Intimismo à sombra do poder
O Estado, a captura da esquerda reformista e a consolidação da extrema direita
Imagem: Composição VII. (Wassily Kandinsky, 1913)
Nos últimos dias, temos assistido de forma agoniante a um governo desesperado, vendo seus índices de popularidade caírem de maneira consistente ao mesmo tempo em que os preços dos alimentos aumentam e a desconfiança da classe trabalhadora cresce. Essa desconfiança se intensifica diante da incapacidade do governo de promover mudanças estruturais na dinâmica política do país.
Assim como Francisco de Oliveira descreveu em O Ornitorrinco1 (2003), o governo atual pouco difere daquele que se adaptou à lógica conservadora, baseada em acordos com a classe dominante e na política tradicional do Congresso. Atualmente, essa dinâmica se manifesta em uma série de alianças com setores conservadores e reacionários, que, por um lado, impõem um teto de gastos sociais e, por outro, promovem uma despesa desenfreada com emendas parlamentares. Esse processo consolidou um modelo que impacta amplamente a população, aprofundando desigualdades e restringindo qualquer possibilidade de avanço social.
Em vez de enfrentar o conflito com esses setores e promover mudanças concretas que melhorem a vida da população, o governo opta por remediar a tragédia da desigualdade social no país, sem implementar reformas estruturais, como uma reforma agrária popular ou uma reforma urbana. Assim, a prioridade parece ser a manutenção da estrutura de acumulação da classe dominante, sustentada pelos mecanismos de distribuição económica e política do Estado.
Partidos de esquerda, como o PSOL, poderiam desempenhar um papel fundamental ao questionar essa dinâmica governamental e cobrar que o programa eleito em 2022 seja implementado. No entanto, o que se observa é uma adaptação acelerada, muitas vezes às custas do enfraquecimento da ala mais radical do partido, como no caso amplamente divulgado na impressa do economista David Deccache. Paralelamente, há uma postura de complacência com o governo, enquanto o partido busca expandir sua participação na máquina pública com ministérios e cargos.
Esse tipo de movimento não é novidade. Ao longo da história, em especial no Brasil, marcado por sua herança escravocrata e um processo histórico de achatamento do mercado de trabalho e da massa salarial, a cooptação política se tornou uma prática sistemática. Para compreender melhor esse fenômeno, é essencial revisitar as reflexões de um importante intelectual brasileiro e fundador do PSOL: Carlos Nelson Coutinho.
Intimismo à sobra do poder e a esquerda no Brasil
No Brasil, a dinâmica social e econômica difere daquela observada nos países ocidentais tradicionais. Aqui, o achatamento da massa salarial faz com que intelectuais, setores médios e setores populares enxerguem a ascensão social e a garantia de melhores condições de vida como únicas alternativas viáveis. Esse fenômeno leva a um processo de adaptação que Gramsci chama de “transformismo”, no qual a manutenção de determinados ganhos assegura uma qualidade de vida mínima. Carlos Nelson Coutinho analisa esse processo de forma profunda, utilizando a ideia de “intimismo à sombra do poder”, inspirada nas obras de Thomas Mann e György Lukács.
A captura dos intelectuais e dirigentes para a política de manutenção do status quo estabelecido pela burguesia se dá a partir do Estado, conforme analisado por Coutinho, e pode ser compreendida à luz do conceito de “intimismo à sombra do poder” presente na obra de Thomas Mann. Ambos os autores exploram como os intelectuais, que, a partir da obra de Gramsci, são vistos como dirigentes políticos e não apenas acadêmicos ou artistas, oscilam entre a crítica e a acomodação diante das estruturas de poder, muitas vezes sendo absorvidos por elas. Essa tensão se manifesta tanto na cultura alemã retratada por Mann quanto na formação da intelectualidade brasileira analisada por Coutinho.
No Brasil, Coutinho argumenta que a esquerda e os dirigentes foram historicamente cooptados pela burguesia por meio de uma “via prussiana” ou “revolução passiva”, na qual as mudanças políticas e sociais ocorreram de maneira controlada pelas elites, sem a participação efetiva das classes populares. Isso resultou em uma intelectualidade distante das massas, desenvolvida em um ambiente de cultura “ornamental”, ou seja, esteticamente refinada, mas politicamente inofensiva. Esse processo impediu a formação de uma cultura verdadeiramente nacional-popular, em que os intelectuais estivessem organicamente ligados à sociedade civil e às classes trabalhadoras.
Essa separação entre os intelectuais e a realidade social encontra um paralelo na obra de Thomas Mann, especialmente em A Montanha Mágica e Doutor Fausto. Em A Montanha Mágica, o protagonista Hans Castorp se isola em um sanatório, onde se entrega a longos debates filosóficos enquanto o mundo real se encaminha para a Primeira Guerra Mundial. Essa alienação simboliza o distanciamento das burocracias e dirigentes de esquerda da política concreta, um fenômeno que também ocorre no Brasil, segundo Coutinho, onde a cultura muitas vezes se desenvolveu sem conexão direta com a luta social.
Em Doutor Fausto, Mann apresenta Adrian Leverkühn, um compositor que faz um pacto faustiano, trocando sua humanidade pela genialidade artística. Essa trajetória é uma alegoria para a corrupção da cultura alemã diante da ascensão do nazismo, demonstrando como os intelectuais podem ser seduzidos pelo poder e, mesmo sem aderir explicitamente a ele, acabam sendo cúmplices de sua ascensão. Coutinho identifica uma dinâmica semelhante na história brasileira: os dirigentes, em muitos momentos, não se opuseram frontalmente ao poder, mas encontraram formas de coexistir com ele, seja por meio de concessões ideológicas, seja pela adaptação aos mecanismos institucionais.
É importante destacar que esses mecanismos institucionais funcionam como formas de assessoria junto a governos e parlamentares, além da destinação de emendas e verbas para ONGs e outros dispositivos. Por um custo relativamente baixo, esses mecanismos permitem domesticar dirigentes de esquerda e intelectuais orgânicos que, antes dos vinculados à classe trabalhadora, passam por um processo de transformação e adaptação. Dessa forma, acabam sendo assimilados ao status quo da burguesia e à lógica de funcionamento do Estado.
Essa postura de acomodação se reflete no que Lukács chamou de “apologia indireta do poder”. Trata-se de uma produção cultural que, mesmo sem defender abertamente a ordem vigente, evita desafiá-la de maneira contundente. No Brasil, Carlos Nelson Coutinho identifica essa apologia indireta em diversas manifestações culturais que, embora críticas em certo nível, não rompem verdadeiramente com a estrutura de dominação.
Podemos observar essas características em textos, manifestos, abaixo-assinados ou notas públicas que, apesar de apresentarem um tom relativamente crítico, no fundo servem apenas para marcar posição. No momento seguinte, porém, acabam compondo com forças que sustentam a lógica da acumulação e a ordem vigente.
Outro exemplo são os intelectuais que antes estavam alinhados às correntes de esquerda e que, agora, adotam críticas moderadas não para confrontar o governo do PT, mas como uma estratégia de aproximação. Esse movimento visa, sobretudo, conquistar prestígio, ampliar o acesso aos canais de divulgação e garantir mais oportunidades de exposição pública.
Além disso, essa movimentação se torna evidente na defesa constante da necessidade de negociação permanente com o Congresso e com o mercado, apresentada como a única alternativa para atender aos anseios populares. Esse discurso, no entanto, transfere a responsabilidade pela falta de mudanças estruturais para as decisões eleitorais tomadas pelo povo nos últimos anos. Assim, a única solução proposta para enfrentar o fascismo acaba sendo a defesa do regime vigente — uma ironia, pois é justamente esse mesmo regime que possibilita o crescimento contínuo da extrema direita no país.
Mann, por sua vez, usa sua obra serve como um alerta para os perigos da alienação e da cooptação pelo poder. A Alemanha retratada em Doutor Fausto mostra como uma cultura refinada e sofisticada pode se tornar cúmplice de um regime autoritário se não for capaz de oferecer resistência ativa. Coutinho faz uma crítica semelhante à intelectualidade brasileira, que, em muitos momentos, preferiu a conciliação à ruptura, mantendo-se à sombra do poder em vez de enfrentá-lo.
É importante ressaltar que, para Coutinho, o processo de transformismo e adaptação não é algo inerente, mas ocorre ao longo do tempo. Ele observou esse fenômeno na fundação do PSOL: os intelectuais orgânicos que organizaram as greves no final da década de 1970 e foram protagonistas no processo de redemocratização do Brasil, especialmente no movimento operário do ABC paulista, acabaram, ao longo dos anos, se adaptando e se afastando dos anseios populares. Esse afastamento resultou em uma relação cada vez mais oportunista com o povo, priorizando a manutenção de aparelhos de repasse do Estado, seja por meio do próprio partido — financiado pelo Estado —, seja por meio de mandatos e prefeituras. Esse processo atingiu seu ápice com a conquista do governo federal.
O mais preocupante, nesse sentido, é a velocidade com que o PSOL busca trilhar o mesmo caminho. Isso se evidencia em figuras de grande referência no país, como Guilherme Boulos, cuja trajetória também tem origem em um movimento popular de moradia. No entanto, de forma acelerada, ele se adapta e passa a ter como eixo central, sob a justificativa de enfrentar o fascismo, a aceitação dentro de um governo que tem como princípio fundamental a conciliação com setores conservadores do Congresso e do mercado. Essa estratégia ocorre mesmo às custas do enfraquecimento de bases importantes, como o funcionalismo público e a militância no interior do Nordeste, além de um afastamento sistemático da classe.
E agora? Assimilação ou enfrentamento
Qualquer estratégia para conter o avanço do fascismo, mesmo quando remodelado em figuras como Tarcísio de Freitas, Ronaldo Caiado ou impulsionado por ícones populares como Gusttavo Lima, exige, necessariamente, a construção de um projeto alternativo de esquerda. Um projeto que não esteja refém das elites tradicionais, mas que coloque no centro um modelo verdadeiramente transformador e nacional-popular, baseado em alianças com diversos setores da classe trabalhadora.
Isso significa cobrar do governo a implementação do programa eleito em 2022, sem ceder à tentação de compor com os setores golpistas que fizeram parte do governo Bolsonaro. É necessário avançar com propostas concretas que beneficiem a maioria da população, como a tributação das grandes fortunas, uma reforma tributária para reduzir as desigualdades, o fortalecimento da agricultura familiar para diminuir o preço dos alimentos, a regulamentação das big techs e a valorização dos profissionais da educação e da saúde. Essas pautas já são defendidas pela esquerda há tempos, mas precisam ser impulsionadas com ainda mais força.
Permanecer refém de um governo que segue os interesses da classe dominante é, mais uma vez, entregar o país à extrema direita. O risco não está apenas na oposição declarada, mas também na falta de ousadia em construir alternativas reais para o povo.
Esse processo de adaptação e transformismo, em que intelectuais e figuras políticas começaram a se afastar das estruturas do PT, foi um dos principais gatilhos para o surgimento do PSOL. Pensadores como Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Francisco de Oliveira, além de políticos como Luciana Genro, Milton Temer, Edilson Silva e Heloisa Helena, perceberam que o partido estava se distanciando de seus ideais originais, fazendo concessões ao sistema vigente, muitas vezes vistas como traições aos princípios históricos da esquerda.
O afastamento desses intelectuais e líderes políticos, ocorrido já em 2003, refletiu uma crescente insatisfação com as mudanças na política interna do PT e seu alinhamento com práticas políticas que pareciam contraditórias aos seus projetos de transformação social. Esse processo de “adaptação” ao sistema tradicional e as concessões feitas em nome da governabilidade foram vistos como uma traição aos valores revolucionários e às promessas de um projeto verdadeiramente transformador.
Diante desse cenário, o PSOL surgiu como uma alternativa política radical, rompendo com a acomodação que seus fundadores viam no PT. O partido foi constituído como uma resposta à adaptação do PT ao sistema político tradicional, defendendo propostas mais arrojadas e antissistêmicas, com um forte caráter de ruptura com o status quo.
No entanto, ao longo dos anos, a direção do PSOL passou a adotar posturas que podem ser interpretadas como uma aproximação do modelo político tradicional que antes criticava. Esse movimento, à primeira vista contraditório, pode ser visto como uma tentativa de ganhar espaço dentro do sistema institucional, o que contrasta com o projeto original do partido. Esse distanciamento de suas origens provoca uma reflexão sobre os limites da transformação política quando se busca, ao mesmo tempo, atuar dentro das estruturas de poder estabelecidas.
O que era uma crítica radical e forte ao sistema político torna-se então, de certa forma, um reflexo irônico de um processo de adaptação que o PSOL inicialmente se opôs. Isso gera uma contradição interna no partido, criando uma tensão entre grupos que defendem a necessidade de manter o caráter radical da legenda e a atual direção que busca maior espaço dentro da estrutura institucional.
Diante desse cenário, o desafio da esquerda no Brasil é romper com a tradição de passividade, que garante suas benesses pela adaptação ao Estado, e assumir um papel ativo na construção de uma cultura crítica e democrática. A questão central que emerge dessa reflexão é: os dirigentes brasileiros aprenderam essa lição ou continuam, como Hans Castorp e Adrian Leverkühn, à sombra do poder, limitados ao seu próprio intimismo?
Nota
- Francisco de Oliveira, em O Ornitorrinco , analisa o processo de transformismo do PT ao longo dos anos, destacando como o seu ápice se deu na gestão dos fundos de pensão. Nesse contexto, o partido teria se transformado em um sócio minoritário da elite rentista, afastando-se de sua proposta original de transformação social. ↩︎
Referência Bibliográfica
COUTINHO, Caros Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas. 4ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista / O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial. Acesso em: 16 mar. 2025., 2003