

O que não temos certeza, é o propósito, nesse momento, de uma polêmica destinada à existência da oposição de esquerda. O Afronte hoje não faz parte da majoritária da UNE, agita o que considera um terceiro campo dito como a “Juventude Sem Medo”. Em todos os últimos congressos e conselhos da UNE, propusemos resoluções e chapas unitárias com esse setor, em sua maior parte, fomos nós que recebemos a negativa da possibilidade de uma unidade.

Aproveitamos a polêmica também para questionar: qual a perspectiva que o Afronte tem para a Juventude Sem Medo no próximo período? Tivemos chapas em unidade em diversas universidades pelo Brasil, como na USP, UFC e UFMG. Na maioria das universidades, a necessidade de diferenciação com a majoritária foi considerada normal por todos os setores.

Porém, após ingressar no DCE da UFRGS em apoio à chapa da UJS e do PT, os companheiros do Afronte RS afirmaram, em uma publicação no portal Sul21 que “com a vitória nas eleições do DCE da UFRGS, é possível afirmar que iniciamos os primeiros passos para a formação de um novo campo político que será amplo, diverso, coeso e coerente com as realidades do nosso tempo“ e que “a unidade consolidada na nova gestão do DCE é uma amostra daquilo que sonhamos pro nosso país.”

Ou seja, já é expresso abertamente, mesmo que por uma regional, a vontade de ingresso no campo político da majoritária. Basta nos perguntar se esse é o propósito da polêmica com a Oposição de Esquerda e o motivo pelo reforço da unidade de forma tão abstrata, como tem feito o Afronte em seus textos.

De nossa parte, seguimos dispostos e abertos a qualquer unidade que incentive e amplie a luta dos estudantes. Acreditamos que é um período, de fato, que necessita de reinvenção e reestruturação da esquerda brasileira. Mas entendemos que isso não pode ser feito cometendo os mesmos erros do passado: a política de conciliação de classe, a permissividade com o projeto econômico neoliberal, a confusão da esquerda com o sistema político tradicional brasileiro e o abandono de nosso programa de ruptura em busca de uma unidade em abstrato. O caminho que apresentamos em nosso manifesto, e que reforçamos aqui, se coloca na busca pela construção de uma unidade daqueles dispostos a lutar para derrotar a extrema direita disputando a sociedade, por meio um projeto à esquerda, que enfrente as bases que possibilitam seu surgimento.


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