Sônia livre, já!
40 anos de escravidão: conheça o caso de Sônia Maria de Jesus
Foto: Reprodução
Sônia Maria de Jesus é uma mulher negra, surda, atualmente com 51 anos, mantida há mais de 40 anos em trabalho análogo à escravidão.
Segundo a auditora fiscal do trabalho Luciana Carvalho, em 1982, Sônia Maria, então Soninha, uma pequena criança de 9 anos, foi entregue por sua mãe, de forma temporária, para a psicóloga da sua creche. Tentando livrar a filha de agressões e possíveis abusos do seu genitor, sua mãe permitiu que ela fosse trazida para Santa Catarina, para a casa de Jorge Luiz de Borba e sua esposa, Ana Cristina, filha e genro da psicóloga.
Mas o que seria temporário se tornou algo permanente. A família Borba, além de não fornecer detalhes da vida de Sônia para a família, a trouxe sem autorização para Florianópolis, saindo assim do endereço comunicado para a sua família (Blumenau).
Sônia ficou 40 anos trabalhando sem vínculo empregatício, salário ou folgas. O cálculo das verbas trabalhistas devidas chega a quase R$ 5 milhões. Destacamos que em outubro de 2023, a Procuradoria-Geral da República denunciou o casal por trabalho análogo à escravidão e pediu o afastamento de Sônia dos Borba, processo ainda em julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Destaca-se que, além da falta de direitos trabalhistas, Sônia foi uma criança marginalizada, pois não frequentou ambientes escolares, não foi alfabetizada, não teve experiências de adolescência, juventude e muito menos teve acesso a oportunidades de profissionalização e trabalho. Quando resgatada pela fiscalização, Sônia apresentava problemas dentários e um tumor uterino, além de dificuldade de estabelecer diálogos, tendo em vista sua não alfabetização em português e em Libras.
Após a divulgação do caso na televisão, seus irmãos a encontraram e procuraram estabelecer contato. No entanto, após autorização do STJ para uma visita, o casal Borba – juntamente com todos os familiares (crianças criadas por Sônia) – retornou com ela para casa em agosto de 2023, tendo sido o primeiro caso de “desresgate” que se tem notícia. O desembargador Jorge Borba, que nega a acusação de escravidão, desde então busca legalizar a paternidade socioafetiva de Sônia, através de uma ação judicial.
Sônia, diferentemente dos filhos do casal Borba, não fala outros idiomas, não realizou viagens, não frequentou a universidade, nem mesmo os documentos de identificação lhe foram permitidos antes dos 40 anos. Diferentemente da sua família biológica, que mesmo periférica, não teve acesso à escola, cursos e até universidade, como os irmãos e sobrinhos de Sônia, mesmo que periféricos. Sônia não tinha sequer um registro de identificação para frequentar o Sistema Único de Saúde (SUS).
Vivendo com os Borba, Sônia enfrentou dificuldades para manter o contato com sua família biológica, que relaciona obstáculos criados pelo casal. Os encontros entre Sônia e seus irmãos, mediados pela assistência social, são complexos e onerosos, já que a família precisa vir até Santa Catarina.
A família biológica é contra a absurda tentativa dos Borba de obter a curatela, alegando incapacidade da Sônia, e questiona a capacidade da mesma de decidir livremente o seu futuro. O processo judicial que discute a autonomia e o futuro da mulher continua em andamento e movimentos sociais têm contribuído com a exposição do caso.
O 8M de Santa Catarina, articulado com importantes forças feministas, bem como o Coletivo Juntas e o Sinergia realizaram atividades para mobilizar setores políticos e sociais em prol da liberdade de Sônia. Cinco Relatorias Especiais da Organização das Nações Unidas (ONU) já cobraram esclarecimentos e posição do governo brasileiro em relação ao caso de Sônia Maria de Jesus – destacando que para a ONU e demais organismos Sônia foi encontrada em condições de escravizada na casa do desembargador, o que por si só não permitiria o seu retorno e muito menos a sua adoção.
Segundo a ONU, o caso envolve irregularidades relativas a tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças; direitos das pessoas com deficiência; formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata; além de formas contemporâneas de escravidão, suas causas e consequências. Entidades que trabalham contra a discriminação de mulheres e meninas expressaram sua preocupação com a situação de Sônia.
No dia 9 de abril de 2025, dois anos depois do resgate/retorno, Ana Cristina Gayotto de Borba, esposa do desembargador, foi incluída na Lista Suja do trabalho escravo, atualizada pelo governo federal. É provável que apenas o nome dela entrou na lista porque o auto de infração no dia da fiscalização foi lavrado apenas no nome dela. Por essa razão, o nome do desembargador teria ficado de fora.
A Lista Suja do Trabalho Escravo é produzida pelo Ministério do Trabalho e Emprego desde novembro de 2003 e é atualizada semestralmente. A partir dela, ficam públicos os dados de pessoas físicas e jurídicas responsabilizadas por submeter trabalhadores a condições análogas às de escravo.
Destacamos que a negação da infância para meninas negras e periféricas é um problema complexo e multifacetado que exige ações urgentes e integradas para garantir a efetivação dos direitos dessas meninas e promover seu desenvolvimento pleno. É preciso combater o racismo estrutural, a desigualdade social e a violência, além de investir em políticas públicas que garantam acesso à educação, saúde e segurança.
Sônia Livre é a bandeira que aglutina a luta histórica que a esquerda brasileira tem travado com a aristocracia rural, jurídica e midiática que atravanca direitos básicos nesse país – em especial a vítimas do racismo estrutural e de relações de trabalho subalternizadas.
Libertar Sônia é a garantia de que poderosos nomes da sociedade catarinense não saiam impunes, bem como garantir o recebimento dos ordenados com juros se coloca como uma meta para todos nós que defendemos os direitos trabalhistas. Sônia entregou parte da sua vida pelo bem-estar de toda uma família e agora precisa obter condições para seguir sua vida em liberdade.