“Vale o Escrito – A Guerra do Jogo do Bicho”
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“Vale o Escrito – A Guerra do Jogo do Bicho”

Uma crítica sobre a recente série que retrata a história do jogo do bicho no Rio de Janeiro

Gustavo Rego 4 fev 2025, 10:43

A máfia do jogo do bicho – narrada pela série – é uma expressão muito sintética de boa parte dos fundamentos da estrutura social e política brasileira que lemos nos trabalhos do pensamento social brasileiro. Elites que entregam favores e auxílios (nunca direitos) eventuais à população pobre em troca de apoio, fazendo-a de escudo humano, ao mesmo tempo em que exercem controle violento sobre ela. Estado que é menos uma entidade de defesa do bem público e mais um instrumento de repressão e defesa nas mãos dessas elites. Patriarcas que usam as mulheres como objeto de ostentação ou de aproximação a famílias importantes, desfazendo-se delas sem dar justificativas quando não interessam mais. Expectativa de ascensão social por meio de um “milagre” (a sorte no jogo, a “fezinha”) e não por meio do trabalho metódico e contínuo. A lei enquanto garantia da liberdade e igualdade de todos os indivíduos como mera fachada em uma terra em que cidadania e bem público não existem, mas impera a lei do mais forte (daí a ironia do título da série).

Como não poderia ser diferente, todas essas características de longa duração no Brasil foram reforçadas pela Ditadura Militar, já que o autoritarismo protege a arbitrariedade, a violação de direitos, a ausência de transparência, etc. É muito revelador que um dos principais bicheiros, o responsável por demarcar os territórios das famílias (numa espécie de Tratado de Vestfália da contravenção), era torturador do DOI-CODI. Não é por acaso que uma narrativa que começa com personagens, cenários e eventos divertidos e até bucólicos (o zoológico, a Dercy Gonçalves que sabia os números de todos os animais, etc.) termina com milícias, Escritório do Crime, família Bolsonaro e até o assassinato de Marielle Franco. No cotidiano do telejornalismo, em que predomina a narrativa curta e fragmentada, perdemos essa noção de totalidade. 

Por isso, é de se celebrar essa iniciativa da Globo. Mas talvez ela caia numa certa romantização do crime, principalmente pela opção de ocupar boa parte do tempo de tela com depoimentos dos próprios criminosos, o que, a princípio, faria o espectador ter empatia por eles (ainda que precise ser muito ingênuo para isso). Ou, pelo menos, numa exploração como entretenimento de um drama real que ainda destrói muitas vidas – o dilema ético de toda obra de “true crime”. É curioso como a própria série deixa escapar um sinal do que seria isso. O filho de um dos bicheiros (um rapaz de vinte poucos anos que pretende herdar o lugar do pai no crime) é fã de filmes de máfia, possui vários quadros de personagens mafiosos da indústria cultural americana, como Tony Montana (Scarface), Don Corleone (O Poderoso Chefão) e Tony Soprano (Família Soprano). Se os criadores desses produtos culturais imaginavam estar fazendo um retrato problematizado do crime, o “príncipe do jogo do bicho” deu razão aos críticos que afirmaram que, na ânsia da busca pelo entretenimento, essas obras teriam promovido a glamourização do crime, já que ele vê esses mafiosos da ficção como exemplo a ser seguido. O que será que ele achou de Vale o Escrito? É bom lembrar que a mesma contradição cercou o filme Tropa de Elite, que é citado diretamente várias vezes.

Faltou falar do Carnaval e do samba. Os bicheiros elevaram os investimentos no desfile da Sapucaí ao nível do espetáculo. Aliás, com a parceria da própria Sra. Rede Globo, o que a própria série não esconde ao incluir depoimentos de Boni (sinceridade ou cinismo?). Seria essa uma face contraditória da máfia do bicho? Afinal, seriam eles promotores da cultura popular? Cabe resgatar um pouco da história do Carnaval.

Até a Era Vargas, o Carnaval (como muitas expressões da cultura afro-brasileira) era clandestino. No contexto de emergência da indústria cultural com a invenção do rádio e a popularização do cinema, Vargas vê nesses elementos da cultura popular um meio para criar uma identidade nacional que servia ao propósito de um regime nacionalista. Assim, ele “oficializa” muitas dessas expressões culturais – isto é, as legaliza e até as promove, mas dentro de certos limites. Daí surgem os sambas com letras que valorizam o trabalho ao invés da malandragem. Da mesma forma, o Carnaval passa a ser promovido, mas dentro de um espaço pré-determinado, organizado por agremiações reconhecidas e na forma de um desfile, à semelhança de uma parada militar. Assim surgia o desfile das escolas de samba da Sapucaí. Anos mais tarde, os bicheiros dão um golpe na organização autônoma dessas escolas, criam um abismo de financiamento entre elas e assumem a hegemonia do espetáculo. Ou seja, o que ainda havia de espontaneidade popular no evento é tolhida pela violência e o dinheiro da máfia. Inegavelmente, o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro é maravilhoso (aliás, como também são os supracitados filmes e séries de máfia, afinal, para servir como mercadoria para o consumo de massas é preciso entreter), mas em que medida pode ser considerado “cultura popular”?

Apesar dessas contradições, é evidente: Vale o Escrito é um grande serviço para aqueles que querem conhecer melhor o Brasil.


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