Inflação de alimentos: o que a sua despensa tem a ver com políticas públicas?
Diante da dificuldade do governo Lula em endereçar discussões grandes e estruturais sobre desigualdade e produção, economistas não veem perspectiva de mudança no ritmo de alta de itens básicos
Foto: Agência Senado
Via O Joio e o Trigo
Em suas andanças e discursos de campanha em 2022, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva fez uma promessa com a qual poderia agradar, de uma só vez, aos pobres e ao agronegócio: “O povo vai voltar a comer picanha outra vez.” A declaração voltou à tona diante da crescente inflação de alimentos. O motivo é bem literal, já que a carne bovina foi o item que mais onerou o carrinho de feira dos brasileiros nos últimos meses.
A alta alcançou 20,84% em 2024, segundo o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Este é o maior aumento desde 2019, quando o preço dos cortes de carne bovina subiu 32,4%. Em 2023, o preço das carnes chegou a recuar 9,37%. A disparada, a partir de setembro de 2024, ocorreu de forma tão intensa que levou ao fechamento do ano em um patamar elevado.
“Pensa que esqueci da cervejinha e da picanha? Não esqueci. Preço da carne já baixou, mas tem que baixar mais, muito mais. Ou baixa o preço da comida ou sobe o salário do povo. É a forma de permitir que ele tenha acesso às coisas”, afirmou o presidente em abril de 2024, durante um café da manhã com jornalistas no Palácio do Planalto.
A mensagem que fica é que o preço alto dos alimentos já era um problema naquela época, e não simplesmente fruto de desastres climáticos, como as enchentes no Rio Grande do Sul, que prejudicaram os cultivos de arroz, ou a alta do dólar, observada no segundo semestre. A moeda norte-americana chegou ao patamar recorde de R$ 6,30 em dezembro.
No início de fevereiro deste ano, em entrevista às rádios Metrópole e Sociedade, da Bahia, Lula perdeu o tom de seus antigos discursos, em que puxava para o governo a responsabilidade pelo controle da inflação. “Tenho dito sempre o seguinte nas reuniões que eu tenho feito: uma das coisas mais importantes para que a gente possa controlar o preço é o próprio povo. Se você vai no supermercado aí em Salvador e desconfia que tal produto está caro, você não compra. Se todo mundo tiver essa consciência e não comprar aquilo que ele acha que está caro, quem está vendendo vai ter que baixar para vender, porque senão vai estragar”, declarou.
A abordagem sugerida pelo presidente é, no mínimo, problemática. Em termos de políticas públicas, não se deveria delegar a solução da inflação à população. No caso específico da alimentação, soma-se o fato de que as pessoas não podem esperar um item básico de seu cardápio baixar de preço para comer. Ou será feita uma substituição por outro alimento, ou as famílias deixarão de consumir determinado grupo alimentício. Ambos os cenários criam brechas para a insegurança alimentar e nutricional.
Além da carne bovina, o café acelerou os índices de inflação de alimentos. Ainda em outubro, o Joio explicou o que estava acontecendo com a alta nos preços da bebida mais consumida nas casas brasileiras, depois da água. As mudanças no clima impactaram a produção mundial do grão, diminuindo a oferta. Com a alta demanda, os preços em dólar dispararam, e quem conseguiu colher teve a opção de vender a safra para o exterior. Isso pressionou o mercado interno, que precisou comprar mais caro dos próprios produtores brasileiros.
O preço do café moído acumulou alta de 39,6% em 2024, apontam dados do IPCA. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria do Café (Abic), o faturamento da indústria de café torrado alcançou R$ 36,82 bilhões, um aumento de 60,85% em relação a 2023. A associação aponta que a alta no faturamento está diretamente ligada ao disparo do preço do café na gôndola dos supermercados.
Ainda segundo a Abic, o preço do café deve continuar subindo pelo menos até a safra deste ano, que começa a ser colhida entre abril e maio. Em janeiro de 2025, o IBGE apontou um novo avanço na inflação do café moído, de 8,56%.
Economistas ouvidos pelo Joio apontam que não há expectativa de ações a curto prazo que possam ser tomadas pelo governo federal, além do aumento da taxa de juros estabelecida pelo Banco Central e o aumento do salário mínimo, que passou a R$ 1.518. Isso porque políticas como reestruturação dos estoques públicos de alimentos, gerenciados pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), não podem ser implementadas da noite para o dia, pois dependem da baixa nos preços para que a compra seja feita.
De acordo com o balanço divulgado pela Conab em janeiro, a maior parte dos estoques públicos está zerada. Esse desmonte começou no governo de Michel Temer, e foi agravado na gestão passada com o fechamento de 27 armazéns em que se guardavam grãos. O café, por exemplo, deixou de ser comprado a partir de 2016, diminuindo o estoque até zerar em fevereiro de 2023.
Já falamos sobre o fim dos estoques públicos no Joio, em 2019. É interessante retomar a discussão pelas duas principais finalidades das compras públicas de alimentos. A primeira é fazer doações para populações ameaçadas pela fome, em tempos de escassez e ausência de outros mecanismos. A segunda é formar estoques públicos estratégicos, que servem para garantir o abastecimento de pequenos agricultores e para regular os preços de alimentos básicos quando há picos de inflação.
Para Claudio Santos, coordenador do grupo da Conjuntura do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os estoques não resolvem os efeitos da inflação, mas ajudam a mitigar. “É quase uma política social, que você pode fazer para garantir um preço menor para as pessoas mais vulneráveis, que sofrem muito nesses períodos”, destaca.
“Quando a gente fala de estoques reguladores, desse tipo de intervenção, isso vai envolver um conflito direto com a política de austeridade fiscal”, diz o economista David Deccache, diretor do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD). “Você tem que ter orçamento para isso. A mesma coisa para o fomento significativo, relevante, transformador, para a agricultura familiar. Envolve ter crédito de banco público. Tem que ter muita grana e muito apoio porque são séculos de atraso.”
A aposta do governo federal para conter o ciclo de inflação de alimentos é em um alinhamento entre estabilização do dólar, valorização do salário mínimo e aumento da safra. A expectativa é que o país produza 322,47 milhões de toneladas em 2025. Mas a maior parte dessa safra é de soja e milho, que na maioria não são utilizados diretamente para consumo humano. Sem uma política de proteção ao mercado interno e sem planos de incentivo à produção de alimentos da agricultura familiar, para além das commodities, o Brasil pode continuar vivendo ciclos de inflação à mesa. “A saída é pensar em como podemos prover internamente um quantitativo mínimo para que a gente não sofra essa variabilidade tão elevada. A variabilidade sempre vai acontecer, mas demora muito para a população mudar hábitos alimentares. Tem produtos específicos que estão tradicionalmente dentro da nossa cesta de consumo. Então, pelo lado da demanda, dificilmente a gente tem uma mudança muito abrupta e rápida no consumo”, avalia Aniela Carrara, professora do departamento de Economia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Interactive content by Flourish
Um fantasma onipresente
Não é de hoje que o preço dos alimentos sobe acima da inflação no Brasil. Em 2020, a pandemia foi taxada como a grande responsável pela alta nos preços, com redes de supermercados ampliando sua margem de lucro. Mas quem viveu o fim dos anos 1980 e início dos anos 1990 deve lembrar que toda ida ao supermercado era acompanhada de sustos.
A hiperinflação chegou a 2.000% no início da década de 1990 e os preços dos alimentos eram reajustados diariamente nas gôndolas, às vezes mais de uma vez por dia. O Plano Real, que começou a ser implementado pelo governo Itamar Franco, possibilitou o controle da hiperinflação. O problema é que sempre que há uma nova crise econômica, desvalorização da moeda com altas do dólar ou quebras de safra, a população volta a sentir a inflação de alimentos pesar no bolso.
De acordo com o IPCA, o grupo alimentação e bebida tem um peso mensal de 21,69% no custo de vida da população que recebe até 40 salários mínimos. A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018 apontou que, entre as famílias que recebem até dois salários mínimos, o gasto com alimentação corresponde a 22% da renda. Já entre as famílias com rendimentos superiores a 25 salários mínimos, esse gasto representa apenas 7,6% do orçamento familiar.
Em 2024, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que abrange as famílias que recebem de um a cinco salários mínimos, fechou em alta de 4,77%, puxado, principalmente, pelo grupo Alimentação e Bebidas, que acumulou alta de 7,6% em 12 meses. Já o IPCA, que se baseia no rendimento de 1 a 40 salários mínimos, abrange também as classes média e alta. Nesse caso, o aumento foi de 4,71% em um ano.
Observa-se, portanto, que a inflação tem maior impacto na faixa de renda mais baixa da população. “O problema é que as famílias mais pobres não têm defesa do processo inflacionário, elas não têm dinheiro investido e não conseguem proteger o seu dinheiro da inflação. Elas praticamente recebem seus salários e consomem o que elas precisam para aquele mês”, pontua André Braz, economista do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-IBRE).
Ele explica que, se o salário não é corrigido pela inflação dos alimentos, e sim pela inflação média, e temos uma alta no preço dos alimentos muito acima da inflação média, as famílias são obrigadas a levar um conjunto menor de alimentos para casa. A preocupação se volta, então, para a segurança alimentar.
“Quando falamos de inflação do preço dos alimentos, estamos falando, em última instância, da questão de segurança alimentar. Porque um dos níveis iniciais é quando eu começo a fazer a troca dos alimentos. Então, não deixei de consumir, por si só, determinado alimento, mas eu troquei. Eu troquei ali uma fruta, troquei um alimento que é mais nutritivo, por algo industrializado. Isso já é considerado insegurança alimentar”, afirma Aniela Carrara.
O artigo 7º da Constituição Federal estabelece que o salário mínimo deve ser suficiente para suprir as despesas de um trabalhador e da família dele com alimentação, moradia, saúde, educação, vestuário, higiene, transporte, lazer e previdência. No entanto, apesar da retomada da valorização do salário mínimo desde 2023, o poder de compra não acompanha essa alta. Segundo o Dieese, considerando a cesta básica de São Paulo, que em janeiro estava em R$ 851,82, o salário mínimo necessário para a manutenção de uma família de quatro pessoas deveria ter sido de R$ 7.156,15. Ou seja, 4,7 vezes o mínimo de R$ 1.518.
Apesar de trazer a redistribuição de renda e a valorização do salário mínimo como bandeiras estruturantes em seus três mandatos, o governo Lula se depara agora com as consequências do aumento nos lucros do agronegócio. “Ficamos em uma dinâmica em que, apesar de haver medidas de recomposição de renda, a percepção na vida das pessoas vai ser menor, porque elas estão perdendo um pouco desse ganho de renda no aumento de preços”, destaca Lilian Nogueira Rolim, professora do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Agro é tudo, menos popular O crescente incentivo ao agronegócio, especialmente voltado à exportação, vem reduzindo as áreas dedicadas ao cultivo de alimentos, como feijão e leguminosas. Com o preço das commodities em alta, os produtores migram de cultivo, para vender a preços melhores no mercado internacional. A falta de políticas públicas perenes de estímulo à produção de alimentos, como ampliar o acesso ao crédito e a mercados para a agricultura familiar, empurra o pequeno produtor para o arrendamento de suas terras, que ora viram pasto, ora viram plantações de soja.
“Talvez seja o momento da gente pensar pelo lado da produção, em ações que façam com que o alimento não falte, não fique caro no Brasil. De termos a coragem de dizer ‘olha, interessa para nós todo o desenvolvimento tecnológico da agricultura, mas interessa também que se consiga isso com preservação ambiental e com a segurança alimentar da população’”, defende o economista José Giacomo Baccarin, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e um dos fundadores do Instituto Fome Zero (IFZ).
Movimentos sociais e entidades da sociedade civil, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a Articulação Nacional da Agroecologia (ANA) e o Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), têm cobrado medidas de incentivo à agricultura familiar e à alimentação de base agroecológica, como o aumento do número de assentamentos para reforma agrária, acesso a mercados, combate ao uso de agrotóxicos e reajuste dos programas de Aquisição de Alimentos (PAA) e de Alimentação Escolar (Pnae). Essas são medidas que poderiam estimular a ocupação de terras para produção de alimentos no país, renovando o interesse dos produtores em manter seus cultivos.
Em outubro de 2024, o governo federal lançou o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar “Alimento no Prato” (Planaab) e o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), em uma sinalização de que as agendas de produção e distribuição de alimentos seriam prioridades da segunda metade do mandato.
“A nossa ideia é tirar todas as pessoas da situação de fome. A gente é capaz de produzir muito mais alimento do que a gente consome, mas muito se perde. Podemos dizer que existe seca ou excesso de chuva. Mas a única coisa que justifica a fome é a irresponsabilidade de quem governa”, afirmou o presidente Lula na ocasião. Os movimentos sociais questionam, portanto, a contradição de não haver orçamento robusto para esses planos, ao passo que há incentivos à produção de commodities para exportação, como é o caso do Plano Safra.
A área de plantio de soja no Brasil é 50 vezes maior do que a de feijão. Em 2025, a Conab estima que 47,3 milhões de hectares serão destinados à cultura da soja, contra 892,3 mil hectares dedicados ao feijão. Esse cenário aponta para uma produção de 166,3 milhões de toneladas de soja, um aumento de 18,6 milhões de toneladas em relação ao que foi produzido na safra anterior.
Já a produção de carne bovina atingiu 10,9 milhões de toneladas em 2024, a maior já registrada pela Conab. As exportações cresceram em relação a 2023, saindo de 3,03 milhões de toneladas para 3,78 milhões de toneladas. A China continua sendo o principal comprador da carne brasileira, com uma fatia de 46% do montante exportado. A projeção do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) é de aumento de 10,2% na produção até 2034.
Há luz no fim da feira?
O presidente Lula tem convocado reuniões periódicas com ministros e a Conab para buscar soluções que estejam alinhadas às práticas convencionais de mercado. Isso significa que nenhuma medida “fora da curva” será tomada, como congelamento de preços ou tabelamento.
Além das falhas na comunicação, com falas equivocadas vindo de vários lados – inclusive do próprio Lula –, o governo parece ter dificuldades em estabelecer canais de negociação com a indústria pecuária. Como o volume de abates deve ser menor este ano, a tendência é que o preço da carne continue alto, especialmente se os produtores se concentrarem em atender à demanda internacional. E mesmo com a inclusão das carnes entre os itens da cesta básica da reforma tributária, agora isenta de impostos federais e, a partir de 2027, do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) estadual.
Em relação à recomposição dos estoques públicos, a Conab informou ao Joio que a definição do governo é de dar preferência à agricultura familiar, mas que não ficará restrito a isso. No entanto, a companhia precisa aguardar as decisões ministeriais sobre o que deve ser estocado e de quanto será o orçamento para realizar as aquisições. O Congresso Nacional atrasou a votação do orçamento federal para 2025, que só deve acontecer após o carnaval.
A previsão da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda é de manutenção da inflação, com um IPCA de 4,8%, similar ao observado em 2024. A estimativa da pasta é de que a inflação de alimentos diminua até o fim do ano, devido à expectativa de safras recorde. O que leva a crer que a estrada pela frente ainda deve ser longa e tortuosa.
“A gente tem que desincentivar o agronegócio, seja por conta da destruição ambiental que causa, seja por conta do movimento especulativo internacional ao qual ele está atrelado e que gera uma dinâmica em que os preços do que a gente come flutuam de acordo com a especulação internacional, com o que está acontecendo na Bolsa de Valores”, avalia Deccache. “São decisões políticas, muito mais do que técnicas. A fórmula a gente sabe desde sempre.”