A sobrevivência é a utopia do século XXI
Perante a emergência climática, a ação política coletiva é fundamental
Via Rupturas
O título acima é a frase que conclui o prefácio à recente segunda edição do meu livro, O decênio decisivo. Propostas para uma política de sobrevivência (2023). A relação destrutiva e autodestrutiva que o capitalismo globalizado mantém com a comunidade dos seres vivos e, em geral, com o sistema Terra constitui hoje um veredito de morte para nossas sociedades e, no limite, para nossa espécie. Uma condição de possibilidade de nossa sobrevivência é a resolução da contradição que melhor define a tragédia do mundo contemporâneo. Trata-se da contradição entre a informação e a incapacidade de se nortear por ela. De um lado, governantes e os setores sociais dominantes ou mais influentes (corporações, mídia, Universidade…) têm sido sempre mais intensamente advertidos pela ciência sobre a aceleração da degradação antropogênica de todas as coordenadas socioambientais que permitem a permanência das sociedades e da vida, inclusive a humana, neste planeta. De outro, esses mesmos setores continuam a agir ou a endossar ações que agravam e aceleram ainda mais essa degradação.
Embora seja impossível compreender plenamente comportamentos suicidas, três elementos podem ser evocados para explicar essa contradição. Primariamente, ela se explica, como é óbvio, pelos interesses econômicos que regem os sistemas de dominação política e militar. As corporações e os Estados nacionais bloqueiam ideologicamente e, caso necessário, pela força qualquer mudança social que conteste a engrenagem expansiva, extrativa, destrutiva e autodestrutiva que os controla e da qual dependem existencialmente.
Por si só, contudo, interesses econômicos não bastam a explicar a contradição entre informação e ação, pois jamais poderiam eles prevalecer a longo prazo sem a passividade de setores muito mais amplos da sociedade. É importante entender que essa passividade não reflete necessariamente um negacionismo coletivo. Diversas e recorrentes pesquisas de opinião pública, no Brasil e em outros países, mostram que os indagados, em sua maioria, não apenas identificam o caráter antropogênico dos impactos e das ameaças ambientais que se avolumam, mas demandam ações políticas efetivas no sentido de mitigá-las. Recentemente, uma iniciativa internacional da coalizão jornalística Covering Climate Now, intitulada The 89 Percent Project, mostrou que a grande maioria das pessoas – entre 80% e 89% – “desejam uma ação forte de seus governos” em relação à emergência climática.1 Além disso, uma pesquisa realizada em 2024 em 26 países pela empresa francesa Veolia mostra que, na média global, 73% das pessoas indagadas entendem que a emergência climática é causada pela ação humana (climate disruption is of anthropogenic origin) e 75% delas concordam com a Organização Mundial da Saúde, segundo a qual “as mudanças climáticas são a maior ameaça sanitária que a humanidade deve enfrentar” (climate change is the greatest health threat facing humanity).2
Ocorre que essa demanda não se traduz até agora em ação política coletiva. E aqui intervém um segundo elemento essencial a explicar a contradição entre informação e ação (ou inação). Ele reside no que se poderia chamar uma descrença das sociedades contemporâneas em sua própria capacidade de se desviar de sua trajetória de colapso. Essa descrença é tenaz. Salvo melhor juízo, ela é, em grande parte, um efeito colateral traumático do fracasso das revoluções socialistas do século XX, que deram à luz sociedades distópicas, burocráticas e autoritárias. Não é possível abordar aqui as complexas razões históricas desse fracasso. Lembremos apenas o caso histórico extremo da União Soviética: as agressões e invasões sofridas durante a guerra civil (1917-1921), as lutas intestinas pelo poder, o abismo stalinista, a mortandade e os sacrifícios colossais que custou ao povo russo sua vitória decisiva sobre o nazismo e, desde 1945, a Guerra Fria, a ameaça nuclear, as invasões da Hungria e da ex-Tchecoslováquia…, a lista desses reveses brutais e erros é imensa. Eles desfiguraram de tal modo o projeto revolucionário, que, após a implosão final de 1991, a Rússia de Putin tornou-se, hoje, o modelo e a fonte de inspiração da extrema-direita europeia. De seu lado, a fantástica decolagem econômica da China não pode não suscitar admiração, na medida em que retirou centenas de milhões de pessoas da pobreza, mas esse sucesso resulta de escolhas políticas que pouco ou nada conservam do que se entendia por socialismo até ao menos os anos 1980. E essas escolhas são também as que vêm aumentando enormemente as desigualdades socioeconômicas nesse país, algo que, obviamente, nada tem a ver com os ideais do socialismo. Portanto, se a ideia de socialismo permanece um ideal intocado de justiça social, ela perdeu muito da capacidade socialmente mobilizadora de outrora.
Disso decorre um terceiro elemento a explicar a dissonância social entre informação e ação coletiva. Trata-se do que se poderia chamar de um vácuo de imaginário, ou seja, a perda de habilidade das sociedades hegemônicas de imaginar horizontes alternativos à civilização termo-fóssil, antropocêntrica e energeticamente insaciável que se aproxima agora, conscientemente, de seu término. Esse imaginário alternativo supõe a recusa dos quatro paradigmas que regem as civilizações contemporâneas no âmbito de uma ruptura civilizacional sem precedentes históricos:
(1) a superação do antropocentrismo por uma cosmovisão na qual o humano se reconheça como parte integrante e existencialmente dependente da comunidade dos seres vivos, sem mais se atribuir a prerrogativa de único sujeito de direito. Nossa presunção de ocupar o ápice da cadeia da vida é, como afirmava Arthur Lovejoy já em 1936, “um dos mais curiosos monumentos da imbecilidade humana”;3
(2) a perda de centralidade da esfera da economia, em benefício da esfera da ecologia, pois outro monumento de imbecilidade humana, incrustrada no pensamento econômico dominante, é a redução da natureza a “fator de produção”. A economia é um subsistema da ecologia. A biosfera e o sistema climático ditam suas condições de possibilidade;
(3) a superação do axioma da soberania nacional absoluta em prol de uma governança global democrática fundada no protagonismo dos territórios. Os desafios da humanidade são de há muito ao mesmo tempo territoriais e globais e não podem mais ser afrontados nos termos dos Estados-nações, inerentemente particularistas, belicistas e anacrônicos; e
(4) a atribuição de um sentido positivo (e mesmo sagrado) à noção de limite, tal como herdado tanto da sapiência grega quanto das de outras civilizações.
Vivemos hoje o fim das possibilidades do capitalismo, esse sistema escravo de sua própria expansão. Neste segundo quarto do século XXI, os organismos humanos deverão afrontar um clima cada vez mais incompatível com sua segurança alimentar e temperaturas jamais experimentadas na história de nossa jovem espécie. É incerta nossa capacidade de adaptação a esse novo regime climático e ao ecocídio em curso, isto é, à perda catastrófica de natureza, sem a qual não conseguimos viver. A biosfera está adentrando a sexta extinção em massa de espécies, a primeira em todo o Fanerozoico (os últimos 570 milhões de anos) cujas causas decorrem de uma única espécie: nós. A Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas de Extinção, publicada pela União Internacional para a Conservação da Natureza, contou em 2024 mais de 46.300 espécies ameaçadas de extinção (28% das 166 mil espécies avaliadas).4 “Na América do Sul – lar da maior diversidade de espécies de árvores do mundo – 3.356 das 13.668 espécies de árvores avaliadas estão em risco de extinção”.5 Dez anos atrás, um inventário em 21 países revelava que “a maior parte das 40 mil espécies de árvores tropicais podem ser agora consideradas como globalmente ameaçadas de extinção”.6 A 5ª edição do State of the World Plants and Fungi (2023) afirma que “77% das espécies de plantas não descritas provavelmente estão ameaçadas de extinção, e quanto mais recentemente uma espécie foi descrita, maior a probabilidade de que esteja ameaçada”.7 Na Amazônia, o risco ecológico é sabidamente ainda maior do que o risco climático.
O projeto de uma civilização pós-capitalista parecerá a muitos um exercício ficcional sem valor de programa político. A realidade é que não há nada mais ficcional em nossos dias do que a presunção de viabilidade do capitalismo. Mantidas suas premissas, não há já como evitar, ou mesmo minorar, um colapso socioambiental de dimensões insondáveis. O agravamento dos desequilíbrios climáticos, a condição terminal de milhares de formas de vida, o adoecimento crescente causado pela poluição químico-industrial, o aumento sem precedentes das desigualdades e o risco real de uma guerra nuclear impõem hoje às sociedades a aposta em uma nova utopia: a utopia da sobrevivência.
Notas
- Veja-se “The 89 Project” <https://89percent.org/faq/> e Jonathan Watts, “Um Viva para a Maioria Silenciosa do Clima”. Sumaúma, 5 maio 2025. ↩︎
- Cf. Graham Readfearn, “Only 60% of Australians accept climate disruption is human-caused, global poll finds”. The Guardian, 23 jun. 2024. ↩︎
- Cf. Arthur O. Lovejoy, The Great Chain of Being. A Study of the History of an Idea (1936). Harvard University Press, 1957, p. 186): “Tout est créé pour l’homme is at once the tacit premise and the triumphant conclusion of that long series of teleological arguments which constitutes so large a fraction of the ‘ philosophical’ output of the eighteenth century —- and is one of the most curious monuments of human imbecility”. ↩︎
- Cf. IUCN, Red List of Threatened Species. 2024-2 <https://www.iucnredlist.org/>. ↩︎
- Cf. IUCN, “More than one in three tree species worldwide faces extinction – IUCN Red List”: “In South America – home to the greatest diversity of trees in the world – 3,356 out of 13,668 assessed species are at risk of extinction”. ↩︎
- Cf. Hans ter Steege et al. “Estimating the global conservation status of more than 15,000 Amazonian tree species”. Science Advances, 1, 10, 20/XI/2015: “Most of the world’s 40,000 tropical tree species now qualify as globally threatened”. ↩︎
- Cf. “State of the World Plants and Fungi. Tackling the Nature Emergency”. Kew Royal Botanic Gardens, 2023, p. 69: “77% undescribed plant species are likely threatened with extinction, and that the more recently a species has been described, the more likely it is to be threatened”. <https://www.kew.org/sites/default/files/2023-10/State%20of%20the%20World%27s%20Plants%20and%20Fungi%202023.pdf>. ↩︎