A perseguição racista ao funk é histórica
Do samba ao Trap: negrada cantando sua vivência no Brasil é proibido
Foto: Polícia Civil/Divulgação
Cultuar orixás, jogar capoeira e até o samba – tudo o que advém da cultura periférica é marginalizado pelas estruturas de poder. O batuque, por exemplo, era visto como símbolo de “vadiagem”; cantar ou tocar samba nas ruas já foi motivo de prisão, com detenções que podiam durar até trinta dias. Essa repressão não é nova e tem raízes profundas na história do Brasil.
A chamada Lei dos Vadios e Capoeiragem, sancionada com o segundo Código Penal brasileiro (em 1890), foi criada justamente para inibir práticas associadas à resistência cultural negra, como a capoeira, que vinha da cultura africana e representava uma forma de luta e organização entre os escravizados. Além disso, criminalizava pessoas sem emprego ou renda fixa – basicamente, os mesmos negros e negras recém-libertos da escravidão e impedidos de acessar o mercado de trabalho. A ironia cruel é que a lei os chamava de “vagabundos” após quase 400 anos em que o país se sustentou com sua mão de obra escravizada.
Dias atrás, vimos a prisão midiática do MC Poze, um artista negro e periférico, conduzido algemado e sem camisa à delegacia, mesmo sem resistência. A imagem, exposta publicamente, não foi apenas sobre a prisão de um homem: foi o símbolo de um corpo negro sendo humilhado, desumanizado, levado ao rechaço coletivo. Um corpo que representa a juventude de favela, para quem Poze canta o que se vive e sente no cotidiano.
É preciso compreender que a criminalização do funk não começou com seu surgimento, mas com sua popularização nas favelas. Quando ainda trazia o DNA americano, era tocado nas mansões da zona sul do Rio de Janeiro. Mas, com as novas batidas e experiências do DJ Malboro nos anos 1990, e o crescimento dos bailes, o funk virou alvo da repressão policial. Com carta-branca do então governador Marcello Alencar (PSDB), a Polícia Militar invadia bailes, quebrava equipamentos, prendia DJs e agredia frequentadores, tratando a juventude como criminosa apenas por se reunir, dançar e celebrar sua cultura.
A repressão também se apoiava em fake news: mães eram alertadas de que suas filhas engravidariam nos “trenzinhos” dos bailes. As chamadas “duras” da PM eram humilhantes, com apalpamentos e abusos físicos e psicológicos, especialmente contra mulheres e meninas que só queriam dançar. Para se proteger, era comum levar a carteira de trabalho ao baile — um comprovante de que não era bandido, como se isso garantisse não apanhar ou desaparecer.
Em 1995, a deputada estadual Áurea Lima (PFL) apresentou o Projeto de Lei nº 3.410/97, propondo a proibição total dos bailes funk no estado. Na década seguinte, com os governos Rosinha Garotinho (PSB/PMDB) e Sérgio Cabral (PMDB), a repressão se aprofundou com prisões, censura e até uma CPI do Funk, criada em 2008 pela Assembleia Legislativa do RJ, sob pretexto de investigar ligações com o tráfico. O presidente da CPI? Álvaro Lins, ex-chefe da Polícia Civil, que pouco tempo depois foi preso pela Polícia Federal por corrupção, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e envolvimento com milícias.
A perseguição à cultura periférica tem objetivos claros: suprimir a economia local, calar vozes negras, enfraquecer a organização comunitária e abrir espaço para a ascensão das milícias nas favelas. MCs como Colibri, Smith, Ticão, Frank, Cidinho e Doca, Bob Rum, Batata, entre outros, foram perseguidos e até presos por suas letras, mas em nenhum desses casos houve condenação por associação ao tráfico ou crimes afins. DJ Rennan da Penha, por exemplo, só foi liberto após intensa mobilização popular, mesmo sendo condenado injustamente.
Com a militarização total das comunidades durante os governos Cabral, Pezão e Witzel, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) não chegaram para garantir a paz, mas para controlar e sufocar qualquer forma de resistência cultural. Bailes eram interrompidos com bombas e tiros. A repressão se intensificou. Mais uma vez: nenhum artista foi condenado por envolvimento com o tráfico. Ainda assim, a criminalização persistia.
Durante esse mesmo período, as igrejas evangélicas cresceram exponencialmente no Rio, e espaços culturais periféricos, como boates e cinemas, foram desaparecendo. A juventude, sem opções de lazer em seus bairros, passou a buscar diversão em regiões nobres – onde o funk era aceito. Mas a precarização do transporte público e a criminalização de vans e kombis afastaram ainda mais essa possibilidade. Quando conseguiam um carro emprestado – Chevette, Uno, Fusca, Caravan – eram parados nas blitz. O motivo? Ser jovem, negro e pobre.
Hoje, sob a gestão bolsonarista de Cláudio Castro (PL), a repressão se repete com nova embalagem: vigilância digital, censura a letras de funk, shows cancelados por pressão policial e a famigerada “Lei Anti-Oruam”, que proíbe a contratação de artistas que cantam a realidade da favela. A cultura que brota da periferia é vista como ameaça e precisa ser silenciada. Mas não se trata apenas de Poze – trata-se de impedir que a “Lili cante” para toda a juventude negra.
Criminalizar expressões culturais, determinar o que é bom gosto, o que é arte e o que é “apologia ao crime”, é uma forma disfarçada – mas eficaz – de manter a periferia no seu lugar: à margem. É um mecanismo de controle social que classifica como perigoso tudo aquilo que não se enquadra nos padrões da elite branca dominante.
Essa realidade, fruto do racismo estrutural, molda as instituições, as leis, as práticas sociais e a distribuição de oportunidades. O sistema não enxerga a cultura negra como arte; enxerga como ameaça. O corpo negro dançando é suspeito. O corpo negro cantando é ofensivo. O corpo negro existindo é incômodo. Por isso é perseguido.
Da Lei da Vadiagem à chamada Lei Anti-Oruam, proposta por vereadores e deputados do PL, a criminalização da cultura negra é uma forma de extermínio. Um extermínio silencioso, diferente da violência letal do Estado que mata com armas ou deixa morrer pela ausência de políticas públicas. Criminalizar a música, a dança, permitir a intolerância religiosa e o racismo religioso é também matar – culturalmente, simbolicamente e historicamente. É apagar identidades, memórias e resistências. A intelectual Lélia Gonzalez já alertava sobre isso ao exaltar a figura da mãe preta – aquela que, mesmo sob a opressão da casa-grande, manteve viva a cultura e a língua negra, falando o “pretuguês” e passando, de geração em geração, os saberes, os tambores, as danças, os rezos e os cantos. Essa herança é força de resistência. E é justamente por isso que é perseguida.
E sim, às vezes a cultura da periferia faz referência ao tráfico – porque esta é parte da realidade vivida por muitos. Onde falta o Estado com água, saneamento, escolas de qualidade, postos de saúde e transporte, sobra repressão armada. O braço do Estado que chega à favela é o da polícia, que frequentemente “esculacha” moradores, aborda com violência e trata cidadãos como criminosos por existirem. Não é a cultura que promove o crime. É a ausência do Estado que o alimenta.
O avanço da extrema-direita precisa de inimigos simbólicos para alimentar seu discurso. E a população negra sempre foi o alvo! Enquanto isso, não há política pública para orquestras nas favelas, nem incentivos para arte e cultura comunitária. Mas há censura, repressão e um esforço sistemático para destruir tudo o que nasce da resistência popular.
Nosso sonho não vai terminar..
E se não soltar o meus ouro, nóis vai lá buscar