Francisco: um papa de utopias radicais?
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Francisco: um papa de utopias radicais?

A morte do Papa Francisco e o processo de sua sucessão em uma instituição eclesial interessa em algo para os revolucionários e revolucionárias?

Allan da Silva Coelho 8 maio 2025, 13:11

A morte do Papa Francisco e o processo de sua sucessão em uma instituição eclesial interessa em algo para os revolucionários e revolucionárias? Alguns dias após a morte de Jorge Mário Bergoglio, jesuíta argentino eleito papa em 2013, percebemos que as reações não foram as mais comuns. De um lado, a direita fascista, normalmente sempre próxima ao poder religioso conservador, comemorou discreta ou abertamente. O campo político em torno de Trump movimenta-se há algum tempo para influenciar a escolha de um sucessor anti-Francisco. Por outro lado, a esquerda e os revolucionários, que em geral portam um aspecto anticlerical (e, muitas vezes, antirreligioso), dividiu-se nas manifestações e análises. À primeira vista, parece que a maioria dos militantes seja na América Latina ou na Europa sentiram-se sensibilizados com a morte do Papa e lamentaram a perda de um aliado em diferentes temas.

Nas redes sociais, alguns portais da esquerda revolucionária, ao expressarem solidariedade ao papa morto, foram pressionados por seus leitores a postar “o outro lado”, explicitando a divisão das análises. Para setores da esquerda, Francisco era um aliado. Para outros, um perigo, por representar a legitimação de um tipo de formação social que nem deveria existir mais… No entanto, discutir como deveriam ser as igrejas ou as religiões não é o melhor pontapé inicial para uma análise em perspectiva dialética, histórica e materialista. Proponho apresentar elementos para discutir de que maneira a herança de Francisco contribui ou não para a luta revolucionária das e dos trabalhadores para superar o capitalismo em vista do socialismo.      

Para isso, destaco alguns elementos do contexto histórico para, na sequência, propor eixos de reflexão sobre sua relação com nosso campo da luta de classes: as recepções de Francisco entre as forças políticas, sua tentativa de ação dentro e fora da igreja Católica e os limites e contribuições de seu programa.

Compromisso de transformação ou reposicionamento de uma instituição falida?

O papa Francisco estimulou e promoveu diferentes iniciativas de diálogo durante o seu pontificado. Como um exemplo entre muitos, destacamos os encontros mundiais dos movimentos populares, em que Francisco convidou movimentos de mais de 60 países para jornadas de discussão e tentativas de elaboração de intervenções conjuntas. O segundo encontro aconteceu em 2015, em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, no governo de Evo Morales. 

Seu discurso foi marcante pelo contexto, mas se trata de uma variação de seus documentos Evangelli Gaudium (2013) e da Laudato Si (2015). Francisco convidou ao diálogo quem tem sede de justiça: ele afirma que a realidade de injustiça que vivemos só pode ser superada enfrentando a resignação e com resistência ativa “ao sistema idólatra que exclui, degrada e mata”. É preciso colocar a economia a serviço dos povos, unindo-os no caminho da paz e da justiça, defendendo a Mãe Terra. Para isso, é necessário negar a economia da exclusão e desigualdade, a serviço do poder anônimo do ídolo dinheiro, representado nas corporações, nos credores, em tratados “de livre comércio” e na “imposição de medidas de austeridade que sempre apertam o cinto dos trabalhadores e dos pobres”.

Para nós, da esquerda latino-americana, este discurso é comum e poderia ser proferido por muitos de nossos bons companheiros ou companheiras das diferentes frentes de luta. No entanto, quem fala é o Papa, chefe de uma instituição das mais tradicionais. Ele prossegue: 

“Reconhecemos nós, de verdade, que as coisas não andam bem num mundo onde há tantos camponeses sem terra, tantas famílias sem teto, tantos trabalhadores sem direitos, tantas pessoas feridas na sua dignidade? (…) Há um elo invisível que une cada uma das exclusões. Não se encontram isoladas, estão unidas, por um fio invisível. (…) Pergunto-me se somos capazes de reconhecer que estas realidades destrutivas correspondem a um sistema que se tornou global. Reconhecemos nós que este sistema impôs a lógica do lucro a todo o custo, sem pensar na exclusão social nem na destruição da natureza?” [1]

A reflexão caminha para um convite de superar o medo e trabalhar por mudanças estruturais na sociedade. Porém, a crítica da injustiça social, aliada à injustiça ecológica, vem permeada por uma forte perspectiva anticapitalista. Prossegue o papa:

“E por trás de tanto sofrimento, tanta morte e destruição, sente-se o cheiro daquilo que Basílio de Cesareia chamava «o esterco do diabo»: reina a ambição desenfreada de dinheiro. (…) Quando o capital se torna um ídolo e dirige as opções dos seres humanos, quando a avidez do dinheiro domina todo o sistema socioeconômico, arruína a sociedade, condena o homem, transforma-o em escravo, destrói a fraternidade inter-humana, faz lutar povo contra povo e até, como vemos, põe em risco esta nossa casa comum, a irmã e mãe terra.”

Na sequência, ainda convida os explorados a assumirem com coragem o processo de transformação do local ao mundial. Incentiva o engajamento na luta por direitos, explicita o quanto vale a pena o processo da luta e deseja que o “clamor dos excluídos seja escutado na América Latina e em toda a terra.” Diz Francisco:

“Vocês, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podem e fazem muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas suas mãos, na sua capacidade de se organizar e promover alternativas criativas na busca diária de trabalho, teto e terra, e, também, na sua participação como protagonistas nos grandes processos de mudança, mudanças nacionais, mudanças regionais e mudanças mundiais. Não se acanhem!”

A síntese do programa não é ruim, expressando parte importante de nossas bandeiras. Poderia dizer que mesmo parte da esquerda por aqui ou por aí já não tem tanto vigor em defender esta lógica básica, preferindo discursos moderados e mais palatáveis à ordem vigente e à disputa eleitoral. Mais uma vez é o Papa quem diz:

“nenhuma família sem teto, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhum povo sem soberania, nenhuma pessoa sem dignidade, nenhuma criança sem infância, nenhum jovem sem possibilidades, nenhum idoso sem uma veneranda velhice. Continuai com a vossa luta e, por favor, cuidai bem da Mãe Terra.”

Aqui temos um exemplo das intervenções de Bergoglio em suas iniciativas e poderíamos trazer outras. Parece difícil sustentar a hipótese de que Francisco represente apenas um reposicionamento da instituição católica em crise, que deseja manter sua relevância a serviço das corporações e do grande capital, mobilizando a atenção dos trabalhadores para dispersá-los… Descartar esta hipótese não significa que necessariamente, em seu oposto, o jesuíta argentino agora papa tem um programa de transformação revolucionária idêntico ao da esquerda radical. Ele continua sendo papa, eleito por um colégio de cardeais com tendências altamente conservadoras. É por isso que a análise é um pouco mais complexa. 

Que dialética entre símbolos e práxis?

Tradicionalmente a igreja Católica é especialista em mobilizar o universo do simbólico para sua autoconstrução institucional. Porém, Bergoglio trabalhou este mesmo campo dos símbolos para deslocar certos posicionamentos estanques e incidir sobre a própria instituição. 

Para uma pequena lista de exemplos, que pode ser facilmente completada com outros, começamos pela escolha de seu nome, Francisco, como referência ao santo mais popular da história do cristianismo. O Francisco de Assis, seja o personagem histórico ou o ícone da cultura popular, expressa radicalidade crítica, faz-se pobre como os pobres, vive com eles defendendo a centralidade da missão cristã junto aos excluídos. A isso, somamos seu paradigma do diálogo com ateus e outras religiões, sua relação com a natureza, a vocação à alegria como modo de viver e sua força de testemunho. Bergoglio vem de uma vida de proximidade com opção por uma vida comum, vivendo em casas comuns, andando de ônibus ou utilizando os mesmos sapatos simples. Se de certa forma se insere em certo pauperismo, não deixa de representar uma crítica ao modo de vida burguês de boa parte do clero e dos cristãos, mas também, destaca-se como uma crítica do fetichismo das mercadorias. Facilmente podemos achar na internet (sem manipulação de IA) fotos do papa anterior, Bento XVI, com bolsas de marca Prada, sapatos exclusivos e carros de luxo presenteados pelas grandes empresas. Francisco transformou tudo isso em dinheiro para a solidariedade internacional entre os povos. 

Outros aspectos simbólicos têm sua dimensão política mais explícita. Em sua primeira aparição pública como Papa, ele vestia roupas simples e pediu que o povo o abençoasse.  Suas primeiras viagens foram devidamente escolhidas como ir ao encontro dos refugiados/imigrantes na ilha de Lampedusa, no Mediterrâneo e com os desempregados na Sardenha. Com frequência encontrou-se com moradores de rua, com presidiários, grupos LGBTQIA+ e mulheres trans. Recebeu Gustavo Gutierrez em Roma, telefonou ao Padre Júlio Lancelotti, visitou o túmulo de Dom Samuel Ruiz em São Cristóbal de Las Casas (2016) e canonizou Dom Oscar Romero, mártir de El Salvador, agora oficialmente santo [2]. Ainda, podemos destacar o pedido de perdão e reintegração ao sacerdócio do padre Ernesto Cardenal, poeta e ministro da revolução sandinista, a conversa franca e direta com os jovens, seja em uma série da Disney, seja em encontros on line, entre universitários, sem nenhuma moderação prévia. Francisco nem sempre concorda ou entende o que os jovens propõem, mas os quer por perto.

Estes gestos não passaram despercebidos em um contexto de crescimento da força do fascismo e do negacionismo frente a convergência de diferentes crises como a econômica, a climática, a social e a da migração. Os setores conservadores católicos reagiram duramente. Pela primeira vez, em muitos anos, a oposição na própria Cúria romana ao papa foi explícita e ativa. Também a extrema-direita de diferentes partes do mundo atacou Francisco, seja como anti-papa, seja como comunista. A direita enfurecida teria se confundido?

Após a sua morte, as diferentes leituras dos conservadores disputavam variações de uma narrativa que tenta reduzir o potencial transformador destes doze anos e um mês. O setor mais oposicionista, acusa Francisco de extremismo, de polarizar a igreja, de instaurar o caos na ordem institucional. Os mais moderados, tentam interpretar as reformas de Francisco como continuidade de um projeto recebido de João Paulo II e de Bento XVI, reduzindo seu potencial crítico da sociedade. De fato, Francisco assumiu um papel de reformador da instituição eclesial, mesmo que desde o ponto de vista da América Latina suas ações pareçam o básico da experiência eclesial vivida por aqui desde os anos 1960.

Do nosso lado das barricadas da luta popular?

Todos estes elementos não interessam ao nosso olhar em si mesmos, mas a partir da sua contribuição para a práxis de libertação. O marxismo não dogmático não oferece verdades reveladas prontas a serem aplicadas em nossa análise. Oferece um método que articula um conjunto de princípios. Desse modo, uma ideia, representação ou símbolo não são alienantes ou revolucionários em sua “essência”, mas pela forma como se articula a um determinando conjunto social. Este princípio vale para a religião, que, como fenômeno social não é compreendida em si, em um modelo ideal, mas a partir do papel que desempenha nas contradições sociais de cada época e local específico. Por isso, se trata de uma análise histórica, que considera as contradições e sua referência direta a base material da vida concreta. 

É a partir destas contradições que Marx pensa a religião em sua época. Michael Löwy também propõe pensar os elementos utópicos e ideológicos de certas expressões religiosas, no sentido de que, em determinado contexto histórico concreto, uma religião fortemente conservadora como o cristianismo de nossa época pode apresentar-se como uma força revolucionária. 

Estes cuidados são importantes para pensar a crítica da religião no contexto do enfrentamento do capitalismo, afinal, a religião não nos interessa como um objeto abstrato, mas a partir da necessidade que a classe oprimida tem em lutar por sua condição material de vida na superação do capitalismo. Agora, vale registrar que as análises sobre a religião não são equivalentes ao estudo de instituições eclesiais, como as igrejas no mundo moderno, e se diferem ainda do estudo de um governo pontifício como é o caso do papa Francisco. Isto é, religião, igreja, pontificado e teologia, apesar de estarem interligados no mesmo campo do fenômeno social que hoje chamamos de religião, não são a mesma coisa. 

Em geral, é a dimensão utópica presente nas religiões que possibilita o surgimento de tendências questionadores visando a transformação da sociedade. Michael Löwy destaca em seus estudos que a relação entre a ética católica e o capitalismo é marcada por uma constante tensão com “um ambiente muito menos favorável – se não completamente hostil – ao desenvolvimento do capitalismo que as seitas calvinistas e metodistas” [3]. Por diferentes aspectos, como uma teologia que condena o lucro, os juros e a usura como pecados, constituíram um contexto de antipatia cultural, uma espécie de “afinidade negativa” [4]. Tal aversão ou rejeição básica não impede processos de acomodação e adaptação realista das instituições católicas ao sistema capitalista, chegando a tolerar certas práticas ou rever determinadas interpretações teológicas. 

Neste sentido, não seria totalmente estranho que possamos encontrar elementos anticapitalistas no governo do papa Francisco, já que o campo das ideias anticapitalistas é mais amplo do que a abordagem marxista. Löwy, Deménil e Renault caracterizam o anticapitalismo de próprio de Marx na crítica de cinco temas fundamentais: a injustiça da exploração, a perda da liberdade pela alienação, a quantificação venal, a irracionalidade e a barbárie moderna [5]. 

Estes mesmos elementos podem ser encontrados em Bergoglio. Ele propõe a analisar o sistema a partir de suas vítimas, que gera profunda indignação moral: há uma profunda injustiça, que perversamente afeta sempre mais os oprimidos. A irracionalidade do sistema não é capaz de solucionar os problemas que cria. Em Laudato Si, ele afirma, por exemplo:

“Neste contexto, sempre se deve recordar que « a proteção ambiental não pode ser assegurada somente com base no cálculo financeiro de custos e benefícios. O ambiente é um dos bens que os mecanismos de mercado não estão aptos a defender ou a promover adequadamente ». Mais uma vez repito que convém evitar uma concepção mágica do mercado, que tende a pensar que os problemas se resolvem apenas com o crescimento dos lucros das empresas ou dos indivíduos. Será realista esperar que quem está obcecado com a maximização dos lucros se detenha a considerar os efeitos ambientais que deixará às próximas gerações? Dentro do esquema do ganho não há lugar para pensar nos ritmos da natureza, nos seus tempos de degradação e regeneração, e na complexidade dos ecossistemas que podem ser gravemente alterados pela intervenção humana. Além disso, quando se fala de biodiversidade, no máximo pensa-se nela como um reservatório de recursos económicos que poderia ser explorado, mas não se considera seriamente o valor real das coisas, o seu significado para as pessoas e as culturas, os interesses e as necessidades dos pobres” (LS, 190, destaque nosso).

A crítica da concepção mágica do mercado com seus mecanismos de maximização dos lucros é uma denúncia de toda ideologia que sustenta o capitalismo, mesmo que este nome “capitalismo” não apareça na encíclica. O aspecto da quantificação (em perspectiva mercantil-financeira) é associado à aversão dos valores do individualismo, da inversão da finalidade da vida, da opressão pela dívida, a falsidade da meritocracia, do progresso ilimitado, do consumismo, da concorrência… Na encíclica Fratelli Tutti, por exemplo, podemos ver a seguinte passagem:

“O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja. O neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo, recorrendo à mágica teoria do «derrame» ou do «gotejamento» – sem a nomear – como única via para resolver os problemas sociais. Não se dá conta de que a suposta redistribuição não resolve a desigualdade, sendo, esta, fonte de novas formas de violência que ameaçam o tecido social. (…) A especulação financeira, tendo a ganância de lucro fácil como objetivo fundamental, continua a fazer estragos. (…) O fim da história não foi como previsto, tendo as receitas dogmáticas da teoria económica imperante demonstrado que elas mesmas não são infalíveis. A fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se resolve com a liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política saudável que não esteja sujeita aos ditames das finanças, «devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos»” (FT, 168).

Mesmo que Bergoglio não venha da tradição da Teologia da Libertação (ele vem de um teologia latino-americana específica conhecida como Teologia do povo), em diversas passagens, compartilha raciocínios em que, a partir da denúncia da idolatria, expressa a crítica do fetichismo da mercadoria e do capital, da reificação, da absolutização do mercado e a divinização da economia capitalista. Isso não o caracteriza como marxista, mas o aproxima de fato do campo das críticas anticapitalistas. Parece-nos que tais elementos indicam mais do que o tradicional anticapitalismo católico conservador (por vezes reacionário), apontando para a necessária transição para outro sistema econômico e político, como um anticapitalismo utópico [6]. 

Que fazer com um sistema que mata? Francisco propõe a centralidade da sua missão no exterior da instituição: na sociedade. Um sinal pequeno, mas não menos importante é o processo de diálogo entre a Santa Sé e as redes de militantes marxistas europeus, organizada entre Transform! e o Vaticano. Desde 2014 foram realizadas diferentes atividades conjuntas, incluindo uma “Escola de Verão” conjunta, focando em problemas comuns da Europa, como a migração, a pobreza e a ecologia. Michael Löwy é membro deste processo que contou mesmo com um encontro com o próprio Papa [7]. Neste pontificado, o marxismo deixou de ser um “anátema” para ser convidado “oficial”.

Sem ilusões, não se espere que estes diálogos aconteçam sem contradições. Entretanto, é interessante notar que do ponto de vista ideológico, mas também dos compromissos nas diferentes frentes de luta concretas, muitas vezes os marxistas reivindicam mais os documentos do papa latino-americano do que os enviados da Cúria romana ou dos movimentos católicos participantes. 

Tais contradições não deixam de ser positivas, em uma instituição como a eclesial com forte tendência de adaptação ao status quo. Porém, permanece uma questão interessante refletir que, ao longo da história (em que a instituição conheceu diferentes configurações sociais), algo de reforma, profecia e contestação sempre se faz presente, seja com as formas de vida de radical pobreza, seja com figuras como Francisco de Assis, Martin Lutero, Bartolomeu de Las Casas ou Dom Helder Câmara. Apesar destes lampejos em nome da justiça, no mundo moderno uma visão progressista não foi jamais predominante no catolicismo, nem mesmo no tempo forte da Teologia da Libertação.

Por isso, não seria pouco razoável esperar de Bergoglio, no exercício de seu mandado pontifical, a completude de um programa radical da esquerda revolucionária? A pergunta pode parecer estranha e fora de contexto, porém, parte das críticas dirigidas a Francisco decorrem da expectativa de realizar alianças apenas com que tem projetos idênticos aos nossos. Devemos esperar dos nossos movimentos e organização um programa de revolução, não do clero. Francisco é um papa revolucionário do ponto de vista da igreja Católica? Em muitos aspectos, sim. Compartilha nosso projeto de sociedade? Há diversos pontos em comum e muitos outros em contradição ou oposição. Talvez a melhor procurar quais pontos da ação de Francisco (e daqueles que levarão adiante a sua herança) podem constituir frentes comuns ajudando a questionar o consenso suicida neoliberal, apontando as contradições profundas do capitalismo a partir da defesa das vítimas do sistema e inspirando novas gerações a utopias de transformação? 

Breve balanço de seus esforços

Bergoglio foi escolhido papa em um contexto difícil para a igreja Católica, em que os escândalos se sucedem a cada dia, seja o Vatileaks, os crimes de pedofilia e abuso sexuais ou as finanças do Vaticano. Eleito papa, não quis assumir o mesmo modelo de governo que concentra todos os poderes em sua figura. Aqui está expressa a sua maior limitação, decorrente de um paradoxo: reformar um poder absolutista sem reproduzir práticas totalitárias. Para isso, apostou em diferentes processos: a formação de um conselho de cardeais (o C-9) para a reforma do Vaticano, investiu publicamente contra as “doenças” da Cúria romana, embaralhou a lógica do colégio de cardeais, convocou sínodos cada vez mais amplos com leigos e leigas (antes exclusivos de bispos), impulsionou conferências eclesiais no lugar de conferências episcopais (como a CEAMA, Conferência da Amazônia) [8]. 

Porém, a cada passo para reduzir o poder totalitário da Santa Sé, reduzia sua capacidade de impor um novo modo de ser para a igreja, para além da força do testemunho. Passou a depender da adesão ao seu projeto. Com forte pressão externa, inclusive com financiamento de setores da extrema direita organizando a resistência interna à Francisco, nem sempre bispos e clero em geral corresponderam com lealdade ao processo instaurado pelo papa. Neste sentido, Bergoglio pareceu apostar mais suas forças na mobilização para fora da igreja e esperar que esta ação trouxesse resultados para dentro da instituição.

Para fora da igreja, sua ação foi franciscana como anúncio da alegria de uma tradição cristã: a intransigente defesa dos migrantes, o engajamento ecológico que articula luta dos povos e luta ambiental por justiça social e climática, a ênfase na presença nas periferias, um grande esforço de ecumenismo, mesmo em diálogo com o islamismo sunita e xiita. Em Fratelli Tutti, marcou o tema da política como mobilização da amizade social frente a construção de muros de intransigência, valorizando a vizinhança social como condição de renovar a ação política. É um enfrentamento claro à agenda da extrema direita, com a radical afirmação dos direitos humanos para cuidar de toda forma de vida.

Para dentro da igreja, sua ação foi jesuíta com discernimento, provocando mudanças, exigindo disciplina: punição das fraudes financeiras, punição dos crimes sexuais, redução do poder da Cúria romana, ampliação do espaço de participação e decisão dos leigos e leigas. Parte do clero progressista critica Francisco por ser extremamente duro e autoritário nas punições. Mesmo um cardeal foi condenado à prisão. Dezenas de bispos e muitos padres destituídos de sua função. Mesmo a complicada visita ao Chile não deixou de ter reviravoltas: se em um primeiro momento Francisco não ouviu as vítimas, defendendo parte do episcopado, em outro momento ele reconhece seu erro, pede desculpas e reorganiza a ação institucional a partir da ação de resistência destas vítimas [9].

Em geral, apontam-se os temas societais como o ponto de fragilidade de Francisco. De fato, os temas da moral sexual foram sempre mobilizados (de forma bem-sucedida) pela oposição conservadora a Francisco como modo de provocar tropeço e dificuldades em ampliar suas alianças. É muito pouco dizer que Francisco é conservador do ponto de vista moral. Ao modificar a prática pastoral da igreja, propõe junto uma outra teologia, em que Deus acolhe a todos, deslegitimando a prática fundamentalista cristã de negar a dignidade fundamental de todas as pessoas humanas. Aborto, direitos reprodutivos, homossexuais, são temas que, em geral, suas afirmações são mais próximas do tradicional já conhecido. Porém, movimentos LGBTQIA+ católicos e associações de teólogas, com suas críticas, mantém uma visão positiva do processo instaurado pelo latino-americano.   

Outros temas, importantes para quem é católico ou católica, seriam os da renovação institucional com o fim do celibato obrigatório dos padres, a ordenação de homens casados e, claro, a ordenação de mulheres. Todos sabemos que estes temas foram discutidos, não sem ambiguidades, afinal, ordenar mulheres e homens casados não mantém a instituição prisioneira de uma lógica clerical que se procura superar? Talvez a reforma mais radical, fosse reduzir a importância e o poder do ministério ordenado propriamente. 

No entanto, Francisco teve suas tentativas e recuos. Podemos assinalar brevemente três momentos em que ele apostou suas forças na mobilização das comunidades e das estruturas para avanços significativos: no sínodo da Amazônia, no sínodo da Família e no sínodo da Sinodalidade. A verdade é que os processos foram muito mais interessantes do que os seus respectivos resultados. Porém, parece que o papa avaliou não ter forças acumuladas suficientes para a transformação necessária. A realidade objetiva que necessita ser transformada ainda não tinha sua cumplicidade com a realidade subjetiva do povo católico de todo o mundo? Entretanto, em muitas ocasiões Francisco afirmou que os processos são superiores aos eventos, na expectativa de que nenhuma destas iniciativas terminaria em si mesma, permanecendo como pressão que precisa, em sua concepção, vir das bases da sociedade.

No cenário político internacional, atuou com toda a sua força simbólica e fraqueza política: denunciando as guerras no Sudão do Sul, na República Democrática do Congo, na Ucrânia e na Palestina. Todos os dias, Francisco telefonava ao pároco de uma paróquia em Gaza para saber como estavam e expressar sua solidariedade. Enfrentou abertamente o governo Trump, enviando mesmo uma carta aos bispos dos EUA que se transformou em um documento político muito importante de nossa época [10]. Negociou com Rússia e China, chegando a acordos importantes. Isso sem deixar de convocar os jovens a praticar todo tipo de desobediência civil necessária para a transformação da sociedade. Propõe incidência nas COPs, mas sem ilusões, apostando na parceria com movimentos radicais e na necessidade da mobilização das bases sociais, dos jovens, das mulheres e dos indígenas. 

Além dos diálogos com movimentos sociais, Bergoglio impulsionou outras frentes para renovação das perspectivas utópicas de transformação da sociedade, como o Pacto Educativo Global, o encontro mundial de Economia de Francisco (no Brasil, Economia de Francisco e Clara), o movimento Laudato Si, os seminários Fratelli Tutti… Sem pretender um inventário, neste campo a linha de intervenção é bastante bem situada.

Um balanço a ser feito.

É bem possível que em alguns anos será mais coerente um balanço deste momento em que um latino-americano foi Papa a partir de seus fracassos, que já à primeira vista não são poucos. No entanto, creio que já é possível afirmar que se trata de um marco na história do cristianismo contemporâneo. 

Do ponto de vista ideológico, Francisco articulou elementos de uma visão social de mundo utópica transformadora. Na perspectiva econômica, mobilizou uma tradição anticapitalista para a crítica do sistema econômico fetichizado a partir da tradição da Teologia da libertação nas categorias de vítima e idolatria. No contexto da luta de classes, esteve ao lado da trincheira do humanismo radical, dos direitos humanos e da justiça social e climática como parceiro dos movimentos populares.

Apostou nos processos e não teve receio dos conflitos que surgiram. Mesmo com a força de sua oposição interna (Cúria romana) e externa (extrema direita), suplicou a proximidade com quem sofre. Repetiu exaustivamente o desejo de uma instituição em que caibam todos. Como síntese de sua perspectiva temos a aposta na utopia (sonhar sempre), a necessidade da esperança frente o ódio fascista, o desejo de caminhar com o povo e o convite de entregar a vida à causa da transformação da sociedade. 

Cabe aos revolucionários o discernimento entre os pontos de convergência entre os horizontes políticos. Quanto às contradições de suas limitações, que a crítica a Bergoglio nos ajude a radicalizar com coerência nossa própria intervenção visando unificar uma ampla frente capaz de construí o mundo que precisamos. Na inspiração da Tese I de Walter Benjamin, a realidade da vida parece nos mostrar que há um amplo espaço de alianças entre o materialismo histórico revolucionário e certo cristianismo, apesar de toda doutrina acumulada em contrário. 

 [1] Discurso do Papa Francisco no II Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Veja em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2015/july/documents/papa-francesco_20150709_bolivia-movimenti-popolari.html 

[2]  Allan Coelho, ENTRE ACUSAÇÕES E PERPLEXIDADES: O ANTICAPITALISMO E O PAPA FRANCISCO. Revista Caminhos – Revista de Ciências da Religião, Goiânia, v. 16, p. 63–81, 2018. Disponível em: https://seer.pucgoias.edu.br/index.php/caminhos/article/view/6374

 [3] Michael Löwy, O que é Cristianismo de Libertação: religião e política na América Latina. São Paulo: Expressão Popular/Perseu Abramo, 2016, p.53-54.

[4] Michael Löwy, O que é o Cristianismo de Libertação, p.58.

[5] Micheal Löwy, Gérard Duménil, Emmanuel Renault, 100 Palavras do Marxismo. S. Paulo: Cortez, 2015, p.14.

[6] Allan Coelho,  A Idolatria e o Papa Francisco: radicalidade na crítica ao capitalismo. Estudos de Religião, v. 33, p. 203-230, jan.-abr. 2019.

[7] Michael Lowy, Bandiera Rossa, al Vaticano! Veja em: https://blogs.mediapart.fr/michael-lowy/blog/190124/bandiera-rossa-al-vaticano 

[8]  Allan Coelho, A práxis transformadora como pedagogia para novos sujeitos. Revista Eclesiástica Brasileira84(327), 2024, p.209–234. https://doi.org/10.29386/reb.v84i327.5236 

[9]  Sobre o tema, veja a discussão em Religión Digital https://www.youtube.com/watch?v=TGn7OxM2CXA 

[10]  Veja: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/events/event.dir.html/content/vaticanevents/pt/2025/2/11/lettera-vescovi-usa.html 


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