Reconhecimento é o mínimo! Matrizes africanas e o SUS
Contra o racismo na abordagem das práticas complementares do SUS
Foto: Emancipa Axé/Reprodução
Chá, folhas, banhos, incensos, dança, comunidade, organização de vida e social. Do que estamos falando? Esses são espaços tradicionais de matrizes africanas, aldeias e quilombos. Lugares que guardam sabedorias e ciências milenares, sistematicamente negadas pelo Estado brasileiro ou, quando reconhecidas, são isoladas em pastas secundárias ou limitadas ao campo religioso, o que não contempla sua complexidade e importância.
Na 17ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em julho de 2023, os terreiros foram reconhecidos como espaços de acolhimento e combate ao racismo, com potencial para atuar como práticas complementares ao SUS. Essa conferência destacou a necessidade urgente de políticas públicas voltadas a esses espaços. No entanto, suas recomendações não têm força normativa. A implementação de qualquer iniciativa depende das decisões do Ministério da Saúde e das secretarias estaduais e municipais.
Diante da pressão das bancadas evangélicas e da desinformação disseminada nas redes sociais, o governo rapidamente se posicionou para afirmar que os terreiros não fazem parte do SUS. A polêmica decorre de uma distorção da Resolução nº 715/2023 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que apenas propõe diretrizes para políticas públicas. Mas precisamos perguntar: por que não poderia ser aplicado?
Para quem pertence a comunidades tradicionais, é natural compreender os terreiros como espaços de saúde e bem-estar. Não estamos falando apenas dos ritos ou das giras, mas das práticas como os banhos, os chás, os incensos, unguentos e a rede de acolhimento comunitário, que existem para suprir lacunas deixadas pelo Estado. Os terreiros, os quilombos e as aldeias fazem o que os serviços públicos frequentemente negligenciam: acolhem, tratam, escutam, orientam e protegem, especialmente populações marginalizadas como mães solos, LGBTQIAPN+, pessoas negras e indígenas.
Queremos substituir hospitais, postos de saúde ou CRAS? Não. Queremos que esses espaços funcionem em sua plenitude, com atendimento digno e integral. Queremos que nossos terreiros possam atuar como espaços complementares, contribuindo para a saúde e o bem-estar coletivo, sem discriminação. Queremos que campanhas de vacinação, combate à dengue e à depressão cheguem aos nossos territórios, assim como chegam às igrejas e templos cristãos. Queremos que um Pai de Santo não seja barrado em um hospital por sua indumentária, ou que uma liderança indígena possa cuidar dos seus sem precisar se moldar aos padrões da medicina ocidental. Integrar as comunidades tradicionais ao SUS significa combater o racismo institucional e a desinformação.
Mas e a laicidade do Estado?
Ora, se o SUS fosse de fato laico, as clínicas terapêuticas evangélicas não receberiam tanto investimento. ou teria tantas capelas em hospitais, salas reservadas para lideranças cristãs e a livre circulação da Bíblia nos serviços de saúde amplamente aceitos, mas as práticas de cura e acolhimento dos povos tradicionais seguem marginalizadas.
A diferença entre um chá de benzedeira e a acupuntura, por exemplo, não é científica, é política. A medicina chinesa é amplamente incorporada como práticas complementares de saúde , mas a sabedoria ancestral dos povos de terreiro, quilombolas e indígenas é relegada ao silenciamento e à criminalização.
A revogação da Resolução Conjunta SMAC/SMS nº 02, assinada por Eduardo Paes na cidade do Rio de Janeiro, é um enorme retrocesso. Essa medida negou o reconhecimento de práticas ancestrais de matrizes africanas como complementares ao SUS, como banhos de ervas, defumações, chás, escalda-pés, Ebó, Bori e Amaci, além do trabalho das benzedeiras.
Seguiremos assistindo a esse apagamento?
Não! Se não querem nos ouvir, que escutem nossos tambores. Que ressoem os gritos da nossa ancestralidade. Se não querem dialogar, que enfrentam nossa organização.
O caminho é a luta! Precisamos de articulação para fortalecer políticas públicas para nossas comunidades, exigir respeito e reconhecimento do que nos pertence. O Estado brasileiro deve garantir a interseccionalidade entre os terreiros e os serviços públicos, não como um favor, mas como uma obrigação histórica.
Que o silenciamento e o racismo institucional não nos calem!
Que nossa ciência e nossa cultura sejam respeitadas!