As previsões sem provisões do Plano Nacional de Educação e o financiamento da educação

As previsões sem provisões do Plano Nacional de Educação e o financiamento da educação

O próximo Plano Nacional de Educação (2024-2034) será sacrificado no altar do arcabouço fiscal?

Júlio Pontes 28 maio 2025, 17:23


Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou
pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a
minha morte. (Óbito do Autor, Memórias Póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis)

Instalou-se na Câmara dos Deputados, há pouco menos de um mês, a Comissão Especial sobre o Plano Nacional de Educação (2024-2034) – PL 2614/2024. A instalação da Comissão Especial do PNE acontece aproximadamente um ano depois da Conferência Nacional de Educação (CONAE), ao término da qual se aprovou o Documento Final do PNE orientado pelo financiamento de 10% do PIB em educação pública. Encontra-se aí, na Meta 20 em particular e no financiamento da educação em geral, uma vez mais o destino do PNE. 

Na CONAE, sobre a qual falei em texto anterior [1], a disputa ao redor do PNE entre dois campos antagônicos ficou evidente. Havia de um lado as fundações empresariais, destacadamente o Todos Pela Educação (TPE) [2], instrumento político pelo qual frações de classe hegemônicas do capitalismo brasileiro vem organizando seus interesses há quase 20 anos. Já do lado oposto organizou-se o campo democrático, composto por trabalhadores da educação, entidades de classe e pesquisadores em educação, cuja mobilização garantiu no Documento Final a indicação de ruptura com as políticas educacionais e econômicas anteriores, por exemplo: revogação do Novo Ensino Médio (NEM), da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), BNC Formação e, estruturalmente, a ampliação do investimento em educação. 

Neste marco da ampliação do investimento público em educação pública, há uma contradição estrutural da qual não podemos escapar: como sairemos dos atuais 5,1% do PIB investidos em educação pública para os 10% aprovados na CONAE com o estrangulamento fiscal imposto pelo Regime Fiscal Sustentável (RFS)? Como garantir o cumprimento das metas de ampliação e universalização da educação sem a correspondente ampliação do investimento em educação pública? Não é por acaso que ambos os PNEs neste quarto de século tornaram-se obituários da educação brasileira, posto o veto à meta de financiamento do primeiro (2001-2010) e o não cumprimento da meta de financiamento do segundo (2014-2024) [3].

Os PNEs e o financiamento da educação 

Entre os dois PNEs, suas duas décadas de vigência e os três governos que por eles passaram, há um fio de continuidade comum, isto é, em ambos os planos decenais não se passou perto de alcançar o investimento de 10% do PIB em educação pública. A bandeira pelos 10% do PIB em educação pública, vale salientar, consolidou-se no II Congresso Nacional de Educação (CONED) em 1997 na cidade de Belo Horizonte. Há mais de 28 anos, portanto, os trabalhadores em educação lutam para que o Plano Nacional de Educação não seja uma carta de intenções. 

Naquele momento, a participação popular e a mobilização dos trabalhadores em educação resultaram no PNE da Sociedade Brasileira, no qual constava a previsão de aplicação de 10% do PIB em educação até o final do decênio. A proposta elaborada na CONED tornou-se Projeto de Lei e tramitou no Congresso Nacional encabeçado pelo Deputado Federal Ivan Valente (PT). No final, no entanto, a bancada parlamentar do governo de Fernando Henrique Cardoso desfigurou o PNE da Sociedade Brasileira com o conhecido Relatório Marchezan, ainda que tenha sido obrigada, por exemplo, a não liquidar por completo a meta de financiamento: reduzindo de 10% para 7% a proposta encaminhada para sanção presidencial de FHC. O sociólogo da USP resolveu, no entanto, sepultar o PNE ao impor nove vetos, entre eles um que incidiu sobre a meta de financiamento e deixou o plano sem uma. 

Dois anos depois, caiu no colo de Lula este PNE à deriva herdado de FHC e o poder de reverter os vetos que dele fizeram uma carta de intenções. O governo nada fez a respeito, decidindo, portanto, não enfrentar o “plano que expressava a política do capital financeiro internacional e a ideologia das classes dominantes”, como corretamente definido à época pelo deputado Ivan Valente e pelo professor Roberto Romano da UNICAMP [4]. Em artigo para Folha de São Paulo no ano de 2001, ambos afirmaram também que o PNE havia sido vetado em nome do ajuste fiscal, para o qual, assim se pode concluir, o Lula recém eleito havia renovado seus votos de fidelidade. 

Com os votos de conservação da política econômica anterior em sentido geral renovados, já anteriormente sinalizados na Carta ao Povo Brasileiro, Lula e o Ministro da Educação Fernando Haddad jogam a última pá de cal no PNE (2001-2010) ao lançarem o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) em 2007. O PDE expressou um duplo movimento: a negação do PNE  em vigência e a aliança do MEC com o Todos Pela Educação (TPE). A carta fundacional do movimento empresarial presidido naquele ano pela maior acionista individual do Itaú, Milú Villela, orientou a elaboração do PDE. O que explica o fato de Fernando Haddad ser associado fundador do TPE. Cabe aqui um pequeno salto: estaria agora a história se repetindo como farsa? Estaríamos agora em vias de testemunhar novamente o PNE ser sepultado em nome do ajuste fiscal, do arcabouço fiscal de Fernando Haddad? 

Feita tal digressão, voltamos ao Plano Nacional de Educação (2001-2010). Sem uma meta de financiamento, o PNE de 2001 iniciou sua vigência com 4% do investimento público direto em relação ao PIB e terminou com 5%. O crescimento de 1% se deu entre 2005 e 2010, quando o vento de um ciclo econômico expansivo baseado nas commodities soprou a favor. A tabela abaixo detalha o investimento público direto em relação ao PIB por nível de ensino durante uma década (2000 a 2010).

Tabela 1 – Percentual de investimento público direto em educação em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) (2000-2010)

Encerrada a vigência do PNE de 2001-2010, passou-se ao processo de elaboração do novo Plano Nacional de Educação (convertido posteriormente em Lei 13.005/2014). A elaboração desse PNE aconteceu sob a primeira CONAE, fundada em 2010 como a expressão de um importante avanço democrático na formução das políticas educacionais brasileiras. Ainda que formalmente inserido no processo de elaboração do PNE, o TPE viu-se obrigado a ter uma atuação própria por fora do Fórum Nacional de Educação (FNE) e da CONAE, razão pela qual 13 entidades que faziam parte da composição do FNE resolverem publicar uma carta que polemizava contra o método e a política do Todos Pela Educação.

O financiamento, materializado na luta pelos 10% do PIB em educação, estava novamente no centro do debate. A proposta enfim havia sido incorporada na Meta 20 do PNE aprovado em 2014, prevendo: “ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto – PIB do País no 5o (quinto) ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio.”

O que se verificou no exercício do Plano Nacional de Educação (2014-2024), no entanto, como também demonstra o INEP no 4º Ciclo de Monitoramento das Metas do PNE, foi a continuidade dos baixos patamares de investimento público em educação, havendo um crescimento de módicos 0,4% em 10 anos. A novidade é que, ao contrário do PNE anterior, neste de 2014 havia a previsão de ampliação do investimento público em educação: em 2019 deveríamos ter um investimento de ao menos 7% contra os 5,3% praticados. Já em 2024, último ano de exercício do PNE, o investimento deveria atingir os tão aguardados 10% do PIB contra os 5,1% investidos.

Gráfico 1 – Percentual de investimento público direto em educação em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) (2015-2020)

Fonte: INEP, 2020

Em 2016, vale lembrar, o governo golpista de Michel Temer enterrou de vez a hipótese de ampliação do investimento público em educação prevista pelo PNE em exercício ao aprovar o Novo Regime Fiscal (NRF) com a Emenda Constitucional n. 95, nomeado pelos movimentos sociais de Teto de Gastos. O professor Nelson Cardoso Amaral, uma das maiores referências brasileiras na pesquisa em financiamento da educacão, demonstrou ainda na fase de tramitação como PEC 241/55 que o PNE estava “morto” oito anos antes do término de sua vigência [5]. A previsão de Amaral revelou-se verdadeira e o PNE (2014-2024) terminou, como consta nos relatórios de monitoramento do INEP, sua vigência no ano passado longe de atingir suas metas de ampliação e universalização da educação, isto é, sem garantir o direito à educação pública para milhões de brasileiros.

A FINEDUCA publicou em 2023 Nota Técnica [6] em que demonstra, inequivocamente, que ao menos 8 metas do PNE 2014-2024 (1, 2, 3, 6, 9, 10, 11 e 12) exigiam, no mínimo, 9,6% de investimento do PIB em educação pública. Se cumpridas, haveria um crescimento de 64,5% no montante de matrículas, passando de aproximadamente 42 milhões para 69 milhões. Para tanto, tomando-se por referência o Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi), seriam necessários 794,6 bilhões de investimento (8% do PIB). Já com Custo Aluno Qualidade (CAQ), que é 20% maior que o CAQi e também é 20% maior na Educação Superior, o investimento para ampliação das matrículas prevista nas chamadas metas quantificáveis do PNE (2014-2024) seria de 953,6 bilhões (9,6% do PIB).

Tabela 2 – Matrículas públicas nos níveis, etapas e modalidades da educação brasileira
para cumprir as metas de expansão do PNE (2014-2024) até o ano de 2024

Fonte: FINEDUCA, 2023.

Torna-se cristalino, portanto, que a pedra de toque do novo Plano Nacional de Educação é o financiamento da educação, particularmente o cumprimento da meta de aplicação de 10% do PIB em educação pública. Mas também, assim como no ajuste estrutural imposto por FHC ao PNE de 2001 e no Teto de Gastos imposto por Temer ao PNE de 2014, é igualmente cristalina a constatação de que a ampliação do investimento em educação no patamar de 10% do PIB é incompatível com o Regime Fiscal Sustentável (RFS) – Lei Complementar 200/2023. O chamado novo arcabouço fiscal não só invibializa todo PNE a ser implementado na próxima década, como também fere de morte o piso constitucional da educação [7].

Como indica a nota do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (CECON) da UNICAMP, há uma incompatibilidade entre o RFS o pisos constitucionais da saúde e educação. A ampliação nominal de gasto público em 2024 era de aproximadamente 96 bilhões, uma vez executado a limitação de despesa primária determinada no arcabouço fiscal. Mas parte considerável desta expansão nominal e toda expansão real será destinada a cumprir os mínimos constitucionais da saúde e educação, a previdência social e os benefícios assistenciais, conforme demonstra a tabela a seguir:

Tabela 3 – Impacto de despesas selecionadas orçamento de 2024

Extraído da Nota 22 do CECON/UNICAMP

A conclusão seguinte das projeções é:

Considerando os valores necessários para cumprir os mínimos determinados para os cinco grupos de despesas selecionadas, constata-se a necessidade de R$ 104,4 bilhões. Isso significa que esse grupo de despesas selecionadas ocupará 81% do espaço fiscal máximo de R$ 129 bilhões, sobrando apenas R$ 24,6 bilhões para as todas as demais despesas submetidas ao RFS. Todas as demais despesas terão, portanto, um aumento nominal de apenas 3,81%. O problema é que este aumento nominal não é suficiente para garantir sequer a correção monetária, já que a inflação esperada para 2024 é de 4,85%. Portanto, no melhor dos cenários, há perda real para as demais despesas primárias de -1,04%.

Trata-se não de um efeito colateral do novo arcabouço fiscal, senão dele mesmo em estado puro. Havia nos balões de ensaio de Rogério Ceron e Fernando Haddad contra os pisos constitucionais certa previsibilidade. Todo este cenário torna tão preciso quanto urgente lutar em defesa da educação pública no mesmo ritmo em que se luta contra o arcabouço fiscal e a camisa de força neoliberal que estrangula os direitos sociais.

Em defesa da educação pública, do Plano Nacional de Educação e dos pisos constitucionais, lutar pelo fim do arcabouço fiscal e pela taxação dos bilionários

Nesta semana testemunhamos a mobilização do movimento estudantil e dos trabalhadores em educação derrotarem o Decreto 12.448/2025 – o chamado Decreto do Apagão -, cujo efeito seria cortar 40% do orçamento das Instituições Federais de Educação Superior. Ontem (27), também como resultado dessa mobilização, Lula se reuniu com os reitores das universidades federais para discutir a recomposição orçamentária. De igual modo, apostando na mobilização, os Técnicos-Administrativos em Educação pressionam o governo para que o acordo de greve seja cumprido integralmente. Há também uma mobilização nacional convocada pela UNE para o dia 29 pela recomposição orçamentária.

Todas as lutas parciais em defesa da educação, desde as lutas salariais pelo piso nas cidades até a luta pela recomposição orçamentária das universidades, precisam incorporar com absoluta centralidade a luta contra o arcabouço fiscal, ao redor da qual se pode estabelecer um sentido geral e unidade de ação nas lutas da educação. Não há vitória definitiva ou de longa duração na educação enquanto o arcabouço fiscal e a meta fiscal zero existirem. Até mesmo as conquistas históricas inscritas na Constituição Federal de 1988, como os pisos constitucionais, estão sob a mira do Regime Fiscal Sustentável (RFS). Ao mesmo tempo, para sairmos da luta defensiva contra o arcabouço, também é necessário colocar de pé uma campanha pela taxação das grandes fortunas, aliando-a às lutas de maioria social como o fim da escala 6×1.

O Plano Nacional de Educação, por sua vez, cuja tramitação e aprovação ocorrerá este ano, indica uma vez mais a necessidade histórica de derrotar o neoliberalismo para defender a educação pública brasileira. O neoliberalismo na educação do Brasil, como vimos, é o fio de continuidade entre todos os governos nos últimos 25 anos. O primeiro PNE de 2001 a 2010 foi sacrificado no altar no ajuste fiscal de FHC. O segundo PNE de 2014 a 2024 foi sacrificado no altar no Teto de Gastos de Temer. O terceiro PNE de 2024 a 2034 será sacrificado no altar do arcabouço fiscal de Lula e Haddad? A palavra final precisa ser nossa.

[1] https://movimentorevista.com.br/2024/03/conae-a-luta-continua/

[2] O Todos Pela Educação, originalmente, quando fundado em 2006, intitulava-se como “organização da sociedade civil”. Em 2014, após reformulação estatutária, passou a ser reconhecido como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). O TPE, deliberadamente, escamoteia sua intervenção de classe no debate público ao apresentar-se como uma unidade contraditória entre interesses sociais antagônicos. No relatório financeiro de 2023, o movimento empresarial declarou ter recebido mais de 15 milhões de doações de pessoa jurídica, advindas de seus mantenedores, entre os quais: IFood, Fundação Lemann, Instituto Unibanco, Suzano, Fundação Vale, Fundação Itaú, Instituto Natura, Fundação Roberto Marinho, entre outros setores do capital financeiro, industrial e de serviços. 

[3] 4º Ciclo de Monitoramento das Metas do PNE (INEP, 2020).

[4] VALENTE, Ivan; ROMANO, Roberto. PNE: Plano Nacional de Educação ou carta de intenção?. Campinas, Educação e Sociedade, v. 23, n. 80, p. 96-107, set. 2002.

[5] AMARAL, Nelson Cardoso. PEC 241/55: a morte do PNE e o poder de diminuição dos recursos educacioanis. RBPAE, v. 32, n. 3, p. 653-673, set./dez. 2016.

[6] Associação Nacional de Pesquisa em Educação (FINEDUCA), O Financiamento do PNE (2024-2034): é chegada a hora de priorizar a Educação no processo de desenvolvimento social e econômico do Brasil. XI Encontro da FINEDUCA, Curitiba, 2023.

[7] https://movimentorevista.com.br/2024/10/contra-a-camisa-de-forca-neoliberal-lutar-em-defesa-dos-pisos-constitucionais-da-saude-e-educacao/

[8] BASTOS, Pedro Paulo Zahluth; DECCACHE, David; ALVES JR, Antonio José; O novo arcabouço fiscal restringirá a retomada de desenvolvimento em 2024?. Nota 22 do CECOM, outubro de 2023.


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Autores

Camila Souza